05 Julho 2022
Reproduzimos aqui alguns trechos do artigo de Massimo Faggioli sobre a revogação da sentença “Roe v. Wade” pela Suprema Corte dos Estados Unidos que será publicado no próximo n. 14 de Il Regno-attualità.
O artigo é publicado por Il Regno. A tradução é de Luisa Rabolini, 01-07-2022.
O sonho do movimento pró-vida, que durou quase cinquenta anos, se tornou realidade. Em 24 de junho de 2022, com a publicação da decisão “Dobbs v. Jackson Women's Health Organization" sobre a proibição do aborto após quinze semanas no Mississippi, a Suprema Corte Federal dos Estados Unidos efetivamente revogou o direito ao aborto nos EUA, conforme havia sido instituída pela sentença "Roe v. Wade" de 1973 e modificada pela sentença" Planned Parenthood v. Casey” de 1992. É uma data histórica para os Estados Unidos e especialmente para a Igreja Católica. (...)
A sentença cria uma situação de grande desigualdade entre os cidadãos estadunidenses, com alguns estados controlados pelo Partido Republicano (especialmente no Sul e Centro-Oeste) que já acionaram leis que criminalizam o recurso ao aborto (Kentucky, Louisiana, Arkansas, Dakota do Sul, Missouri, Oklahoma, Alabama) e outros estados que o farão em breve (Mississippi, Dakota do Norte, Wyoming, Utah, Idaho, Tennessee, Texas). Exceto intervenções in extremis dos tribunais, o aborto torna-se ilegal. São previstas pelas leis dos estados exceções necessárias para proteger a vida da mulher, mas permanece aberta a questão se a Constituição exige exceções às proibições de aborto para proteger a vida ou a saúde da mãe, para as vítimas de estupro ou incesto, ou por deficiência fetal. A decisão da maioria observou que a lei do Mississippi prevê exceções para patologias específicas ou emergências e anomalias fetais, mas não afirmou que tais exceções são necessárias. (...)
"Roe v. Wade" havia disposto que não houvesse restrições ao acesso ao aborto no primeiro trimestre de gravidez e até a viabilidade do feto; no segundo trimestre, impunha limites visando à proteção da saúde da mulher; no terceiro trimestre, permitia que os estados proibissem o aborto sob condição de que houvesse exceções em favor da tutela da vida e da saúde da mulher.
De 1973 até hoje, aquela sentença havia colocado a legislação do aborto nos EUA em uma posição particular em relação a outros países, mesmo no Ocidente, como uma das mais liberais e libertárias, com diferenças notáveis também no que diz respeito à lei 194 na Itália, sob vários pontos de vista: do procedimento (com papel central dos tribunais e do sistema federal nos EUA, do Parlamento na Itália), da cultura jurídica e das motivações morais (um direito constitucional nos EUA; na Itália a defesa do direito à saúde da mulher em um sistema que visa limitar o número de abortos), e em geral do sistema socioeconômico em que a questão se insere (a falta de um sistema nacional de saúde pública e de apoio à maternidade nos EUA, a começar pela licença parental, inclusive para quem trabalha em instituições católicas).
No espectro das diversas opções jurídicas possíveis, entre a proibição em nível constitucional de um lado e o direito ao aborto como direito constitucional do outro (entre as outras opções intermediárias: ilegal mas descriminalizado, ou legal mas limitado e desencorajado), "Roe v. Wade" havia fundado a interrupção voluntária da gravidez no direito constitucional à privacidade, indo inclusive além das expectativas dos ativistas pró-escolha da época. Agora, com a sentença “Dobbs v. Jackson Women's Health Organization", o pêndulo volta a oscilar para o extremo oposto em muitos estados dos EUA, com a Suprema Corte restituindo aos estados o direito de legislar - poucos dias depois que a mesma corte havia negado ao Estado de Nova York o poder de fazê-lo em relação ao direito de portar armas. (…)
Uma lei que codificava o direito ao aborto em termos libertários foi derrubada; para o conservadorismo religioso termina uma distopia estadunidense, enquanto o mundo liberal-progressista denuncia o início de uma distopia de sinal oposto. A questão da defesa da vida é reaberta.
Mas nos EUA de hoje isso acontece na ausência daquelas instituições que poderiam ajudar a encontrar uma solução para um dilema moral que na era da biopolítica está entrelaçado com ameaças ao direito à privacidade digital, e nas igrejas à disputa sobre o gênero, sobre a inclusão de católicos LGBT e sobre as violências e abusos sexuais. O preço que os EUA pagam é uma divisão sem precedentes desde a guerra civil, cento e sessenta anos atrás: uma divisão entre cidadãos de diferentes estados, entre os dois partidos políticos, entre culturas, entre igrejas e religiões. Há muito que o Congresso não consegue legislar de forma eficaz, com raras exceções (como o financiamento do envio de armas para a Ucrânia).
A Suprema Corte perdeu sua autoridade e legitimidade como instituição super partes e é vista como um superpoder, expressão das relações de força entre os dois partidos, desequilibradas agora e pelas décadas vindouras (devido à nomeação vitalícia de juízes ainda relativamente jovens) em favor de um Partido Republicano cada vez mais trumpiano - qualquer que seja o futuro político de Donald Trump. (…)
Essa sentença complica ainda mais as relações entre a presidência do católico Biden, os bispos dos Estados Unidos e o pontificado de Francisco. Auxiliado por alguns cardeais na Cúria Romana e nos EUA, nos últimos dois anos o papa fez muito para proteger Biden das sanções que uma parte substancial dos bispos queria e gostaria de impor em termos de exclusão comunhão eucarística dos políticos católicos do Partido Democrata (o presidente, mas também a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, os políticos católicos no Congresso e nos parlamentos locais).
Nas declarações após a sentença, tanto Biden quanto os católicos do Partido Democrata se declararam em termos inequívocos pela defesa de “Roe v. Wade" prometendo uma resposta no plano legislativo.
No dia 29 de junho, no contexto de uma série de compromissos institucionais (na Embaixada dos Estados Unidos junto à Santa Sé e com a Comunidade de Santo Egídio em Roma), Pelosi participou e comungou na Missa da solenidade de São Pedro e São Paulo na Basílica de São Pedro no Vaticano, presidida pelo Papa Francisco: um ato interpretado por muitos como uma resposta, se não um desafio, à proibição de receber a comunhão declarada contra Pelosi em maio de 2022 pelo Ordinário de sua diocese, o arcebispo Salvatore Cordileone de São Francisco.
A sentença "Dobbs", por um lado, dificulta a defesa de Biden por Francisco como parte da tentativa de desarmar a escalada nas "guerras culturais", nas quais o aborto sempre teve uma função simbólica e política extraordinária; por outro lado, dá a muitos bispos a perigosa ilusão de que ficar do lado do Partido Republicano seja a solução para enfrentar os males do país. Parte do episcopado que celebra a vitória parece ignorar, ou não considerar parte da equação moral, os cortes no estado de bem-estar social e as desigualdades econômicas exacerbadas pela doutrina do turbocapitalismo ultraliberal do Partido Republicano nos últimos quarenta anos. O Partido Democrata tentou parar aquela deriva socioeconômica, mas também abandonou o compromisso sobre o aborto dos anos da presidência de Clinton - "aborto legal, seguro e raro". Qualquer pessoa na cena política e pública, nos EUA do movimento MeToo e da crise do sistema democrático, que almeje tornar os abortos mais raros se exclui da possibilidade de interagir com a cultura liberal-progressista.
Uma das sentenças mais importantes da história da Suprema Corte veio durante a celebração do Congresso Mundial das Famílias em Roma e as audiências da comissão parlamentar EUA de inquérito sobre a tentativa de golpe de Trump em 6 de janeiro de 2021. O pontificado de Francisco tentou ler as questões sociais e morais em uma chave diferente daquela da contraposição ideológica, em uma crítica implícita ao "american way of life" em sua versão tanto liberal quanto progressista, em uma recuperação do Vaticano II não apenas em questões litúrgicas, mas também no sentido de uma visão de laicidade aberta e positiva, de sã colaboração entre as comunidades eclesial e aquela civil. Mas os EUA hoje estão indo em uma direção diferente.
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O sonho e as distopias: a Suprema Corte dos EUA sobre o aborto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU