22 Junho 2022
"Segundo a ministra das Relações Exteriores, Liz Truss, Kirill 'repetidamente abusou de sua posição para justificar a guerra'. A falta de uma palavra sua de verdade será uma tragédia para o cristianismo europeu, mas também um triste declínio em sua jornada humana e de seu serviço eclesial", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 20-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Kirill, patriarca de Moscou, podia e pode se distanciar da guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia? A resposta é sim, apesar de todos os condicionamentos e dificuldades. Se tivesse tido ou tivesse uma palavra crítica dele, muitos acontecimentos teriam sido diferentes ou mudariam. A continuidade da guerra torna cada vez menos credível uma mudança de posição, mas nada tem o carácter de inevitabilidade.
Um diplomata de longa data me apontou que Kirill poderia ter se dissociado, mesmo que isso lhe custasse o cargo de patriarca e teria iniciado uma sucessão ainda mais identitária e "russa" do que a sua. Mas teria salvado a alma da ortodoxia russa, aproximado muito as fraturas do cisma intraortodoxo, fortalecido o juízo convergente das Igrejas cristãs sobre a guerra e sobre o futuro da Europa. É garantida à Rússia uma autoridade moral em defesa do perigo desagregador de uma guerra "não vencida".
Em 26 de outubro de 1918, o Patriarca Tikon, em uma carta aos soviets, assim se expressou: "Vocês dividiram o povo em dois campos inimigos e o mergulharam em uma guerra fratricida de uma crueldade desconhecida até hoje. Vocês substituíram abertamente o amor de Cristo pelo ódio e, como paz, artificialmente alimentaram a luta de classe”. Sua coragem lhe custou caro.
A Igreja foi submetida a uma sistemática obra de divisão, primeiro conheceu a prisão domiciliar, depois o encarceramento. Ele foi obrigado (1923) a uma mensagem de total apoio ao poder soviético e escapou de um atentado devido à generosidade de seu secretário que se colocou diante dele e foi morto. Mas ele não assinou uma carta condenando o clero da emigração. Esta saiu no dia seguinte à sua morte (7 de abril de 1924) com sua assinatura falsa.
Kirill arriscaria menos que seu antecessor que ainda hoje é citado como exemplo de liberdade e fé cristã. Diante do enorme risco para a Rússia, cuja estabilidade e paz são importantes para todos, e para a Europa, é preciso encontrar um equilíbrio de paz para que um conflito que ameaça, segundo o secretário-geral da OTAN (Jens Stoltenberg) continuar por anos. Sem comparar culpas e razões, sem ignorar os valores fundadores dos Estados Unidos, a enxurrada de vítimas e riscos para todos invocam a prioridade absoluta de “parar” (Papa Francisco).
Kirill, que construiu a ideologia do Russkij mir (mundo russo) fornecendo a Putin o quadro visionário para um novo império "soviético", tem alguns antivírus em seu acompanhamento familiar e pessoal com relação a derivas imperiais. A história de Vladimir Michajlovič Gundjaev (nome civil de Kirill) é menos banal do que se pensa. Filho e neto de padres que conheceram os gulags stalinistas, Kirill foi ordenado aos 22 anos, depois de apenas três anos no seminário de Leningrado.
Aos 25 anos, ele era o representante do patriarca de Moscou no Conselho Ecumênico de Igrejas. Descobriu o Ocidente e foi considerado "pró-ocidental" na época de sua eleição ao patriarcado (2009). Um dos textos magistrais de referência (Os fundamentos do pensamento social da Igreja Ortodoxa Russa), inspirado por ele e aprovado pelo concílio dos bispos em 2000, considera necessária a oposição da Igreja "à condução de uma guerra civil ou ao início de uma guerra de agressão contra estados estrangeiros" (cap. 3, n. 8). Se o conflito é entre povos "irmãos", cai-se no primeiro caso, se é entre Estados, cai-se no segundo.
E no cap. 2, não. 4, lemos que a Igreja é obrigada a "ficar ao lado da vítima de uma aberta agressão". Mesmo em um documento que amplia e enfatiza os deveres para com a pátria e sua defesa não faltam elementos para um distanciamento crítico das atuais operações de guerra.
“É preciso ter presente que na cultura ortodoxa a mentira política afirmada pelo bispo (ou patriarca) não é considerada um pecado, mas sim uma forma de sabedoria pastoral. Para o ‘bem da Igreja’ ele tem permissão para adular qualquer tirano" (A. Kuraev). A declaração de Kirill de 4 de maio passado pertence a essa "falsificação": "A Rússia nunca atacou ninguém... apenas defendeu suas fronteiras"?
Uma reversão de seu juízo entraria em conflito com alguns bispos e no sínodo sua autoridade seria muito enfraquecida. Até agora, nenhuma voz episcopal se opôs à guerra. E, no entanto, interpretaria o sofrimento de centenas de padres ortodoxos que, no início de março, subscreveram um apelo "a todos aqueles de quem depende a cessação da guerra fratricida na Ucrânia, com um convite à reconciliação e um cessar-fogo imediato". Ao pôr em causa a própria tranquilidade e em risco a possibilidade de sustentar a família (muitos deles já perderam a titularidade da paróquia), eles lamentam "o abismo que os nossos filhos e netos na Rússia e na Ucrânia terão de ultrapassar para começar a ser amigos novamente, se respeitar e se amar".
Eles se posicionam em defesa dos milhares de pessoas que, desafiando as leis draconianas contra o dissenso, afirmam: "Nenhum apelo não violento pela paz e pelo fim da guerra deveria ser reprimido à força e considerado uma violação da lei". Os padres abrem o olhar para outro setor que encontraria conforto na mudança de orientação de Kirill, aquele das mães dos militares mortos. Não gostaríamos de "carregar o pesado fardo da maldição das mães".
Um dos signatários, Giovanni Guaita, convida Kirill à coragem do metropolita pró-russo da Ucrânia (que agora se distanciou de Moscou): “Acho que é uma questão de tempo. Existe também uma opinião pública dentro da Igreja que está amadurecendo e que, na minha opinião, está crescendo... Estou certo de que a massa crítica de pessoas para quem a justiça, a verdade, a paz são conceitos estáveis, não suscetíveis de serem questionados por vantagens políticas ou estratégicas, esteja aumentando”.
Uma palavra de coragem e verdade do patriarca é pedida pelas outras Igrejas cristãs: Bartolomeu de Constantinopla: “É impossível que as Igrejas não condenem a violência e a guerra. A Igreja Russa nos decepcionou. Não esperava que ela e o Patriarca Kirill constituíssem a trágica exceção"; o arcebispo de Canterbuty, Welby: o patriarca deve falar "em público a favor da paz e do cessar-fogo"; o Papa Francisco: "Irmão, não somos clérigos de Estado, não podemos utilizar a linguagem da política, mas aquela de Jesus. Somos pastores do mesmo santo povo de Deus. Por isso devemos buscar caminhos de paz, para silenciar as armas"; C. Krieger, presidente da KEK (conferências das Igrejas Protestantes): "Os líderes religiosos e políticos de todo o mundo, assim como os fiéis das várias Igrejas, estão esperando que você reconheça a agressão, faça um apelo à liderança política do seu país para pôr fim à guerra e retorne ao caminho do diálogo diplomático e da ordem internacional”; I. Sauca, Secretário Geral do Conselho Ecumênico de Igrejas: "Intervir e pedir publicamente um cessar-fogo".
A coragem evangélica também seria decisiva para ele. Kirill escapou das sanções europeias impostas aos oligarcas mais próximos do Kremlin, graças à oposição, ainda que inteiramente instrumental, do presidente húngaro Victor Orban, mas não às correspondentes censuras do Reino Unido.
Segundo a ministra das Relações Exteriores, Liz Truss, Kirill "repetidamente abusou de sua posição para justificar a guerra". A falta de uma palavra sua de verdade será uma tragédia para o cristianismo europeu, mas também um triste declínio em sua jornada humana e de seu serviço eclesial.
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Kirill: a palavra que falta. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU