“A guerra na Ucrânia e as tensões em Hong Kong expuseram a difícil coexistência de diferentes, senão completamente opostas, interpretações históricas e políticas dessas duas situações. Isso é verdade mesmo entre os católicos que apoiam total e sinceramente o Papa Francisco. Essa diversidade de opiniões é mais pública do que costumava ser, especialmente em uma Igreja Católica global que agora está lidando com a ruptura da ordem internacional. Reflete a “mudança de época” sobre a qual Francisco falou muitas vezes”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 25-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Nas últimas semanas, alguns observadores da Igreja criticaram a Santa Sé por suas declarações e atividades diplomáticas em duas frentes críticas: a repressão da China a Hong Kong e a invasão da Ucrânia pela Rússia.
A invasão está agora em seu quarto mês. E sem fim à vista, há o risco de que as críticas do Vaticano à OTAN e aos Estados Unidos aumentem.
Apesar de toda a ajuda humanitária que as organizações católicas têm facilitado, é evidente que o Papa Francisco e seus assessores não conseguiram desempenhar o papel de mediadores no conflito Rússia-Ucrânia.
Depois veio a notícia da prisão do cardeal Joseph Zen em 11 de maio pelas autoridades de Hong Kong. Foi um sinal de deterioração da situação para os católicos na Região Administrativa Especial da China comunista, vindo apenas alguns dias depois que John Lee, apoiado por Pequim, foi eleito o novo líder de Hong Kong.
Lee – que por acaso é católico como sua antecessora Carrie Lam – concorreu sem oposição.
Existem diferenças importantes entre a forma como o Vaticano está envolvido nessas duas situações.
A primeira diferença é histórica e geopolítica. O acordo histórico que a Santa Sé e o governo de Pequim assinaram em 2018 e depois renovaram dois anos depois foi fruto de décadas de engajamento diplomático do Vaticano com a China comunista.
Por mais limitado que fosse esse acordo (referia-se apenas à nomeação de bispos), a recente deterioração da situação dos católicos na China demonstra a natureza paradoxal de tal acordo.
Do outro lado da massa terrestre eurasiana, a situação criada pela decisão de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia pegou a Santa Sé (como quase todo mundo) de surpresa.
Embora o papel da China na Ásia e no mundo tenha aumentado nas últimas décadas de forma estável e calibrada, há enormes incógnitas sobre o futuro imediato – político, econômico e religioso – da Rússia, territorialmente o maior país do mundo.
Uma segunda diferença entre as duas situações diz respeito à sua relevância ecumênica.
Em relação à Rússia e à Ucrânia, a existência da Igreja Greco-Católica Ucraniana é fundamental para entender a relação de Roma com os dois centros rivais da Ortodoxia Oriental, o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla e o Patriarcado de Moscou.
Não há camadas historicamente estratificadas de questões ecumênicas na China como nos dois países do Leste Europeu.
O Bispo de Roma deve manter um canal aberto de comunicação com Pequim porque, ao contrário das Igrejas não católicas na China, é percebida como “potência estrangeira”.
Isso coloca as relações entre a Santa Sé e Pequim mais no plano político e diplomático do que no plano ecumênico.
E, consequentemente, isso simplifica, ou pelo menos não complica ainda mais, os esforços da Secretaria de Estado e do papa em situações de conflito e guerra.
A terceira diferença na forma como o Vaticano se relaciona com Rússia-Ucrânia, por um lado, e China-Hong Kong, por outro, é eclesial.
E parte disso é a forma como os líderes da Igreja local nesses lugares reagiram às decisões de cima para baixo tomadas pelo Vaticano sobre suas relações com os líderes políticos da Ucrânia, Rússia e China.
É sabido que o cardeal Zen protestou muitas vezes e de diferentes maneiras, muitas vezes de forma muito pública e desafiadora, contra a decisão do Vaticano de negociar com Pequim e assinar o acordo de 2018.
Os líderes da Igreja greco-católica ucraniana – que há muito sentem que o Vaticano não os ouve, especialmente desde a invasão – adotaram, de maneira bem diferente, um estilo diplomático muito mais intra-eclesial, mesmo em meio à crise trágica situação que vive o seu país e a sua Igreja.
Essas três diferenças – históricas/geopolíticas, ecumênicas e eclesiais – ajudam a explicar as diferentes maneiras pelas quais o Vaticano se pronunciou nas duas frentes.
Nos últimos anos, as declarações oficiais que o Vaticano e o papa emitiram sobre a China foram muito disciplinadas (embora não tanto durante as entrevistas). Estes seguiram o mesmo estilo silencioso da Ostpolitik da Santa Sé dos anos 1960 e 1970.
Mas este não foi o caso nos últimos três meses em relação à Ucrânia. Em vez disso, o papa expressou publicamente a visão do Vaticano em homilias, orações e entrevistas.
Como resultado, a Secretaria de Estado, o cardeal Pietro Parolin, e o “ministro das Relações Exteriores do papa”, o arcebispo Paul Gallagher, tiveram que reequilibrar os comentários do papa. Este foi especialmente o objetivo da viagem do arcebispo inglês de 18 a 20 de maio à Ucrânia.
Mas agora a pressão também vem da China. Francisco não mencionou a prisão do cardeal Zen em seu discurso em Regina Coeli no último domingo, mas expressou sua proximidade espiritual com os católicos chineses.
Em vez disso, ele disse esperar “que a Igreja na China, em liberdade e tranquilidade, possa viver em efetiva comunhão com a Igreja universal, e possa exercer sua missão de anunciar o Evangelho a todos, e assim oferecer uma contribuição positiva também para o progresso espiritual e material da sociedade”.
Ele também acrescentou esta importante linha: “Estou acompanhando atentamente e ativamente a vida e as situações muitas vezes complexas dos fiéis e pastores, e rezo todos os dias por eles”.
A pressão pode ser ainda maior no caso de o status quo em relação a Taiwan mudar repentinamente.
Muitos temem que a China esteja em guerra com a nação insular, o que teria amplas consequências geopolíticas. Também teria ramificações marcantes para a doutrina do Vaticano sobre as relações internacionais.
Os limites da velha Ostpolitik estão agora sendo esticados ao ponto de ruptura.
Quando o Vaticano tratou da União Soviética e do Leste Europeu no bloco comunista, seu objetivo era melhorar a vida dos católicos comuns, facilitando muito as comunicações com Roma e o resto da Igreja, e até abrindo a possibilidade de viagens.
Mas a guerra na Ucrânia mostrou que esta Ostpolitik não pode ser empregada para parar uma guerra, ainda que a área geográfica e os interlocutores políticos e ecumênicos sejam o mesmo povo ou seus sucessores diretos.
A Ostpolitik era um modus non moriendi (uma forma de não morrer nas mãos dos comunistas) mais do que um modus vivendi (um arranjo para coexistir pacificamente), como o cardeal Agostino Casaroli (morto em 1998), arquiteto-chefe e agente dessa política diplomática, famosamente definiu.
Lidar com a China nos últimos anos se beneficiou dessa tradição diplomática. Mas as coisas mudam. A guerra na Ucrânia mostrou isso, e isso também pode acontecer com a China.
Não existe um manual único do Vaticano sobre como lidar com regimes autoritários e repressivos. No mundo das relações internacionais e na diplomacia, não há milagres.
É importante ver como as situações na Rússia e na China estão afetando a Igreja. O papa não está sozinho ao lidar com essas tensões. Há também muitos outros atores políticos e diplomáticos, bem como figuras eclesiais, dentro da Igreja Católica.
A guerra na Ucrânia e as tensões em Hong Kong expuseram a difícil coexistência de diferentes, senão completamente opostas, interpretações históricas e políticas dessas duas situações. Isso é verdade mesmo entre os católicos que apoiam total e sinceramente o Papa Francisco.
Essa diversidade de opiniões é mais pública do que costumava ser, especialmente em uma Igreja Católica global que agora está lidando com a ruptura da ordem internacional. Reflete a “mudança de época” sobre a qual Francisco falou muitas vezes.
Seria um erro olhar para essas divergências sempre como lèse-majesté da autoridade papal ou, pior, como inteligência do inimigo.