17 Dezembro 2021
“Francisco é um católico latino-americano de ascendência europeia, mas sua visão de mundo e compreensão da história não são eurocêntricas. E ele vê os Estados Unidos desempenhando um papel ainda menos importante no cenário mundial. O pivô de Francisco em direção ao 'Sul Global' significou, pelo menos para alguns, uma dolorosa reorganização das prioridades geopolíticas do Papado. Alguns dos interlocutores tradicionais da Santa Sé, como a Europa e os Estados Unidos, receberam atenção menos privilegiada. Isso marca uma mudança significativa de era em comparação com a época da Guerra Fria, quando, necessariamente, não se ousava interferir no papel dos Estados Unidos na manutenção da segurança internacional. A ausência do Vaticano na 'Cúpula pela Democracia' de Joe Biden não foi uma afronta ao Papa Francisco. Mas – talvez inadvertidamente – foi um sinal de que o alinhamento entre o Vaticano e Washington é limitado”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por La Croix International, 15-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Um ano após a eleição de Joe Biden, os limites do alinhamento entre o Papa Francisco e o segundo presidente católico dos EUA estão completamente expostos.
Os primeiros dez dias deste mês de dezembro foram particularmente instrutivos.
Durante sua visita ao Chipre e à Grécia, o Papa repetiu:
1. este é o berço da democracia (embora uma democracia limitada);
2. seu apelo pela defesa dos sistemas democráticos de governo do assalto do autoritarismo e do populismo.
“Aqui a democracia nasceu”, disse Francisco, em 04 de dezembro, no palácio presidencial em Atenas.
“Esse berço, milhares de anos depois, viria a ser uma casa, uma grande casa de povos democráticos. Falo da União Europeia e do sonho de paz e fraternidade que representa para tantos povos”, continuou.
“No entanto, não podemos deixar de notar com preocupação como hoje, e não apenas na Europa, estamos testemunhando um retrocesso da democracia”, advertiu o Papa.
Poucos dias depois, o Departamento de Estado dos EUA realizou uma “Cúpula pela Democracia” a pedido do presidente Biden.
Aquele evento de 9 a 10 de dezembro contou com a participação virtual de dezenas de países. Seu objetivo era fortalecer a democracia contra o autoritarismo, combater a corrupção e promover os direitos humanos.
Esta cúpula foi parte de um “ano de ação” internacional em que países de todo o mundo, incluindo os Estados Unidos, trabalharam para fortalecer a democracia em casa e no exterior.
O Papa e o presidente dos Estados Unidos compartilham uma preocupação com a situação das nossas democracias, mas de maneiras muito diferentes.
A lista de participantes da Cúpula pela Democracia levantou muitas instigações, especialmente porque os países que são, ou foram, aliados dos EUA foram excluídos (alguns no Oriente Médio, mas também Hungria e Turquia), assim como adversários estratégicos americanos (China e Rússia).
E, ainda assim, líderes autoritários como Narendra Modi da Índia e Jair Bolsonaro do Brasil foram convidados.
Mas a lista de participantes também foi interessante por outro motivo. Se olharmos para o programa, os palestrantes incluíram jornalistas, intelectuais, ativistas, advogados, promotores e diretores-executivos.
“Temos que defender a justiça e o estado de direito, pela liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de imprensa, liberdade de religião e por todos os direitos humanos inerentes a cada indivíduo”, disse o presidente Biden em seu discurso de abertura.
Mas alguém procuraria em vão encontrar “religião” ou “fé” na lista de palestrantes; e menos ainda os termos “Igreja” ou movimentos eclesiais.
Em outras palavras, a Santa Sé esteve ausente na cúpula, o que faz sentido se considerarmos que o Estado Papal é tecnicamente uma monarquia teocrática e absoluta.
Mas até mesmo as vozes de atores religiosos e de movimentos sociais e populares frequentemente aliados de líderes religiosos estiveram ausentes na cúpula. Não se tratava apenas de encontrar representantes palatáveis para esses movimentos, mas da perspectiva de toda a iniciativa.
A ausência da voz do Vaticano e de outras igrejas e tradições religiosas na cúpula de Biden foi notável à luz do engajamento local da Igreja Católica na defesa dos direitos humanos em muitos países ao redor do mundo.
Mas foi uma ausência notável também à luz do firme compromisso da Santa Sé com a questão da democracia em todo o mundo.
Isso não é apenas evidente nos discursos e apelos do Papa Francisco, mas ainda mais nas iniciativas concretas empreendidas, por exemplo, pela Pontifícia Academia das Ciências Sociais; ou através das atividades diárias de muitos católicos em todo o mundo, muitas vezes nas mais difíceis situações.
Obviamente, teria sido complicado para a Casa Branca elaborar uma lista de líderes religiosos a serem convidados para a Cúpula pela Democracia. Aqueles líderes religiosos que não receberam o convite, e aqueles que poderiam ter recusado, teriam sido bastante notados.
É difícil verificar a bona fides pró-democracia de muitos grupos religiosos. E isso inclui a Igreja Católica, cujas credenciais democráticas são muito questionadas hoje em muitas partes do mundo.
Já passamos muito do tempo em que a Igreja Católica em muitas partes do mundo começou a descobrir e abraçar a democracia. Isso aconteceu principalmente no período pós-Segunda Guerra Mundial, e durante e após o Concílio Vaticano II (1962-65).
Naquela época, havia condições externas que agravavam as possíveis diferenças e variações na compreensão católica da democracia em muito diferentes partes do mundo.
Primeiro, houve o declínio dos impérios coloniais e a ameaça do comunismo. Em seguida, houve a “terceira onda” de democratização dos católicos em países que estavam fazendo a transição de regimes ditatoriais e autoritários para sistemas constitucionais nas décadas de 1970 e 1980.
Esta democratização da cultura política do catolicismo foi reconhecida quando a Santa Sé foi convidada a assinar os “Acordos de Helsinque” em 1975, que se tornaram parte do esforço da Igreja Católica para imaginar um futuro para a Europa depois do comunismo.
É difícil imaginar que o Vaticano seria incluído hoje em algo como o Acordo de Helsinque de 1975.
Não importa o que o Papa Francisco diga em seus discursos, as narrativas intracatólicas sobre o valor da democracia constitucional variam muito hoje, se olharmos para países como Polônia, Hungria, Brasil e Filipinas.
Mas o desenrolar de uma narrativa unificada sobre a democracia também é claramente um problema para os Estados Unidos e a Igreja Católica no país.
Não há dúvida de que a democracia corre sério risco nos Estados Unidos. Há evidências de que, depois de perder a eleição presidencial de novembro de 2020, o governo Trump planejava um golpe.
Existem movimentos políticos dos EUA que não acreditam em eleições livres e justas e trabalham abertamente pela privação de direitos dos eleitores (especialmente das minorias raciais) que não apoiam o Partido Republicano de Trump.
E o catolicismo dos Estados Unidos hoje está dividido quanto ao significado de democracia. Muitos de seus líderes hierárquicos e intelectuais são espantosamente indiferentes. Pior ainda, alguns deles são parte do problema.
Joe Biden e o Papa Francisco sabem que a crise da democracia é antes de mais nada interna às suas comunidades, isto é, aos Estados Unidos e à Igreja Católica.
Não é apenas uma crise de fé nas formas e procedimentos democráticos. É uma crise da própria capacidade de conceber um futuro juntos, fora das expectativas de sucesso privado.
Nosso sentido de viver nesta época parece uma pluralidade fragmentada de histórias individuais com uma conexão muito marginal com eventos que dizem respeito a todos. Novas formas de autoritarismo e populismo respondem a essa incapacidade de pensar um “nós”.
Nesse sentido, a Santa Sé e os Estados Unidos devem enfrentar o mesmo problema, ainda que em locais e meios diferentes.
Na parceria Vaticano-Washington, Francisco e Biden têm uma tarefa muito diferente daquela que John Kennedy e João XXIII ou João Paulo II e Ronald Reagan compartilharam.
Hoje, existem diferenças substanciais entre o presidente dos Estados Unidos e o Papa católico. Dois, em particular, são dignos de nota.
O primeiro tem a ver com as relações entre a Igreja Católica e os sistemas políticos, como afirma claramente a constituição pastoral do Vaticano II, Gaudium et spes: “A Igreja, pelo seu papel e competência, não se identifica de forma alguma com a comunidade política nem está ligada a nenhum sistema político. Ela é ao mesmo tempo um sinal e uma salvaguarda do caráter transcendente da pessoa humana”.
O Papa Francisco, por publicar encíclicas desde a Laudato Si' a Fratelli Tutti, ofereceu um corpo consistente de ensino e testemunho para um renovado ethos democrático na Igreja Católica, juntamente com uma abordagem pragmática da ordem política internacional.
Não está claro se os esforços do Papa para conter a maré de autoritarismo e populismo entre os católicos terão sucesso.
Mas também há consequências para Joe Biden: o futuro da democracia nos Estados Unidos dependerá, em boa medida, do caminho escolhido pelos seus cidadãos cristãos, especialmente os católicos.
A perda de fé na democracia tem mais consequências para os estadunidenses (incluindo os católicos) do que para o Vaticano e a Igreja Católica global.
O catolicismo se reconciliou com a democracia durante o século XX. Fez, em princípio, não apenas por razões pragmáticas.
Mas desde o tempo de Agostinho nos séculos IV a V, a Igreja viu as ambiguidades de todos os sistemas de governo (especialmente os “impérios cristãos”, como os Estados Unidos eram ou pretendiam ser) e aceitou o fato que as ordens sociais e políticas são transitórias.
O colapso da ordem constitucional democrática afetaria a Igreja Católica de maneira muito diferente do que afetaria os Estados Unidos e o catolicismo norte-americano. Um catolicismo estadunidense afastado de suas raízes democráticas seria uma contradição em termos e custosa.
A segunda diferença entre o presidente dos Estados Unidos e o Papa tem a ver com suas visões contrastantes sobre o mundo. Aqui, o Vaticano e o governo Biden divergem significativamente, muito mais do que os Papas e presidentes anteriores dos Estados Unidos.
O recente abraço da Igreja Católica ao mundo é indiscutível com Francisco (especialmente no que diz respeito à Ásia, e à China em particular).
Constitui muito mais uma ruptura com os pontificados anteriores do que uma ruptura da agenda geopolítica de Biden com as presidências anteriores (veja a Rússia e novamente a China).
Francisco é um católico latino-americano de ascendência europeia, mas sua visão de mundo e compreensão da história não são eurocêntricas. E ele vê os Estados Unidos desempenhando um papel ainda menos importante no cenário mundial.
O pivô de Francisco em direção ao “Sul Global” significou, pelo menos para alguns, uma dolorosa reorganização das prioridades geopolíticas do Papado. Alguns dos interlocutores tradicionais da Santa Sé, como a Europa e os Estados Unidos, receberam atenção menos privilegiada.
Isso marca uma mudança significativa de era em comparação com a época da Guerra Fria, quando, necessariamente, não se ousava interferir no papel dos Estados Unidos na manutenção da segurança internacional.
A ausência do Vaticano na “Cúpula pela Democracia” de Joe Biden não foi uma afronta ao Papa Francisco. Mas – talvez inadvertidamente – foi um sinal de que o alinhamento entre o Vaticano e Washington é limitado.
Esses dois atores seguem duas trajetórias significativamente divergentes.
Apesar de todos os problemas internos que está passando atualmente, o futuro geopolítico do catolicismo global parece mais claro agora do que o dos Estados Unidos.
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A “Cúpula pela Democracia de Biden” e o Vaticano. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU