“A crise da democracia dos EUA é também uma crise da fé que muitos católicos estadunidenses têm na democracia. A aceitação de Donald Trump por segmentos influentes do catolicismo dos EUA foi em parte apenas uma manobra cínica contra o Partido Democrata em um sistema bipartidário. Mas foi também um abraço da virada antidemocrática que ocorreu nos círculos conservadores. Isso representa uma rejeição de um importante desenvolvimento intelectual de um século dentro da Igreja nos Estados Unidos”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 07-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Segundo ele, "é impossível compreender a história da reconciliação do catolicismo com a democracia sem apreciar o papel que os Estados Unidos e o catolicismo estadunidense desempenharam nesse processo. Todos os católicos, onde quer que estejam em seu julgamento sobre a Suprema Corte e o aborto nos EUA, devem ter isso em mente. Também porque isso terá efeitos em toda a Igreja Católica".
"Contrariamente ao significado da eleição de John F. Kennedy em 1960, - conclui o historiador - a presidência de Joe Biden, católico praticante, poderia paradoxalmente coincidir com um retrocesso nas relações entre o catolicismo e a democracia estadunidense, bem como entre o catolicismo estadunidense e o papado. Isso terá influência tanto na próxima eleição presidencial quanto no próximo conclave papal".
O dia 24 de junho de 2022 ficará para a história dos Estados Unidos e principalmente da Igreja Católica no país.
Foi quando a decisão da Suprema Corte sobre “Dobbs vs. Organização de Saúde da Mulher da cidade de Jackson” efetivamente revogou o direito ao aborto nos Estados Unidos, anulando “Roe vs. Wade” (1973) e “Planned Parenthood vs. Casey” (1992).
A decisão do caso Dobbs foi duramente criticada não apenas pelo Partido Democrata (o partido “pró-liberdade de escolha”) e pelos movimentos feministas, mas também por todas as principais associações médicas e de saúde.
Componentes importantes do mundo dos negócios também sinalizaram sua posição à decisão, em um sistema como o estadunidense, onde a assistência à saúde por meio de planos privados faz parte dos contratos de trabalho (o que muitas vezes significa a falta de assistência médica efetiva e oportuna para trabalhadores de baixa renda e gestantes).
Grandes empresas como Amazon, Apple, Disney e Netflix expandiram os benefícios para incluir despesas para funcionários e suas famílias que agora precisarão viajar para outros lugares para acessar uma série de procedimentos médicos, como aborto, planejamento familiar e saúde reprodutiva.
Esta última decisão judicial não é o fim da batalha de meio século pelos direitos ao aborto nos Estados Unidos. Mas estabelece um marco fundamental, que é o resultado da nomeação de três juízes conservadores da Suprema Corte pelo ex-presidente Donald Trump.
É também em grande parte uma história católica, e não apenas porque todos os seis juízes que decidiram o caso são católicos.
As “guerras culturais” foram iniciadas por protestantes evangélicos na década de 1970, mas alguns anos depois, a participação de católicos conservadores nas guerras culturais facilitou especialmente uma mutação do movimento anti-aborto.
O que começou como um movimento popular com manifestações de rua acabou em um movimento de elite que transformou a classe política do Partido Republicano (o partido “pró-vida”) e entrou no mundo intelectual e acadêmico.
A partir da década de 1990, um movimento reformulou a relação entre a Igreja Católica e a cultura estadunidense de maneiras que se tornaram evidentes no século XXI.
Alguns dos líderes das “guerras culturais” – pastores, intelectuais e políticos com importantes seguidores – converteram-se ao catolicismo ao verem a Igreja de João Paulo II e Bento XVI como o melhor lar possível para conservadores sociais e políticos.
Com a derrubada de “Roe vs. Wade”, que legalizou o direito ao aborto em termos radicais, acabou uma distopia americana para esses conservadores religiosos.
No entanto, outra distopia começou agora para aqueles no mundo liberal-progressista, que agora enfrentam o pesadelo dos católicos que pretendem impor sua moralidade a toda a sociedade.
A decisão do caso Dobbs é uma vitória para os católicos no movimento político-religioso pró-vida aliado ao Partido Republicano (o partido “pró-vida”). Mas para aqueles que defendem o direito ao aborto isso é em grande parte uma distopia católica.
Para muitos americanos e analistas de outras partes do mundo, essa distopia americana foi fabricada e projetada pela Igreja Católica, ou pelo menos por setores conservadores do catolicismo e suas elites dominantes (incluindo bispos e leigos influentes).
Esta última decisão é a imagem espelhada da composição ideológica da Suprema Corte hoje – seis conservadores indicados por presidentes republicanos contra três liberais indicados por presidentes democratas.
Os seis juízes que optaram por devolver aos estados individualmente a possibilidade de legislar sobre o aborto, negando que razões de igualdade constitucional imponham legislação federal sobre o assunto, foram convocados e são católicos romanos (um deles, Neil Gorsuch, foi criado católico, mas agora está com sua esposa e duas filhas na Igreja Episcopal de São João em Boulder, Colorado).
Dois desses seis juízes (Gorsuch e Brett Kavanaugh) frequentaram a Georgetown Preparatory School, a prestigiosa escola jesuíta em Washington, D.C..
A maioria deles nos últimos anos foi convidada a falar e recebeu honras de instituições acadêmicas católicas e outros círculos afiliados à Igreja Católica nos EUA.
A sentença de Dobbs foi celebrada e contestada com manifestações de rua de frentes opostas, em Washington e outras cidades, a maioria sem incidentes. Mas isso é apenas o começo.
Outras decisões da maioria republicana na Suprema Corte nos últimos anos equivalem a uma defesa do papel do cristianismo no espaço público (o direito de rezar em eventos esportivos em escolas públicas, financiamento público para escolas cristãs).
Trata-se de uma Suprema Corte que lembra os EUA dos anos 1950 e que sinaliza uma derrota histórica para a frente secularista que defende uma estrita separação entre Igreja e Estado.
É uma nova temporada de ativismo judicial, mas não mais de progressistas (como os republicanos reclamavam até alguns anos atrás).
Pelo contrário, esta é a vitória do movimento legal conservador, em grande parte alimentado por católicos nas faculdades de direito, no Congresso e legislaturas estaduais, colunistas de opinião e intelectuais em círculos próximos aos bispos e doadores do Partido Republicano.
Enquanto alguns falam sobre uma segunda guerra civil chegando aos Estados Unidos, é improvável que o país volte a um conflito civil no estilo do século XIX.
No entanto, já vimos alguns sinais de um ressurgimento do estilo de intolerância anticatólica do século XIX e início do século XX vindo de políticos liberais denunciando a decisão de Dobbs.
Os católicos não devem subestimar o papel fundamental que seus correligionários estão desempenhando nesta Suprema Corte e no Partido Republicano de hoje, e como isso provavelmente afetará a reputação e a posição de sua Igreja nos Estados Unidos.
Foi uma coincidência que o veredicto de Dobbs tenha sido publicado no momento em que as audiências do Congresso estavam em andamento, revelando os detalhes mais chocantes da tentativa de 06 de janeiro de 2021 de anular o resultado das eleições presidenciais de novembro de 2020.
A liderança hierárquica da Igreja Católica nos Estados Unidos, a conferência nacional dos bispos, se absteve de comentar essa tentativa de golpe.
Mas, ao mesmo tempo, é mais do que apenas uma coincidência.
Esta decisão deve ser vista no contexto do silêncio calculado sobre as características mais visíveis do trumpismo, se não o abraço de Donald Trump, por importantes vozes dentro da Igreja Católica dos EUA.
Parte do contexto também é um movimento legal e político conservador nos Estados Unidos, onde os católicos conservadores estão ausentes quando se trata de justiça social e econômica, proteção do meio ambiente e controle efetivo de armas.
A voz da Igreja precisa ser profética e às vezes impopular em certas questões, especialmente no direito à vida.
Mas a questão é sobre a linha que separa o que significa ser profético do que significa ser subversivo ao sistema democrático.
Isso é algo que a Igreja Católica, incluindo o magistério papal, tem falado claramente desde a época do Concílio Vaticano II (1962-65).
Por um lado, há uma tensão entre o catolicismo estadunidense conservador e o ensino da Igreja; por outro lado, há um choque entre o catolicismo estadunidense de hoje e sua tradição.
No século passado, os católicos nos Estados Unidos trabalharam duro e cumpriram a promessa de se tornarem bons estadunidenses e defensores da democracia – não apenas como ideal, mas na prática, do sistema democrático: das urnas às praias da Normandia durante a Segunda Guerra Mundial.
Mas agora há uma nova questão católica nos EUA.
A crise da democracia dos EUA é também uma crise da fé que muitos católicos estadunidenses têm na democracia.
A aceitação de Donald Trump por segmentos influentes do catolicismo dos EUA foi em parte apenas uma manobra cínica contra o Partido Democrata em um sistema bipartidário.
Mas foi também um abraço da virada antidemocrática que ocorreu nos círculos conservadores. Isso representa uma rejeição de um importante desenvolvimento intelectual de um século dentro da Igreja nos Estados Unidos.
A aceitação da democracia constitucional liberal pelo magistério católico, que ocorreu nos anos 1900 após séculos de antagonismo entre os dois, é uma história distintamente americana – dos exilados americanos de Jacques Maritain e Luigi Sturzo à contribuição da teologia americana para o desenvolvimento de uma teologia moderna da liberdade religiosa, especialmente no trabalho do jesuíta John Courtney Murray antes e durante o Concílio Vaticano II.
A atual crise de fé na democracia não está enraizada apenas nos inegáveis fracassos da ordem liberal em cumprir suas promessas em termos de justiça social, racial e econômica: para os católicos, também tem raízes teológicas.
A rejeição do Vaticano II foi muito além da simples nostalgia da missa pré-conciliar em latim; antes, assumiu a forma de uma rejeição da modernidade teológica e política, com tudo o que um catolicismo tão neofundamentalista e exclusivista significaria em relação, por exemplo, aos direitos dos judeus, ateus e não-católicos na sociedade.
A decisão da Suprema Corte de junho de 2022 sobre o aborto não deve ser identificada com perturbadores violentos da ordem constitucional que agrediram o Capitólio em 06 de janeiro de 2021.
Mas é parte integrante do contexto maior de crescente desilusão e desconfiança, se não raiva desordenada contra a democracia que está no coração de muitos católicos.
Na maioria dos casos, é apenas uma falta de sensibilidade em relação ao valor da democracia ou um desconhecimento do ensino da tradição e do magistério católicos sobre ela.
O fenômeno de bispos, padres e teólogos católicos que simpatizam com a subversão ou cinismo sobre a democracia e o sistema constitucional não deve ser subestimado.
A crítica antiliberal católica da democracia nos EUA hoje é parte de um fenômeno maior – uma nova busca por identidade que assume várias formas.
Pode ser expresso como entusiasmo pela Missa Tridentina e desgosto pela reforma litúrgica conciliar, ou interesse por comunidades contraculturais como as da “Opção Bento” ou outros tipos de retirada estratégica destinada a preparar o contra-ataque.
Mas também pode assumir a forma de uma visão teopolítica que rejeita a democracia constitucional em favor de uma versão pós-moderna do cristianismo medieval.
É impossível compreender a história da reconciliação do catolicismo com a democracia sem apreciar o papel que os Estados Unidos e o catolicismo estadunidense desempenharam nesse processo.
Todos os católicos, onde quer que estejam em seu julgamento sobre a Suprema Corte e o aborto nos EUA, devem ter isso em mente. Também porque isso terá efeitos em toda a Igreja Católica.
Contrariamente ao significado da eleição de John F. Kennedy em 1960, a presidência de Joe Biden, católico praticante, poderia paradoxalmente coincidir com um retrocesso nas relações entre o catolicismo e a democracia estadunidense, bem como entre o catolicismo estadunidense e o papado.
Isso terá influência tanto na próxima eleição presidencial quanto no próximo conclave papal.