20 Mai 2020
"Em um encontro entre líderes católicos e o presidente, é de se esperar que a voz profética da Igreja seja pronunciada em defesa dos pobres e vulneráveis, os que agora estão sofrendo e morrendo desproporcionalmente se comparados com a população privilegiada do ponto de vista socioeconômico. Pasmem! Não foi isso que tais líderes fizeram", escreve Alexandre A. Martins, professor de bioética e ética social na Marquette University em Wisconsin, nos EUA.
Líderes da Igreja Católica nos EUA, entre eles os cardeais Timothy Dolan, de Nova Iorque, e Sean O’Malley, de Boston, e o Arcebispo de Los Angeles e também presidente a Conferência Episcopal dos EUA, Jose Gomez, encontraram-se com o presidente Donald J. Trump por meio de videoconferência. Essa reunião se deu no dia 25 de abril, em meio à pandemia do coronavírus, tendo os EUA como o epicentro da crise global.
O presidente Trump tem sido muito criticado pela maneira como tem lidado com a pandemia. Fontes de dentro da própria Casa Branca afirmaram que o serviço de inteligência estadunidense já alertava o presidente sobre os perigos do coronavírus aos EUA e ao mundo desde janeiro. Trump decidiu ignorar e afirmar que o “vírus chinês” era apenas uma leve gripe, que não chegaria aos EUA. Com o início da propagação do vírus nos EUA, Trump continuou com o discurso de que não havia razões para se preocupar, pois o coronavírus não era perigoso e iria desaparecer como um “milagre”.
Sempre se considerando conhecedor do assunto, isto é, um gênio na área de saúde pública, o foco do presidente estadunidense foi a economia do seu país que, até a explosão da crise sanitária e as medidas de distanciamento social, estava indo muito bem, com uma das taxas mais baixas de desemprego da sua história. O sucesso na economia (apesar de questionando por opositores, devido às condições de trabalho e os baixos salários) era o principal trunfo de Trump para a sua campanha de reeleição.
O governo Trump optou por negar a crise sanitária e apontar culpados pela difusão do coronavírus, ao invés de coordenar uma ação nacional de combate a ele. Começou, assim, a brigar com os governadores, até mesmo com aqueles do seu próprio Partido Republicano. A grande maioria dos governadores estabeleceu medidas de distanciamento social, fechamento do comércio e ordens executivas para as pessoas ficarem em casa. Como se esperava, a econômica entrou em choque e a situação econômica se inverteu, passando de uma das menores taxas de desemprego já registradas para o maior índice de desemprego da história dos EUA. O Congresso aprovou um pacote de medidas de dois trilhões de dólares para socorrer a economia, incluindo empréstimos sem juros para empresas e cheques de 1200 dólares para pessoas com renda anual de até 75 mil dólares.
Trump foi imediatamente a favor desse pacote e fez questão que a sua assinatura constasse em todos os cheques enviados aos cidadãos estadunidenses. Infelizmente, o pacote de resgate econômico não incluiu nada para os imigrantes indocumentados, que passam de 11 milhões de pessoas no país. A imensa maioria trabalha no mercado informal de serviços, o setor mais afetado nessa crise. Sabemos que os imigrantes são o principal alvo de Trump quando se trata de culpabilizar alguém pelos problemas do país. Basta ter presente que foi eleito com uma campanha por meio da qual prometeu um muro gigante na fronteira com o México para evitar a entrada de mexicanos e outros latinos que, segundo ele, eram “criminosos”, “estupradores”, narcotraficantes e uma ameaça ao emprego dos “legítimos” cidadãos.
Outra questão que ficou em evidência com a pandemia do coronavírus e a falta de uma resposta coordenada por parte da Casa Branca foi a fragilidade do sistema de saúde dos EUA. Todo o sistema está nas mãos da iniciativa privada. Diferentemente do Brasil, a saúde nos EUA não é um direito e não há no país um sistema público universal de saúde. Nos EUA, saúde é o que chamam de privilégio, com sistemas privados independentes, ao qual, para se ter acesso, é necessário um plano de saúde. Portanto, serviços de saúde são bens de consumo para serem comprados por meio do livre mercado. A falta de um plano adequado para responder à crise sanitária gerada pela propagação do coronavírus e um “sistema” de saúde privado para ricos são os fatores que contribuíram para o endurecimento da crise. Como sempre, num sistema econômico neoliberal, quem mais sofre são os mais pobres e vulneráveis. Com a pandemia do coronavírus/COVID-19 não é diferente. Infecções e mortes têm acontecido de forma desproporcional entre as populações mais vulneráveis e com menor acesso à saúde: negros, imigrantes e pobres.
Nessa breve e limitada apresentação da situação nos EUA sob a liderança de um Republicano, Donald J. Trump, é possível perceber que a vida está ameaçada, especialmente a vida dos mais vulneráveis, daqueles que mais sofrem com a pandemia e o desemprego. Embora digam que we are all in this together (estamos todos nisso juntos) – hashtag em todas as redes sociais –, isso não é verdade. Há grupos sofrendo muito mais porque são pobres, não têm o privilégio de trabalhar de casa, carecem de plano de saúde e sofrem das consequências de ser historicamente marginalizados.
O ensino social católico mostra que a Igreja luta pela justiça social ao lado dos marginalizados. A opção preferencial pelos pobres, princípio social católico presente nos ensinamento dos três últimos papas e enfatizado pelo papa Francisco como um “imperativo ético” (Laudato Si’ 158), não deixa dúvida de que a defesa da vida, especialmente num contexto como o que vivemos, significa estar ao lado dessas populações que mais sofrem, como os negros, os imigrante e os pobres. Seguindo a tradição bíblica, a situação de injustiça e sofrimento criada pela pandemia do coronavírus e seus impactos econômicos desafia a Igreja Católica, a começar por seus líderes, a ser uma voz profética, clamando por justiça e dignidade para aqueles que não têm voz.
Em um encontro entre líderes católicos e o presidente, é de se esperar que a voz profética da Igreja seja pronunciada em defesa dos pobres e vulneráveis, os que agora estão sofrendo e morrendo desproporcionalmente se comparados com a população privilegiada do ponto de vista socioeconômico. Pasmem! Não foi isso que tais líderes fizeram. No encontro com Donald Trump, líderes católicos, entre eles os líderes do episcopado mencionados no início desse texto, focaram em como salvar as escolas católicas das perdas econômicas decorrentes das medidas para combater o coronavírus. Esses líderes, na verdade, foram pedir ao presidente ajuda econômica do Estado para socorrer as escolas católicas e, aparentemente, se renderam ao ouvir Trump dizer que é o “melhor [presidente] na história da Igreja Católica”, que é contra o aborto (deixando os bispos felicíssimos), e que vai ajudar as escolas.
Se não bastasse esse constrangimento para a toda a Igreja e a perda da oportunidade de serem proféticos, o cardeal de Nova Iorque, Timothy Dolan, continuou no decorrer dos dias mostrando o seu apoio a Trump, o que na verdade é visto como um apoio à sua reeleição. Dolan e Trump usam espaços na mídia para paparicar-se reciprocamente, manifestando apreço mútuo. Um exemplo disso foi o cardeal Dolan ter aparecido no programa de TV da FOX (a propósito, o favorito de Trump, que liga para os apresentadores constantemente durante o programa), Fox and Friends, para dizer: “eu admiro a liderança dele” [Trump]. Por trás da admiração e do apoio recíprocos está a questão do direito ao aborto, que é legalizado nos EUA, mas que o Partido Republicano faz de tudo para tornar novamente ilegal. Trump conquista muitos católicos com um discurso pró-vida – na verdade, restrito ao antiaborto –, que soa como música aos ouvidos dos bispos católicos. Parece que muitos da hierarquia católica, para conseguir a rejeição da lei do direito ao aborto nos EUA, estão dispostos a se submeter à agenda de um presidente que promove políticas de marginalização das populações desfavorecidas, como os negros, os imigrantes e os mais pobres.
A relação entre religião e política – e, nesse caso, entre a Igreja Católica e política – não é algo novo. Toda religião já tem uma participação política pelo simples fato de ser um grupo social público. Assim se dá também com a Igreja Católica, pois tudo que ela faz, especialmente a sua atuação em causas sociais, tem um caráter político. Mas fazer “boa política” não é sinônimo de fazer política partidária, candidatar-se a cargos públicos, ou apoiar candidatos. Para se ter uma boa atuação sociopolítica e ser profética, a Igreja precisa ser livre e, para isso, não pode se alinhar com um partido ou um candidato pelo simples fato de este apoiar uma das suas causas. A convergência em um aspecto – e no caso estadunidense, com o Partido Republicano, a agenda contra o direito ao aborto –, não pode levar a Igreja a fechar os olhos para milhares de vidas ameaçadas que sofrem e morrem todos os dias devido a políticas que promovem a marginalização dos mais vulneráveis e mais pobres. Por causa da convergência em um único aspecto (o interesse de Trump pela agenda contra o aborto é muito questionável se não é apenas por benefícios políticos, devido à sua história pessoal de descompromisso com a vida dos outros e com valores familiares) e o interesse privado de salvar financeiramente as escolas católicas, os líderes da Igreja Católica nos EUA se calaram e reprimiram o profetismo do ensino social católico. Podemos nos perguntar o que teria acontecido se Jesus tivesse cedido às tentações do demônio no deserto! Ou se tivesse dito para Zaqueu, “tudo bem, você não precisa devolver para o povo os bens que conquistou explorando-o; já que ficou rico, aproveite a vida”! Certamente não teríamos Igreja e ensino social católico e nem estaríamos aqui chamando a atenção para aquilo que é eminentemente evangélico!
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Religião e política: A Igreja Católica dos EUA perde a oportunidade de ser profética. Artigo de Alexandre A. Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU