Em busca de uma Espiritualidade da Diversidade - Parte I. Artigo de Edelson Soler

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30 Novembro 2021

 

"O presente artigo pretende ser apenas uma contribuição inicial à conceituação da Espiritualidade da Diversidade. E ele inicia com uma afirmação perene: Deus ama incondicionalmente a cada criatura humana e Jesus de Nazaré nunca rejeitou alguém por causa de sua sexualidade", escreve Edelson Soler, professor, escritor e membro do Grupo de Ação Pastoral da Diversidade (GAPD SP) e da Comissão Regional para o Diálogo com a Diversidade, órgão ligado à Região Sé da Arquidiocese de São Paulo.


Eis o artigo.

 

Nos dias 20 e 21 de novembro de 2021, aconteceu o III Encontro Nacional de Grupos Católicos LGBTQIA+, evento digital de grande sucesso, aberto com uma mensagem gravada pelo jesuíta norte-americano, Padre James Martin. No período de 09 a 16 de setembro de 2022, haverá a IV Assembleia da Global Network Rainbow Catholics (Rede Mundial de Católicos do Arco-Iris), na Cidade do México.

 

Os cristãos e católicos que integram os Grupos da Diversidade, constituem um dos movimentos eclesiais que se têm firmado, em todo o mundo, especialmente a partir das atitudes pastorais do Papa Francisco. Entre outras iniciativas, Francisco enviou, no dia 21 de junho de 2021, uma carta de encorajamento ao Padre James Martin, por ocasião de sua participação no Outreach 2021: LGBTQ Catholic Ministry Webinar.

 

O tempo de Francisco tem sido, para uma multidão de pessoas, um Kairós (em grego καιρός, "o momento oportuno"), tempo no qual é preciso atenção porque estamos sendo visitados, de maneira especial, por Deus.

 

Tempo em que pessoas que foram historicamente violentadas e descartadas, até mesmo por setores do cristianismo, voltam a ter a esperança de ocupar o lugar oferecido por Deus a elas na Igreja e na sociedade.

 

Dentro desse movimento espiritual que vai reanimando a Igreja com um novo entusiasmo, resgata-se uma espiritualidade, que chamaremos de Espiritualidade da Diversidade, nova porque histórica, porém intimamente vinculada à experiência original dos discípulos e discípulas que acompanharam Jesus de Nazaré e às primeiras vivências das comunidades cristãs.

 

Essa forma de viver a espiritualidade cristã exige abertura e discernimento, a fim de ouvir as vozes que clamam em nós e na realidade intra e extra eclesial, reconhecendo nelas os sinais do Reino de Cristo e os desafios aos nossos limites humanos e, especialmente, ao conformismo e à acomodação, que se tornaram as maiores tentações contra o Espírito e as novas práticas pastorais.

 

A Espiritualidade da Diversidade, construída e vivida por um número crescente de pessoas e grupos de várias partes do mundo, vai se desenvolvendo e nos atravessando na medida em que a Palavra se objetiva na vida e o Espírito encontra campo fértil e abertura para novas e, muitas vezes surpreendentes, perspectivas.

 

A Espiritualidade da Diversidade e a universalidade do Evangelho

 

"Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois vós sois um só em Jesus Cristo". (Gl 3,28)

 

"As diferenças e os contrastes que criam separação não deveriam existir entre os fiéis em Cristo. Pelo contrário, a nossa vocação é tornar concreta e evidente a chamada à unidade de toda a raça humana", (Papa Francisco na Audiência Geral, comentando o trecho da Carta aos Gálatas - 08/09/2021).

 

A carta que Paulo escreveu aos cristãos da Galácia (na atual Turquia) é uma das mais antigas epístolas do cânon cristão. Faz parte das chamadas "cartas autênticas" de Paulo.

 

Ela atesta que, desde as origens, os seguidores de Jesus Cristo perceberam que a condição social, cultural e de gênero não tem incidência sobre a gratuidade da bênção divina e que esse seguimento comporta uma ética universal que, embora mais exigente, é também mais libertadora.

 

A conversão a Jesus Cristo representou - e representa - um "desborde", palavra cara ao Papa Francisco e tantas vezes retomada na Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, que ultrapassa a visão reduzida, reducionista e imediata da realidade. A novidade cristã coloca em cheque os binarismos simplistas: as polaridades "fiel-pagão", "homem-mulher", "escravo-senhor" são resultantes de uma trava conceitual que impede a visão que o próprio Deus tem das criaturas humanas, chamadas todas a serem plenas, sem distinção ou discriminação.

 

Trata-se de uma ampliação e, por vezes, uma reviravolta na visão de mundo dos judeus da época. O povo escolhido não é mais aquele pertencente a uma etnia, cultura ou religião, por mais heróico fosse o seu passado.

 

Jesus e a diversidade sexual

 

Desde a vida pública de Jesus de Nazaré, passando pela experiência dos seus discípulos e discípulas, as primeiras comunidades foram vivenciando e aprendendo o que chamamos de Espiritualidade da Diversidade, contrária em essência a algumas das crenças tradicionais no seu tempo.

 

Jesus já assinalara, em algumas ocasiões nas quais se encontrou com não-judeus, que "nunca viu uma fé como essa em Israel", elogiando a confiança despertada por ele em pessoas que não eram judias ou sequer religiosas (Cf Mt 8,10; Lc 7,9). Ele mesmo tinha se deixado evangelizar pela mulher cananeia, que lhe exigiu as migalhas dos cães e acabou recebendo do Mestre o mesmo pão dos filhos, por causa de sua fé e coragem (Cf Mt 15, 21-27; Mc 7, 24-30).

 

É importante relembrar que uma mulher da Samaria, de moral nada elogiável para a época, assim como um ex-endemoninhado estrangeiro curado por Jesus, tornaram-se os primeiros e principais divulgadores da Boa Notícia, em suas regiões. (Cf Jo 4, 3-30.39-42; Mc 5, 1-20).

 

As mulheres, proibidas pela lei judaica de sequer conversar em público, foram abordadas por Jesus em várias ocasiões e tornaram-se fiéis seguidoras, protagonizando alguns dos principais episódios da vida do Mestre: nascimento, seguimento, provimento material do grupo, morte, ressurreição, formação e difusão das primeiras comunidades.

 

Há muito ainda que se aprofundar sobre a relação de Jesus de Nazaré com as mulheres do seu tempo. Muitas perspectivas têm sido abertas por vários teólogos e, principalmente, por mulheres teólogas, a partir de uma visão que enseja uma ultrapassagem do milenar discurso patriarcal.

 

O Matrimônio e a diversidade sexual para Jesus de Nazaré

 

É preciso, antes de mais nada, afirmar que grande parte das ideias e crenças geradas no Ocidente a respeito do casamento heterossexual e do modelo de família nuclear não reflete diretamente a pregação evangélica original, mas resulta de construções teóricas e históricas posteriores.

 

O capítulo 19 do Evangelho de Mateus (Versículos 3 a 12) é, indubitavelmente, a citação bíblica mais utilizada por ministros cristãos para reforçar a tese da sacramentalidade do Matrimônio. Nela, Jesus afirma a natureza divina da relação entre o homem e a mulher, que deixam a moradia paterna para "se tornarem uma só carne" (versículo 5).

 

Ao abordar este entrecho do Evangelho, enfatiza-se a sacralidade e a indissolubilidade da relação conjugal: "O que Deus uniu o homem não separe!" (versículo 6).

 

Muitos autores cristãos, ao longo dos séculos, isolaram essa fala de Jesus do contexto em que foi pronunciada. Para sermos fieis, no entanto, ao pensamento de Jesus, é preciso recordar que Ele foi questionado sobre esse tema pelos judeus, em referência ao "direito" do homem (e só do homem!) de abandonar a sua esposa, dando-lhe uma carta de divórcio. A Lei mosaica permitia essa prática. (Cf. Dt 24,1).

 

Ao contrário do pensamento cristalizado dos que o interrogavam, Jesus assume uma perspectiva - digamos - diversa e feminina. Primeiramente, nega o direito dos homens a partir de una realidade anterior a esse direito, que é a união sagrada do casal. Saliente-se que Jesus se refere à mulher com a mesma dignidade do homem, colocando-a na condição de sujeito. Tanto ela quanto o homem deixam a família de origem, com a intenção de unir-se. A mulher não pode, por consequência, ser objeto e refém de uma negociação entre homens. Segundo ele, Moisés teria permitido a prática da carta de divórcio - diz Jesus - "por causa da dureza de seus corações" (versículo 8).

 

A perspectiva de Jesus foi bastante inusitada e afrontosa para os homens judeus e intérpretes da Lei. Não foi à toa que seus próprios discípulos (homens, naturalmente!) reagiram, dizendo que "então, não vale a pena casar-se!" (versículo 10).

 

É possível imaginar o desconforto dos seus interlocutores. Porém, Jesus vai além, referindo-se, na sequência imediata do texto, às pessoas que não foram feitas para o casamento heterossexual.

 

Deve ter sido desconcertante ouvir a pregação de Jesus sobre pessoas designadas por ele com o termo globalizante "eunucos".

 

Jesus fala dessas pessoas, incluindo-as em três categorias: as que são naturalmente assim, as que foram forçadas a sê-lo e as que se fizeram assim "por amor ao Reino de Deus" (versículo 12).

 

Ora, eunucos pela própria natureza não eram castrados, mas pessoas que não sentiam desejo heterossexual ou, provavelmente, homens considerados "efeminados". O termo não se aplicava às mulheres porque, na cultura judaica da época, elas sequer eram consideradas seres integrais e portadoras de desejo.

 

Os que são "naturalmente eunucos" podem ser assimilados ou até identificados, sem grande esforço hermenêutico, a alguns termos de nossa época: assexuais (que não sentem atração sexual por qualquer outro ser humano), pessoas transgênero (que não se identificam com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer) e interssexo (pessoas que apresentam anatomia e constituição física que fogem ao binarismo sexual, designadas no passado como hermafroditas). Essas categorias obviamente inexistiam nos tempos bíblicos. Não seria incongruente, pois, inferir que Jesus esteja se referindo a algumas das pessoas incluídas na sigla contemporânea LGBTQIA+.

 

A segunda categoria de "eunucos" abordada por Jesus refere-se a costumes históricos e datados: Ele fala de homens que foram feitos "eunucos", castrados, geralmente na infância ou adolescência, independentemente de sua vontade . Esse foi um costume praticado por várias cortes orientais e, até mesmo na Modernidade, também em algumas sociedades ocidentais.

 

Finalmente, Jesus se refere às pessoas que vivem na condição de "eunuco" por escolha pessoal, "por amor ao Reino dos céus". É o único caso em que alguém adota uma forma de (renúncia à) prática sexual como consequência de uma espiritualidade e por iniciativa própria. Essa é a principal passagem utilizada pela Igreja Católica a fim de justificar o celibato clerical.

 

Mesmo lido nos tempos atuais, trata-se de um texto surpreendente em relação à Diversidade. O mais impactante nessa passagem do Evangelho é a referência a pessoas que possuem uma orientação sexual ou identidade de gênero diversas da heterossexualidade e da cisgeneridade dominantes. Jesus alude, sem condenação, a "outras" existências humanos, a quem dá a mesma dignidade do homem e da mulher heterossexuais que constituem as famílias judias.

 

Ao condenar o "direito" patriarcal ao divórcio, Jesus acaba por ampliar o horizonte dos seus ouvintes, na perspectiva da diversidade das relações humanas. Com uma resposta inesperada, Jesus trata da igual dignidade das mulheres e homens heterossexuais, bem como das outras pessoas que sequer tinham sido lembradas por seus interlocutores.

 

Esse texto evangélico sempre gerou incômodos para os teólogos da Moral, que preferiam relacioná-lo apenas a costumes históricos, invisibilizando um considerável número de pessoas que existiram em todas as épocas, mas só ganharam conceituação a partir do século XX.

 

O presente artigo pretende ser apenas uma contribuição inicial à conceituação da Espiritualidade da Diversidade. E ele inicia com uma afirmação perene: Deus ama incondicionalmente a cada criatura humana e Jesus de Nazaré nunca rejeitou alguém por causa de sua sexualidade.

 

Nosso próximo passo será aprofundar essa relação de Jesus, dos primeiros discípulos e das comunidades paleocristãs em relação à diversidade sexual, intentando aproximá-la da espiritualidade que atualmente se constrói no movimento de grupos católicos e cristãos da Diversidade.

 

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