30 Mai 2022
Na academia católica, a Teologia e as Ciências Sociais tornaram-se intimamente entrelaçadas nas últimas décadas, mas ao mesmo tempo a Teologia e a História parecem ter se separado uma da outra, o que é um problema. Saber como funciona a “compreensão histórica” é fundamental para a pesquisa; é o que abre espaço para a complexidade, para a ambiguidade, para ideias e respostas que desafiam (ou até confundem) as expectativas em vez de apenas satisfazê-las.
A análise é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por Commonweal, 26-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não há nenhuma narrativa histórica revisionista tão poderosa quanto aquela que mistura religião e política em tempos de guerra. O Patriarca de Moscou, Kirill, demonstrou isso ao reduzir as complexidades da história a contos de supremacia e de vitimização a fim de justificar a invasão da Ucrânia pela Rússia – demonstrando, nesse processo, o perigo de vincular as obsessões de uma Igreja pela dominação mundial a leituras etnocêntricas do passado.
Mas não é um fenômeno limitado à Rússia ou à Ortodoxia russa. Abundam as evidências de desdém pela história na elaboração de argumentos teológicos e religiosos: isso faz parte do nosso “presentismo” do século XXI após o colapso dos dois futurismos do século passado, o fascismo e o comunismo.
O “presentismo” não é apenas uma perspectiva que limita o arco de tempo ao passado recente e ao futuro próximo; ele também marginaliza as tentativas de olhar para os fatos em sua complexidade histórica. Assim, a memorialização e a monumentalização suplantam a história ao levantar preocupações políticas.
Esse “presentismo” também é visível no discurso público sobre o catolicismo: o ataque contra os argumentos históricos foi normalizado, sem nenhuma consideração pelos fatos da história, de formas impensáveis em outros campos da teologia.
Por exemplo, ninguém hoje sustentaria seriamente que o próprio Moisés escreveu o Pentateuco. Mas agora é comum ouvir neointegralistas afirmarem que os regimes autoritários pré-Segunda Guerra Mundial na Europa estavam ajudando na missão evangelizadora da Igreja Católica.
Outro exemplo: a simplificação excessiva do debate em torno do matrimônio que antecedeu e se seguiu à Amoris laetitia do Papa Francisco. Os defensores da suposta imutabilidade da doutrina católica muitas vezes revelaram não apenas uma falta de conhecimento, mas também uma falta de interesse pela complicada história do casamento na Igreja Católica.
Na extrema direita, a negação da história surge da ignorância ou é usada para esconder fatos embaraçosos. Mas, na corrente teológica e política católica atual, as razões por trás do seu uso são mais complicadas, e isso pode ter consequências reais sobre o modo como as instituições acadêmicas lidam com a diversidade e a inclusão.
As teologias cristã e católica são profundamente contextuais e históricas. Cursos de Introdução à Teologia ou de Teologia Fundamental em particular requerem uma contextualização histórica para desafiar caracterizações banais e reducionistas da tradição teológica como exclusivamente “europeia” ou “ocidental” e “branca” e, portanto, não mais ensinável.
Ora, não há nenhuma dúvida de que a diversidade precisa ser um importante componente no ensino de textos religiosos e teológicos, não apenas para reconhecer a realidade e as necessidades de um corpo discente mais diversificado ou para satisfazer os administradores universitários, mas também para a própria integridade da disciplina.
O problema é quando o impulso à diversidade vem às custas de uma correta compreensão da diversidade já existente na tradição cristã e católica (que não deve ser confundida com a história europeia), na qual as relações com o judaísmo e o Islã e as suas contribuições desempenham um papel fundamental, inclusive na Europa. Em uma cultura anti-histórica, tornou-se mais difícil dedicar tempo para mostrar como a riqueza da tradição realmente surge da diversidade.
Privilegiar as nossas atuais noções de diversidade em detrimento da história impacta não apenas na trajetória da produção acadêmica de longo prazo na academia católica, mas também nos modos pelos quais os estudantes são ensinados sobre teologia e religião em mais de 200 faculdades e universidades católicas.
Por exemplo, ensinar os textos dos Padres da Igreja pode exigir não apenas o fato de reservar um tempo significativo para contextualizar, mas também para explicar por que os Padres da Igreja devem ser lidos, em primeiro lugar (e quase tendo que pedir desculpas por isso).
Esse é exatamente o contrário do problema que Yves Congar descreveu em seu ensaio sobre as tradições – a preferência sistemática pelos Padres que derivava de um anti-intelectualismo questionável em favor de “uma teoria essencialmente historicizante, documental, estática e acadêmica da Tradição, caminhando de mãos dadas com uma insuficiente estima pela Igreja viva”.
De fato, em um departamento de Teologia/Ciências da Religião de uma faculdade católica engajada em um programa de diversidade e inclusão, pode parecer “politicamente” mais fácil agora ensinar budismo ou hinduísmo do que patrística ou o Concílio de Trento. Ou talvez apenas mais fácil de modo geral: ensinar sobre Trento ou os Padres requer um sério conhecimento histórico desenvolvido ao longo de anos de estudo, bem como conhecimento de grego e latim, além de outras línguas nas quais os estudos mais importantes foram escritos – um trabalho nem sempre necessariamente requerido para o ensino no contexto das diversas tradições.
No entanto, as línguas estrangeiras (antigas e modernas) são necessárias para ter um acesso real à diversidade real. Hoje, o latim é geralmente identificado com o conservadorismo (a “missa antiga”, o direito canônico) e não com os diversos tipos de latim com os quais a tradição católica interagiu (por exemplo, a genuína obscenidade de Catulo).
Além disso, o apelo popular hoje em dia pela inculturação do cristianismo e do catolicismo na diversidade está procedendo pela exculturação dos nossos estudos teológicos em relação a aspectos importantes da tradição católica – pela ausência da real diversidade interna à tradição (por exemplo, a pouco conhecida contribuição dos bispos do norte da África e do Oriente Médio para a redação das passagens mais cruciais do Nostra Aetate, o documento do Vaticano II sobre as religiões não cristãs).
Tudo isso está de acordo com as pretensões de uma tradição intelectual ocidental que, teoricamente, busca ser mais global, mas, de fato, corre o risco de se tornar mais paroquial, alheia à sua própria tradição.
Uma narrativa político-religiosa de direita muitas vezes explica a sua oposição à diversidade em termos de preservação da cultura europeia (branca), ao mesmo tempo em que reclama que os defensores da diversidade são surdos aos seus argumentos e raciocínios. O problema, a meu ver, pelo contrário, é que, mesmo quando visamos à diversidade, devemos ter o cuidado de lembrar a tradição, enfatizar o sério conhecimento dessa tradição, para não fazermos tolices como censurar a literatura ou pensadores de eras anteriores.
Na academia católica, a Teologia e as Ciências Sociais tornaram-se intimamente entrelaçadas nas últimas décadas, mas ao mesmo tempo a Teologia e a História parecem ter se separado uma da outra, o que é um problema. Saber como funciona a “compreensão histórica” é fundamental para a pesquisa; é o que abre espaço para a complexidade, para a ambiguidade, para ideias e respostas que desafiam (ou até confundem) as expectativas em vez de apenas satisfazê-las.
Mas, no discurso da diversidade, alguns temas, ideias ou atividades são “boas” por definição, e, uma vez identificadas, tudo o que se segue – do ensino à publicação, passando pelo financiamento – visa simplesmente a comunicar esse “bem” do modo mais efetivo possível, e que se danem a complexidade e a ambiguidade.
Se o neomedievalismo de direita vê esperança apenas em um passado idealizado, pode parecer que os defensores da diversidade querem rejeitar o passado inteiramente. Tal hostilidade a vínculos verificáveis entre a história e a tradição é destrutiva e autorreforçadora, um sinal de decomposição cultural.
Assim, nas instituições católicas, o estudo da teologia e da religião no que se refere ao estudo da história está em apuros. Parece que ele não precisa da história ou rejeita as contribuições da história. Mas, mesmo que não seja assim, ele teria que lidar com a forma como o estudo da história também foi forçado a lidar com uma mudança de ênfase para os estudos sociais e culturais, de uma forma que rejeita a contribuição da história, se ela for incapaz de sustentar uma lógica reparacionista em relação às vítimas da história.
Parece ter se tornado muito mais difícil escrever sobre a história – até mesmo a história da Igreja – como “um ato de fé na possibilidade de um mundo que é compartilhado mesmo entre universos de diferenças”, como escreveu Rowan Williams alguns anos atrás.
E foi há quase 30 anos que David Tracy escreveu que todos devemos enfrentar a “realidade fascinans et tremendum do nosso presente policêntrico”. Hoje, uma releitura desafiadora da história da Igreja se caracteriza não pela indignação moral a serviço da reforma teológica e institucional; ela se caracteriza pelo impacto de uma crise vertical de todas as instituições – uma lacuna que personalidades católicas parainstitucionais, alternativas e “da moda” ficam felizes em preencher e que apresentam uma ameaça maior em certos aspectos do que a própria crise institucional.
Isso é importante por causa do curto-circuito na eclesiologia – ou seja, uma certa ideia da Igreja hoje com uma ênfase na justiça social. O debate teológico parece dirigido a um público já convencido da bondade das causas pelas quais luta.
A perda da história não é apenas um problema para entender o passado da religião; ela também enfraquece o processo do pensamento simbólico e da imaginação moral. A tradição católica precisa aceitar políticas democráticas na Igreja e no Estado, uma abordagem mais desenvolvimentista da doutrina, lidando de modo não apologético com a contribuição das teologias cristãs ao colonialismo, ao racismo e à supremacia branca.
Como Michael Hollerich escreveu na conclusão do seu recente livro sobre Eusébio de Cesareia, “é difícil para este escritor ao menos imaginar o cristianismo histórico sem alguma versão de ‘apostolicidade’ como garantia de continuidade ao longo do tempo (e alguma reivindicação de ‘catolicidade’ ao longo do espaço) e que essa continuidade está ligada de alguma forma com a estrutura da Igreja, quer pensemos que ela se originou na prática sinagogal judaica, nas assembleias municipais gregas, na governança doméstica ou em uma combinação de todas as três. Um cristianismo puramente carismático nunca existiu”.
A desenfatização da história na teologia católica e nas instituições católicas não é simplesmente o resultado do colapso das humanidades. Ela está relacionada também com a massiva mudança no discurso sobre o termo “católico”, da antiga legitimidade conferida pela ecclesia (uma tradição de eclesiocentrismo opressivo, certamente, mas também um senso de pertença eclesial mais saudável) até a nova legitimidade exigida por um senso de societas baseado na justiça social, na diversidade e na inclusão.
Mas a história deve ter um papel no modo como estudamos a tradição cristã e católica no contexto da diversidade e da inclusão. Sem ela, o catolicismo simplesmente se tornará vulnerável a novas formas de homogeneidade e exclusão.
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Aprendendo com o passado: a diversidade enriquece a tradição católica. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU