27 Junho 2022
"Por trás do tema do aborto não há uma escolha ideológica, mas uma escolha de campo: é a cola mais eficaz de uma direita muito diversificada que fez do feto sua bandeira de unidade e o tema mais facilmente usável na comunicação política", resume Paolo Naso, professor de ciência política na Sapienza de Roma, de fé protestante e coordenador da Comissão de Estudos da Federação de Igrejas Evangélicas da Itália.
A entrevista com Paolo Naso é de Eleonora Martini, publicada por Il Manifesto, 26-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor, nessa sentença o quanto influiu a orientação religiosa dos juízes?
Não muito. O tribunal, composto em grande parte por juízes conservadores, foi ainda mais desbalanceado por Donald Trump quando nomeou três membros da direita mais extrema. E, considerando que os membros da Corte ocupam cargos vitalícios, inserir uma juíza de 49 anos como Amy Coney Barrett foi um investimento. Para a direita religiosa, nenhum outro tema é mais distintivo do que o aborto. Comparada a todas as outras - a oração das escolas, a exposição dos 10 mandamentos, os direitos dos casais gays - sem sombra de dúvida a questão do aborto é a mais simbólica. E é uma prova evidente de que a direita religiosa está longe de estar fora do cenário político estadunidense e que as componentes trumpistas ainda desempenham um papel muito ativo, para além do destino pessoal e político do ex-presidente Trump.
Como a direita religiosa estadunidense evoluiu ao longo do tempo?
Na década de 1980 era representada pela Moral Majority, associação formada pela elite dos telepregadores que em suas relações pastorais e de evangelização também controlavam um mercado político, que era aquele abstencionista. E Ronald Reagan percebeu que para capitalizar aquele poderosíssimo mercado de votos congelados, de pessoas que, pensando na salvação da alma e no reino dos céus, não se engajam politicamente, era preciso moralizar as campanhas eleitorais convocando ao voto não mais para um partido ou para o outro, mas para a vida ou a morte. Mas o verdadeiro salto de qualidade aconteceu nos anos 1990 e início dos anos 2000 com a Coalizão Cristã e outras associações similares que eram organizações mais enraizadas nos territórios, como os partidos. Com campanhas locais e nacionais, chegou-se às correntes mais extremistas que vimos em ação em 6 de janeiro de 2021 no Capitólio.
São organizações que vêm do mundo evangélico; no entanto, ao longo dos anos, a direita católica, que se fortaleceu muito sob os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, também se juntou a essas associações. Assim, assistimos a um "ecumenismo" dos conservadores que criou um importante polo moral. Por outro lado, porém, tanto na Igreja Católica quanto nas igrejas protestantes históricas, main line - presbiteriana, metodista, luterana, episcopal etc. – há posições claramente distintas também sobre temas éticos.
Como a onda longa dessa sentença afetará a Europa?
Nos Estados Unidos, essa decisão cria uma rachadura profunda naquele "muro de separação", como o chamava o velho Jefferson, que foi erguido entre o Estado e as religiões pela Constituição dos EUA. Tudo isso também reverbera na Europa: vemos isso na Polônia, Hungria e outros países do Leste, e alguma emulação também existe no contexto italiano. As instituições europeias são muito firmes nos princípios democráticos e de laicidade do Estado, mas a maior fragilidade reside nos Estados separadamente. O grande paradoxo é que aqueles que intervêm tão fortemente na consciência individual, ditando normas morais ao indivíduo, na realidade pretenderiam ser liberais e até libertários. Os EUA trumpistas reivindicam o individualismo, mas propõem uma política ética.
No mundo católico, o Papa Francisco é um obstáculo a essa deriva?
Na Itália e na Europa, a religião é altamente secularizada, com uma taxa de participação na vida religiosa muito menor do que nos EUA. O Papa Francisco pode ser uma barreira para a linguagem: aquela brutalidade, inclusive das imagens usadas pelos ativistas pró-vida, acredito que jamais possa ser endossada nem pelo Papa nem pelo episcopado italiano e europeu. Mas no tema específico é evidente a posição da Igreja Católica.
Como é conciliado nos lobbies religiosos dos EUA o furor anti-aborto com o consentimento pelo porte de armas?
Está no mesmo círculo eleitoral da direita religiosa. Não há contradição, pelo contrário. Para eles, portar armas e considerar o aborto um homicídio significa exatamente expressar os "valores" da família e defender a vida. E é uma posição extremamente difundida. Mas há também outro EUA, também cristão e protestante, que está exatamente do lado oposto.
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“O aborto é a cola mais eficaz para a extrema direita”. Entrevista com Paolo Naso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU