Os valores universais: uma tragédia ocidental

03 Junho 2022

 

"Os valores universais são um catálogo que pode ser consultado por todos, mas só as potências hegemônicas decidem o que entra nele", escreve Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em artigo publicado por Jornal de Letras, de Portugal, e reproduzido por Sul 21, 01-06-2022.

 

Eis o artigo.

 

Uma das características do pensamento dominante consiste em contrastar os princípios que subscreve com as práticas dos que se lhe opõem. Na época moderna, tudo começou com a expansão colonial do século XV e XVI pela mão dos portugueses e dos espanhóis sob a tutela do Vaticano. Missionários, descobridores, conquistadores anunciavam a “boa nova” de uma religião tida por única e a única verdadeira, cujos princípios garantiam a igual dignidade de todo o ser humano perante a criação divina e o direito de todos a libertarem-se da superstição e a abraçarem a nova civilização, e a aceder a todos os benefícios que dela decorriam. A suposta qualidade universal dos valores de que eram portadores era tão saliente quanto evidente era o contraste entre eles e as práticas das populações nativas, práticas consideradas selvagens, bárbaras, primitivas, canibais, pecadoras, cuja erradicação justificava a “missão civilizadora”.

 

Uma linha abissal separava de tal modo os princípios e os valores europeus dessas práticas que as populações nativas não podiam ser sequer consideradas plenamente humanas. Por isso, não tratar as populações segundo esses princípios não só não era contraditório como era a única solução lógica. Se eram sub-humanos, não fazia sentido aplicar-lhes os princípios e valores próprios de seres plenamente humanos. A universalidade dos princípios era afirmada ao ser negada a sua aplicação a seres sub-humanos. Em relação a estes, o importante era evangelizá-los, levá-los a abandonar as práticas selvagens, o que se tornou mais fácil e convincente depois que o Papa Paulo III reconheceu em bula de 1537 que os índios tinham alma.

 

Brevísima relación de la destrucción de las Indias, livro de Bartolomé de Las Casas (Fonte: Wikimedia Commons)

 

Este dispositivo colonizador realizava duas operações cruciais: impedia o reconhecimento de princípios e valores diferentes dos europeus; impedia contrastar os princípios e valores europeus com as práticas dos europeus. Tratava-se de uma nova versão de universalidade feita de duas ressalvas que a negavam, mas cuja negação era eficazmente invisibilizada. Basta ler a Brevísima relación de la destrucción de las Indias de Bartolomé de Las Casas, publicada em Sevilha em 1552, para termos uma ideia de como este dispositivo operou, e os crimes, atrocidades, destruições e pilhagens que ele justificou.

 

Las Casas mostra de modo eloquente as duas verdades ocultadas pelo dispositivo colonial. Por um lado, o contraste chocante entre os princípios proclamados pelos conquistadores europeus e as suas próprias práticas; por outro lado, o retrato falso ou parcial das práticas indígenas e a recusa dos europeus em reconhecer que esses povos tinham princípios e valores que rivalizavam, por vezes com vantagem, com os europeus. Tanto o escândalo da obra de Las Casas ao tempo em que foi publicada como o sucesso que veio a ter no século seguinte mostram em que medida o dispositivo colonial próprio do pensamento dominante europeu, apesar de desmascarado, continuou a vigorar como que animado por uma hipocrisia estrutural que, em vez de o enfraquecer, se transformou em sua fonte de vida. Até hoje.

 

Do ponto de vista da sua gênese, os princípios e valores universais europeus (mais recentemente também ditos ocidentais) são uma contradição nos termos porque, se são europeus, não podem ser considerados universais e, se são universais, não são europeus. Mas esta contradição é provavelmente própria de outros princípios e valores não europeus. E o mesmo pode dizer-se da hipocrisia ou duplicidade estrutural que habita quaisquer conjuntos de princípios e valores formulados em abstrato. O que distingue os princípios europeus é o domínio político, econômico e cultural do conjunto de países que desde o século XV-XVI se arrogaram o direito de os reclamar como seus e de os impor aos outros sob o pretexto de serem universais. Esse conjunto variou ao longo dos séculos. Começou por ser ibérico, depois foi europeu, e é euro-norte-americano desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Merecem, pois, uma reflexão específica. São muitos os dispositivos que asseguram a duplicidade e a põem ao serviço dos interesses da potência hegemônica.

 

(1) Fazer valer universalmente os valores universais é um dever dos povos que os reconhecem como seus. A imposição, mesmo que motivada por interesses próprios, deve ser sempre legitimada por razões benévolas e do interesse das próprias vítimas da imposição. Foi com esta justificação que o direito internacional emergiu, pela pena de Francisco de Vitoria (1483- 1546), para justificar a ocupação colonial de povos que, apesar de humanos, não se sabiam governar (tal como as crianças) e deviam, por isso, ser objeto de proteção e tutela por parte dos colonizadores.

 

(2) A hierarquia de valores. Todos os valores são universais, mas uns são mais importantes que outros. Com John Locke (1632-1704), nos alvores do capitalismo, o direito de propriedade individual precede todos os outros. Ainda que Locke limitasse inicialmente o direito natural de propriedade aos frutos do trabalho, esse direito foi-se estendendo até abranger tudo o que fosse necessário para a produção, e esta consiste na criação de valores de troca. Desde então, a hierarquia entre os valores depende das conveniências conjunturais de quem a pode impor. Se nuns casos é prioritária a defesa da soberania dos Estados, noutros é-o a defesa da auto determinação dos povos. Por sua vez, a segurança nacional (um conceito recente que veio substituir o conceito de segurança humana) tem vindo a prevalecer sobre os direitos e liberdades da cidadania, tal como a segurança alimentar se tem vindo a impor à soberania alimentar.

 

John Locke (Fonte: Wikimedia Commons)

 

(3) A seletividade e os critérios duplos na invocação dos valores universais. Entre 1975 e 2000, os média globais silenciaram as atrozes violações de direitos humanos do povo timorense (acabada de conquistar a independência contra o colonialismo português) por parte da Indonésia, que invadiu o país poucos dias depois da visita de Henry Kissinger a Jacarta. Para os EUA, a Indonésia era na altura um país estrategicamente importante para travar o avanço do comunismo na região, e esse fato justificava o sofrimento imposto aos timorenses. Na atual guerra da Ucrânia, muitos crimes de guerra terão sido cometidos por ambas as partes. Mas o silêncio sobre crimes cometidos por tropas ucranianas contrasta com o incessante noticiário sobre os crimes das tropas russas. Passou despercebida a notícia de 13 Maio no insuspeito Le Monde: tinha acabado de confirmar a autenticidade do vídeo em que soldados ucranianos matam a sangue frio prisioneiros de guerra russos desarmados, um gravíssimo crime de guerra nos termos da Convenção de Genebra. Veremos se será punido como todos os outros que tenham sido cometidos. A mesma seletividade ocorre no caso de outro valor universal, o direito à auto-determinação dos povos. Como temos visto, em alguns casos ele é justamente defendido (o caso da Ucrânia), enquanto noutros ele é injustamente negado (casos da Palestina e da República Árabe Saaraui Democrática).

 

(4) O caráter sacrificial da defesa de valores, isto é, a necessidade de os violar para supostamente os defender. Foi em nome da democracia e dos direitos humanos que se invadiu um país soberano, o Iraque, e se cometeram gravíssimos crimes de guerra, hoje documentados graças às revelações da Wikileaks. O mesmo se passou no Afeganistão, Síria, Líbia e, anteriormente, no Congo-Kinshasa, Brasil, Chile, Nicarágua, Guatemala, Honduras, El Salvador, etc. Mas tudo começou muito antes, desde os primórdios do colonialismo. O genocídio dos povos indígenas foi sempre justificado para os salvar de si mesmos. E Afonso de Albuquerque, segundo Governador da Índia, sempre justificou a conquista do comércio das especiarias, até então controlado pelos comerciantes muçulmanos, como uma vitória da cristandade sobre o Islã.

 

(5) A importância de manter o monopólio sobre os critérios para decidir sobre situações normais e situações de emergência ou de exceção, sendo certo que nestas últimas é legítimo violar alguns dos princípios e valores universais. Depois dos ataques às Torres Gêmeas de Nova Iorque, muitos países foram levados a adotar, independentemente das condições locais, medidas excepcionais de luta contra o terrorismo, nomeadamente a promulgar novas normas de criminalização do terrorismo (o “direito penal do inimigo”) que violam os princípios constitucionais do primado do direito. Muitos países aproveitaram esta legislação de exceção para eliminar ou neutralizar adversários políticos, agora considerados terroristas. Foi o caso dos militantes indígenas Mapuches do Chile por defenderem a integridade dos seus territórios.

 

 

(6) A interpretação legítima dada aos valores universais é a que é ratificada pela potência hegemônica do momento. As liberdades autorizadas justificam a repressão das liberdades não autorizadas. Sabe-se hoje que o regime da Líbia foi violentamente eliminado porque o General Kadhafi pretendia dar consistência política à União Africana e substituir o dólar nas transações de petróleo. Da mesma forma, muitos países, sobretudo latinoamericanos, centro-americanos e asiáticos, sabem por trágica experiência que eleger democraticamente os seus presidentes não os protege de interferências, golpes e mesmo imposição de ditaduras, se os EUA virem na eleição uma ameaça aos seus interesses econômicos ou geo-estratégicos.

 

(7) Quando não é possível silenciar as violações dos valores universais por parte de aliados da potência hegemônica, tais violações devem ser trivializadas ou justificadas por referência a outros valores supostamente superiores. A ocupação colonial e ilegal da Palestina por parte de Israel — uma das mais graves violações do direito internacional dos últimos sessenta e cinco anos — tem beneficiado de muitas justificações diretas ou indiretas por parte da Europa (incapaz de enfrentar de forma mais honesta as suas responsabilidades históricas) e por parte dos EUA (“Israel é o único país democrático da região”). Crimes de Estado, como o recente assassinato da jornalista palestina Shireen Abu Akleh, não merecem mais que uma nota de pé de página, mesmo se tais crimes obedecem a um padrão. Segundo o Ministério da Informação da Palestina, 45 jornalistas foram assassinados por forças israelenses desde 2000.

 

(8) Expor documentadamente a violação dos valores universais por parte de quem os advoga e, com isso, a hipocrisia e a duplicidade reinantes é considerado um ato inimigo e suscita uma reação implacável que nenhum valor universal pode limitar. Nem sequer o direito à vida. Julian Assange é hoje o símbolo vivo desta duplicidade. Ter exposto os crimes de guerra cometidos no Iraque e ter defendido o anonimato das suas fontes transformou-o num alvo a abater sem dó nem piedade. Com a sua ação, Assange defendeu um dos valores universais, o direito à informação e à liberdade de expressão. Os crimes que denunciou deviam ser de imediato investigados e punidos em tribunais nacionais e internacionais. Em vez disso, é ele quem é punido e será provavelmente eliminado. Em vídeo recente, a sua esposa declara ter informações de que a CIA planeia matá-lo se não for extraditado para os EUA. De todo o modo, nas condições em que se encontra, a sua morte nunca será uma morte natural.

 

 

(9) Os valores universais são um catálogo que pode ser consultado por todos, mas só as potências hegemônicas decidem o que entra nele. Por um lado, são considerados ocidentais valores e princípios que muitas vezes na sua origem não são europeus. A sua apropriação quase nunca decorre de diálogos interculturais horizontais, antes envolve frequentemente distorções e seletividades ideológicas. A filosofia grega, que todos prezamos, só em meados do século XIX foi considerada patrimônio exclusivo e distintivo da Europa. Até então era consensual reconhecer as suas raízes na cultura antiga do norte de África, nomeadamente de Alexandria, e da Pérsia. Também se reconhecia que, sem a cooperação da cultura árabe muçulmana, a filosofia grega não teria chegado ao nosso conhecimento: da Casa da Sabedoria da dinastia dos Abássidas em Bagdad no século IX até à escola de tradutores de Toledo dos séculos XII e XIII. Também o Cristianismo é considerado um patrimônio ocidental, apesar de ter nascido no que é hoje o Próximo Oriente.

 

Por outro lado, desde o século XVI não são admitidos no catálogo dos valores universais contribuições não ocidentais que não se deixem submeter a apropriação (melhor, expropriação). A razão desta situação resulta, como referi, do domínio global, econômico, social, político e cultural do mundo europeu desde o século XV-XVI. Num momento em que a China emerge como uma potência capaz de disputar o domínio global ocidental, é oportuno perguntar por quanto tempo o catálogo dos valores universais vai ficar sob domínio ocidental e com que consequências. As transformações não serão necessariamente para melhor, e podem até ser para muito pior, sobretudo para a região cultural que até agora dominou o mundo. É inquietante imaginar que os países ocidentais sejam amanhã quem sofre com a duplicidade e hipocrisia dos valores universais em mãos de novos “donos”.

 

 

É possível que a caricatura degradante que o ocidente fez do oriente (uma caricatura denunciada por Edward Said em Orientalism) seja amanhã substituída pela caricatura igualmente degradante que o oriente fará do ocidente (o Ocidentalismo)? Passar-se-á do eurocentrismo ao sinocentrismo? Ou poderemos finalmente aspirar a um mundo sem pontos cardeais nem centros hierárquicos onde a diversidade cultural, política e epistêmica seja possível, sob a égide de valores emancipatórios que não se deixem violar segundo as conveniências de quem tem mais poder?

 

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