23 Janeiro 2021
Quando Joe Biden foi empossado como o 46º presidente do país, ele se tornou apenas o segundo católico a ocupar o cargo, depois de ser apenas o quarto católico a ser nomeado por um grande partido (os democratas candidataram Al Smith em 1928, John F. Kennedy em 1960 e John Kerry em 2004).
Um tema do discurso de posse de Biden foi a cura das profundas divisões nos Estados Unidos, mas o teólogo e historiador Massimo Faggioli argumenta em seu novo livro que a polarização na Igreja também é um desafio para a presidência de Biden.
Em “Joe Biden and Catholicism in the United States” [Joe Biden e o catolicismo nos Estados Unidos, em tradução livre], Faggioli explora como a fé de Biden desempenhou um papel central na sua campanha, como os católicos que desafiam o Papa Francisco também poderiam causar dores de cabeça para o governo Biden e por que ele acha que o Vaticano e os Estados Unidos estão prontos para trabalhar juntos no futuro imediato para proteger a democracia e a estabilidade em todo o mundo.
A entrevista é de Michael J. O’Loughlin, publicada por America, 21-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Você escreveu que “o país não tem nenhum problema com o fato de Biden ser católico, mas um segmento não insignificante da Igreja estadunidense – entre seus bispos, seu clero e seus fiéis – tem um problema com o catolicismo dele”. O que você quer dizer com isso?
Na minha pesquisa sobre os candidatos católicos à presidência anteriores, ficou claro que havia católicos que não estavam realmente felizes com esses candidatos, mas isso nunca se tornou uma questão intercatólica durante as campanhas. Depois da eleição de Kennedy, ter um presidente católico foi um momento de orgulho e de unidade entre os católicos. Isso é algo que você não encontra agora, porque as guerras culturais, seja lá o que isso signifique, realmente remodelaram os partidos políticos e as Igrejas, incluindo a Igreja Católica.
Neste momento, o que move a identidade religiosa neste país não é ser católico, ser protestante ou ser ortodoxo, mas sim que tipo de católico, que tipo de protestante, que tipo de ortodoxo. Isso é algo que Biden terá que navegar, e com o qual John Kennedy nunca teve que lidar. Isso poderia ser um obstáculo, mas também poderia ser uma vantagem, pois há muito poucos outros católicos na praça pública com uma fé tão confiável quanto a de Biden. Você pode concordar ou não com ele politicamente, mas ele é autêntico; ele não é falso; ele não está brincando de Igreja.
“Biden fez da sua fé católica uma parte central da campanha”, você escreve no livro. Como ele fez isso? Para quem ele apelou?
Eu acho que isso fica claro especialmente se você comparar a campanha dele com a dos quatro candidatos católicos anteriores. Cada um deles teve que tornar a sua fé católica privada. Pelo fato de a fé deles estar sob ataque durante as suas campanhas, o movimento defensivo deles foi dizer: “Eu sou católico, mas isso realmente não importa para a minha política”. Isso é algo que Biden não fez e não precisou fazer, porque não há mais um movimento anticatólico massivo neste país.
Você podia ver isso pela forma como ele mencionava importantes figuras católicas como o Papa João Paulo II e o Papa Francisco, e quando mencionou o jesuíta alemão Alfred Delp, que foi executado pelos nazistas. Isso não foi uma peça de campanha, porque é algo que sempre se podia ver em Joe Biden, como em suas entrevistas com Stephen Colbert, de modo que isso veio à tona muito naturalmente durante a campanha. Isso faz parte do apelo, porque você pode não concordar com Joe Biden em todas as questões, mas eu sinto que muitos fiéis estadunidenses podem ver algo em sua fé que é verdadeiro, que é autêntico nele.
Existem semelhanças entre Biden e o Papa Francisco que podem ajudar em uma relação de trabalho?
Ao contrário dos tempos de Al Smith, John Kennedy ou John Kerry, neste momento existe um terreno comum muito bom entre a Casa Branca de Biden e o Vaticano. Eles compartilham o fato de que Biden e o Papa Francisco foram eleitos para o cargo mais alto quando estavam quase na aposentadoria ou mesmo depois da aposentadoria e são representantes e líderes de duas comunidades muito divididas. Mas o mais importante que eles têm em comum é que a oposição católica contra um é quase a mesma que a oposição católica contra o outro.
Portanto, há uma sobreposição muito significativa – ideológica, cultural e politicamente – entre o movimento Trump internamente e o movimento anti-Francisco. Desde 2015, eu acredito que eles são inseparáveis. Assim, eles entenderão que têm um fio condutor comum, um antagonista comum. E isso vai ajudar, acredito, a moldar uma boa relação no curto e médio prazo. No longo prazo, o Vaticano e o Ocidente ainda terão diferenças importantes. E essas diferenças virão à tona com o tempo, creio eu, mas não agora, porque a ameaça de emergência contra a democracia, contra a estabilidade é tão séria que todas as diferenças de longo prazo serão deixadas de lado por um tempo.
Estou curioso para saber se o fato de Biden ser católico é um pró ou um contra quando se trata da sua relação com o Vaticano, especificamente em torno de algumas das questões da vida em que claramente há diferenças de opinião.
Historicamente, é um problema ou pode ser um obstáculo. Mas não agora, eu acho, apenas por causa de Francisco. O Papa Francisco nunca usou a mesma linguagem dos conservadores sociais sobre o aborto. E, portanto, há claramente uma diferença entre a linguagem dos democratas e a da Igreja Católica sobre o aborto. Mas há também uma diferença entre a forma como o Vaticano fala agora sobre o aborto e a forma como os republicanos falam sobre o aborto.
Então, isso é diferente agora do que com John Kerry e João Paulo II, e com Barack Obama e Bento XVI. Tanto Biden quanto o Vaticano têm problemas com os bispos dos Estados Unidos, e este é um problema sério. Eles se entendem porque enfrentam um episcopado estadunidense isolado, com o qual se tornou impossível lidar, tanto para o papa quanto para o presidente católico. O Vaticano sempre quer ter boas relações com o presidente dos Estados Unidos, não importa quão distantes estejam algumas políticas internas e externas.
Você diz que os bispos dos Estados Unidos negaram a Biden qualquer tipo de “lua-de-mel”, até mesmo agindo de forma um tanto antagônica depois da sua eleição, quando formaram um grupo de trabalho especial para considerar o modo como trabalhar com um presidente católico. Como você espera que isso impacte nas relações entre a Igreja dos Estados Unidos e o novo presidente?
Bem, nós não sabemos. Não ouvimos mais nada sobre o grupo de trabalho. Eu acredito que é preciso uma mudança de linguagem. Mas isso demanda algo que eu ainda não estou vendo acontecer, isto é, de fato, repensar o que aconteceu nesses últimos anos. Honestamente, eu nunca esperei que os bispos dos Estados Unidos dissessem aos católicos: “Votem em Joe Biden”. Eu nunca esperei isso. Mas também foi inesperado ver o tipo de cegueira que havia, não em todos eles, mas especialmente em alguns deles, até o fim da presidência de Trump em relação àquilo que o ex-presidente significava para muitos católicos, especialmente os católicos latinos e os católicos afro-americanos.
Portanto, é preciso haver algum tipo de acerto de contas histórico e moral do fracasso em entender o que estava acontecendo. E é aí que eles podem entender e aprender mais sobre como lidar com um presidente que não é perfeito, como católico ou como político. Mas eu certamente não acredito que parecer hostil a um presidente católico desde o primeiro dia ajudou na causa da Igreja Católica neste país. Isso só pode prejudicar a Igreja e pode fazer muito pouco para ajudar os católicos a influenciar, com razão, as decisões sobre as questões da vida.
Você vê algum bispo que seja amigável com o novo governo? Eles terão um papel ao falar pelos católicos dos Estados Unidos?
Eu acho que sim. Especialmente o cardeal Wilton Gregory, porque ele é o ordinário de Washington; mas também o arcebispo de Chicago, cardeal Cupich; o arcebispo de Newark, cardeal Tobin; o bispo McElroy, de San Diego. Mas é um grupo pequeno, honestamente. Mas eu acredito que eles terão um papel importante. Mas, honestamente, serão poucos bispos, mas também os jesuítas neste país, assim como outras vozes católicas que não são necessariamente bispos ou clérigos. Eu não vejo uma mudança rápida dos bispos dos Estados Unidos nas próximas semanas ou meses, não vejo.
O que lhe dá esperança em relação ao novo governo?
O que vimos na noite de terça-feira no rito em memória das vítimas da Covid em Washington é um grande sinal de esperança. Os recursos simbólicos e espirituais deste país são imensos, e Joe Biden já demonstrou a sua habilidade de tirar proveito deles.
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Como a fé católica de Joe Biden moldará sua relação com o Papa Francisco e os bispos dos EUA. Entrevista com Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU