Francisco afirma uma Igreja “capaz de caminhar juntos na harmonia da diversidade, na qual todos têm algo a contribuir e podem participar ativamente”

Foto: Wikimedia Commons

06 Mai 2022

 

 

 

 

 

 

A reportagem é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, 05-05-2022.

 

“Sacerdotes, consagradas, consagradas e consagradas e fiéis leigos caminham e trabalham juntos para testemunhar que uma grande família unida no amor não é uma utopia, mas o propósito para o qual Deus nos criou”. Em sua mensagem para o 59º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, Francisco apela às diferentes vocações, diferentes, poliédricas , como a própria Igreja, mas com um objetivo comum: a unidade.

 

"Este é o mistério da Igreja que, na convivência harmoniosa das diferenças, é sinal e instrumento daquilo a que toda a humanidade é chamada", sustenta Bergoglio em sua mensagem, que termina pedindo que " a Igreja seja cada vez mais sinodal, ou seja, capazes de caminhar juntos na harmonia da diversidade, na qual todos têm algo a contribuir e podem participar ativamente”.

 

"Os ventos gelados da guerra"

 

O Papa inicia a sua mensagem recordando o momento atual, em que “ainda sopram os ventos frios da guerra e da opressão , e muitas vezes assistimos a fenômenos de polarização”. Neste 'hoje', “como Igreja iniciamos um processo sinodal”.

 

Por quê? Porque "sentimos a urgência de caminhar juntos cultivando as dimensões da escuta, da participação e da partilha", para "contribuir para a construção da família humana, para curar as suas feridas e projetá-la para um futuro melhor".

 

 

A partir daí, Bergoglio reflete sobre o que significa vocação e como somos “chamados a ser todos protagonistas da missão”. “Sinodalidade, caminhar juntos é uma vocação fundamental para a Igreja, e somente neste horizonte é possível descobrir e valorizar as várias vocações, carismas e ministérios”, adianta o Papa, que acrescenta que “ao mesmo tempo, sabemos que a Igreja existe para evangelizar, saindo de si mesma e espalhando a semente do Evangelho na história”.

 

Somos todos missionários

 

Somos todos missionários. "Cada um dos batizados, seja qual for sua função na Igreja e o grau de esclarecimento de sua fé, é um agente evangelizador", destaca Francisco, que alerta para "a mentalidade que separa os sacerdotes dos leigos, considerando protagonistas do primeiro e do executores até o segundo”, e apela para “ prosseguir a missão cristã como único Povo de Deus, leigos e pastores juntos”.

 

Já que todos somos “chamados a ser guardiões uns dos outros e da criação”, Francisco insiste que, além da fé, “cada um de nós é uma criatura querida e amada por Deus, para quem Ele teve um pensamento único e especial; e aquela centelha divina, que habita no coração de cada homem e de cada mulher, somos chamados a desenvolver ao longo de nossas vidas, contribuindo para o crescimento de uma humanidade animada pelo amor e pela aceitação recíproca”.

 

"Somos chamados a ser guardiões uns dos outros, a construir laços de harmonia e troca, a curar as feridas da criação para que sua beleza não seja destruída", sendo "uma única família na maravilhosa casa comum da criação, na harmonia variedade de seus elementos”.

 

Alcançado pelo olhar de Deus

 

Outra grande vocação é a particular, aquela que “Deus dirige cada um de nós”, como “Deus quis olhar e olhar para a nossa vida”. O olhar de Deus, “seu olhar de amor sempre nos alcança, nos comove, nos liberta e nos transforma, tornando-nos pessoas novas”.

 

"Esta é a dinâmica de toda vocação: somos alcançados pelo olhar de Deus, que nos chama (...), a vocação é para todos, porque Deus olha para nós e nos chama a todos ", diz Bergoglio, que compara a Criador com o "divino escultor" que "com suas mãos nos faz sair de nós mesmos, para que sobre nós seja projetada a obra-prima que somos chamados a ser".

 

 

“Em particular, a Palavra de Deus, que nos liberta do egocentrismo, é capaz de nos purificar, iluminar e recriar”, insiste, encorajando-nos a “escutar a Palavra, abrir-nos à vocação que Deus nos confia. E aprendamos também a escutar os nossos irmãos e irmãs na fé, porque a iniciativa de Deus pode esconder-se nos seus conselhos e no seu exemplo, mostrando-nos sempre novos caminhos a seguir”.

 

Olhem um para o outro

 

“Aprendemos também a olhar uns para os outros para que as pessoas com quem convivemos e com quem encontramos — sejam elas quem forem — se sintam acolhidas e descubram que há Alguém que as olha com amor e as convida a desenvolver todas as suas potencial”, pois “quando acolhemos esse olhar nossa vida muda”. Seja na vocação ao sacerdócio ou ao matrimônio. “Em geral, toda vocação e ministério na Igreja nos chama a olhar os outros e o mundo com os olhos de Deus, para servir o bem e difundir o amor, com obras e palavras”.

 

A vida vivida como vocação

 

“Como cristãos, não somos apenas chamados, isto é, pessoalmente interpelados por uma vocação, mas também convocados”, como “ os azulejos de um mosaico, belos mesmo que tomados um a um, mas só juntos compõem uma imagem”, afirma o Papa, que acrescenta: “Nós brilhamos, todos e cada um, como uma estrela no coração de Deus e no firmamento do universo, mas somos chamados a formar constelações que orientam e esclarecem o caminho da humanidade, começando por o ambiente em que vivemos.

 

"Que todos sejam um", o grande projeto de Deus

 

“Este é o mistério da Igreja que, na convivência harmoniosa das diferenças, é sinal e instrumento daquilo a que toda a humanidade é chamada”, conclui. “Por isso a Igreja deve ser cada vez mais sinodal, isto é, capaz de caminhar juntos na harmonia da diversidade, na qual todos têm algo a contribuir e podem participar ativamente”.

 

Por isso, “quando falamos de 'vocação' não se trata apenas de escolher uma forma de vida ou outra, de dedicar a existência a um determinado ministério ou de sentir-se atraído pelo carisma de uma família religiosa, um movimento ou uma comunidade eclesial; trata-se de realizar o sonho de Deus, o grande projeto de fraternidade que Jesus tinha no coração quando implorou ao Pai: “ Que todos sejam um” ”, conclui a mensagem, que insiste que “toda vocação na Igreja, e em sentido amplo também na sociedade, contribui para um objetivo comum: fazer ressoar entre homens e mulheres a harmonia dos numerosos e diversos dons que só o Espírito Santo sabe realizar”.

 

Eis a mensagem do Papa Francisco para o 59º Dia Mundial de Oração pelas Vocações

 

Chamados para construir a família humana

 

Queridos irmãos e irmãs!

 

Nos dias que correm, enquanto continuam a soprar os ventos gélidos da guerra e da opressão e frequentemente testemunhamos fenômenos de polarização, prosseguimos como Igreja o processo sinodal iniciado: sentimos urgente necessidade de caminhar juntos cultivando as dimensões da escuta, participação e partilha. Juntamente com todos os homens e mulheres de boa vontade, queremos contribuir para construir a família humana, curar as suas feridas e projetá-la para um futuro melhor. Nesta perspetiva, para o LIX Dia Mundial de Oração pelas Vocações, desejo refletir convosco sobre o amplo significado da "vocação", no contexto duma Igreja sinodal que se coloca à escuta de Deus e do mundo.

 

Todos chamados a ser protagonistas da missão

 

A sinodalidade, o caminhar juntos é uma vocação fundamental para a Igreja e, só neste horizonte, é possível descobrir e valorizar as diversas vocações, carismas e ministérios. Ao mesmo tempo, sabemos que a Igreja existe para evangelizar, saindo de si mesma e espalhando a semente do Evangelho na história. Ora esta missão é possível precisamente colocando em sinergia todas as áreas pastorais e, antes ainda, envolvendo todos os discípulos do Senhor. Com efeito, "em virtude do Batismo recebido, cada membro do Povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28, 19). Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de evangelização" (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 120). É preciso acautelar-se da mentalidade que separa sacerdotes e leigos, considerando protagonistas os primeiros e executores os segundos, e levar por diante a missão cristã, conjuntamente, leigos e pastores como único Povo de Deus. Toda a Igreja é comunidade evangelizadora.

 

Chamados a ser guardiões uns dos outros e da criação

 

A palavra "vocação" não deve ser entendida em sentido restrito, referindo-a apenas àqueles que seguem o Senhor pelo caminho duma consagração específica. Todos somos chamados a participar na missão de Cristo de reunir a humanidade dispersa e reconciliá-la com Deus. De modo mais geral, cada pessoa humana, antes ainda de viver o encontro com Cristo e abraçar a fé cristã, recebe com o dom da vida um chamamento fundamental: cada um de nós é uma criatura querida e amada por Deus, objeto dum pensamento único e especial d’Ele e somos chamados a desenvolver, ao longo da nossa vida, esta centelha divina que mora no coração de cada homem e mulher, contribuindo para fazer crescer uma humanidade animada pelo amor e mútuo acolhimento. Somos chamados a ser guardiões uns dos outros, a construir laços de concórdia e partilha, a curar as feridas da criação para que não seja destruída a sua beleza. Em suma, tornamo-nos uma família na maravilhosa casa comum da criação, na variedade harmoniosa dos seus elementos. Neste sentido amplo, não só os indivíduos mas também os povos, as comunidades e as agregações dos mais variados géneros têm uma "vocação".

 

Chamados a acolher o olhar de Deus

 

Nesta grande vocação comum, insere-se a chamada mais particular que Deus nos dirige, alcançando a nossa existência com o seu Amor e orientando-a para a sua meta definitiva, para uma plenitude que ultrapassa até mesmo o limiar da morte. Assim quis Deus olhar, e olha, para a nossa vida.

 

As seguintes palavras são atribuídas a Miguel Ângelo Buonarroti: "No interior de cada bloco de pedra, há uma estátua, cabendo ao escultor a tarefa de a descobrir". Se tal pode ser o olhar do artista, com muito mais razão assim nos vê Deus: naquela jovem de Nazaré, viu a Mãe de Deus; no pescador Simão, filho de Jonas, viu Pedro, a rocha sobre a qual podia construir a sua Igreja; no publicano Levi, entreviu o apóstolo e o evangelista Mateus; em Saulo, cruel perseguidor dos cristãos, viu Paulo, o apóstolo dos gentios. O seu olhar de amor sempre nos alcança, toca, liberta e transforma, fazendo com que nos tornemos pessoas novas.

 

Esta é a dinâmica de cada vocação: somos alcançados pelo olhar de Deus, que nos chama. A vocação – como aliás a santidade – não é uma experiência extraordinária reservada a poucos. Tal como existem "os santos ao pé da porta" (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 6-9), assim também a vocação é para todos, porque todos são olhados com amor e chamados por Deus.

 

Diz um provérbio do Extremo Oriente: "Um sábio, ao olhar o ovo, sabe ver a águia; ao olhar a semente, vislumbra uma grande árvore; ao olhar um pecador, sabe entrever um santo". É assim que Deus nos olha: em cada um de nós, vê potencialidades, às vezes ignoradas por nós mesmos, e atua incansavelmente, ao longo da nossa vida, a fim de as podermos colocar ao serviço do bem comum.

 

Assim a vocação nasce, graças à arte do Escultor divino que, com as suas "mãos", nos faz sair de nós mesmos, para que se delineie em nós a obra-prima que somos chamados a ser. Particularmente capaz de nos purificar, iluminar e recriar é a Palavra de Deus, que nos liberta do egocentrismo. Coloquemo-nos, pois, à escuta da Palavra, para nos abrirmos à vocação que Deus nos confia! E aprendamos a escutar também os irmãos e irmãs na fé, porque nos seus conselhos e exemplo pode esconder-se a iniciativa de Deus, que nos indica estradas sempre novas a percorrer.

 

Chamados a responder ao olhar de Deus

 

O olhar amoroso e criador de Deus alcançou-nos de forma singular em Jesus. Ao falar do jovem rico, o evangelista Marcos observa: "Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele" (10, 21). O mesmo olhar de Jesus, cheio de amor, pousa sobre cada um de nós. Irmãos e irmãs, deixemo-nos tocar por este olhar e ser levados por Ele para além de nós mesmos! E aprendamos também a olhar de tal modo um para o outro que as pessoas com quem vivemos e as que encontramos – sejam elas quem forem – possam sentir-se acolhidas e descobrir que há Alguém que as olha com amor, convidando-as a desenvolverem todas as suas potencialidades.

 

 

A nossa vida muda quando acolhemos este olhar. Tudo se torna um diálogo vocacional entre nós e o Senhor, mas também entre nós e os outros. Um diálogo que, vivido em profundidade, nos faz tornar cada vez mais aquilo que somos: na vocação ao sacerdócio ordenado, ser instrumento da graça e da misericórdia de Cristo; na vocação à vida consagrada, ser louvor de Deus e profecia de nova humanidade; na vocação ao matrimônio, ser dom mútuo e geradores e educadores da vida; em cada vocação e ministério na Igreja, em geral, que nos chama a olhar os outros e o mundo com os olhos de Deus, servir o bem e difundir o amor com as obras e as palavras.

 

A propósito, desejo mencionar aqui a experiência do Dr. José Gregório Hernández Cisneros. Quando trabalhava como médico em Caracas, na Venezuela, quis tornar-se irmão terceiro franciscano. Mais tarde, pensou em tornar-se monge e sacerdote, mas a saúde não lho permitiu. Compreendeu então que a sua vocação era precisamente a profissão médica, na qual se prodigalizou especialmente a favor dos pobres. E, sem reservas, dedicou-se aos doentes atingidos pela epidemia de gripe chamada "espanhola", que então alastrava pelo mundo. Morreu atropelado por um carro, ao sair duma farmácia aonde fora buscar remédios para uma idosa, sua paciente. Testemunha exemplar do que significa acolher a vocação do Senhor aderindo plenamente à mesma, foi beatificado há um ano.

 

Convocados para construir um mundo fraterno

 

Como cristãos, não só somos chamados, isto é, interpelados cada qual pessoalmente por uma vocação, mas também con-vocados. Somos como os ladrilhos dum mosaico, belos já quando vistos um a um, mas só juntos é que formam uma imagem. Brilhamos, cada um e cada uma de nós, como uma estrela no coração de Deus e no firmamento do universo, mas somos chamados a compor constelações que orientem e iluminem o caminho da humanidade, a partir do ambiente onde vivemos. Tal é o mistério da Igreja: na convivência das diferenças, ela é sinal e instrumento daquilo a que toda a humanidade é chamada. Para isso, a Igreja deve tornar-se cada vez mais sinodal: capaz de caminhar unida na harmonia das diversidades, onde todos têm a sua própria contribuição para dar e podem participar ativamente.

 

Portanto, quando falamos de "vocação", não se trata apenas de escolher esta ou aquela forma de vida, votar a própria existência a um determinado ministério ou seguir o encanto do carisma duma família religiosa, dum movimento ou duma comunidade eclesial; mas trata-se sobretudo de realizar o sonho de Deus, o grande desígnio da fraternidade que Jesus tinha no coração quando pediu ao Pai "que todos sejam um só" (Jo 17, 21). Cada vocação na Igreja e, em sentido largo, também na sociedade, concorre para um objetivo comum: fazer ressoar entre os homens e as mulheres aquela harmonia dos múltiplos e variados dons que só o Espírito Santo sabe realizar. Sacerdotes, consagradas e consagrados, fiéis leigos, caminhemos e trabalhemos juntos, para testemunhar que uma grande família humana unida no amor não é uma utopia, mas o projeto para o qual Deus nos criou!

 

Rezemos, irmãos e irmãs, para que o Povo de Deus, no meio das dramáticas vicissitudes da história, corresponda cada vez mais a esta vocação. Invoquemos a luz do Espírito Santo, para que cada um e cada uma de nós possa encontrar o respetivo lugar e dar o melhor de si neste grande desígnio!

 

Roma, São João de Latrão, no IV Domingo de Páscoa, 8 de maio de 2022.

 

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