31 Março 2022
As empresas de tecnologia estão oferecendo cuidados espirituais para tornar seus empregados mais produtivos, e provavelmente isso é um sinal do que está por vir em outros setores.
O comentário é da socióloga estadunidense Carolyn Chen, professora de Estudos Étnicos na Universidade da Califórnia em Berkeley e codiretora do Berkeley Center for the Study of Religion.
O artigo foi publicado em The Atlantic, 22-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ultimamente, temos visto uma proliferação de debates sobre o fim do trabalho do modo como o conhecemos. Neste terceiro ano da pandemia do coronavírus, os estadunidenses estão esgotados, abandonando seus empregos em números recordes e reavaliando o local de trabalho nas suas vidas.
De acordo com especialistas, a “Grande Demissão” sinaliza uma nova era: o fim da ambição, o aumento do sentimento antitrabalho e a possibilidade de estarmos entrando em um momento em que um emprego pode ser apenas um emprego. Mas eu duvido que isso irá mudar o culto coletivo do trabalho por parte dos estadunidenses.
O que essas conversas não levam em conta é a religião invisível do trabalho, que se tornou uma parte inquestionável da nossa cultura. Em um momento em que as taxas de afiliação religiosa são as mais baixas dos últimos 73 anos, nós cultuamos o trabalho – o que significa que nos sacrificamos e nos rendemos a ele – porque ele nos dá identidade, pertencimento e significado, sem falar que ele põe comida nas nossas mesas.
Se a teocracia estadunidense do trabalho for desmantelada, isso não ocorrerá apenas mudando de emprego ou de atitude. Exigirá uma transformação fundamental no sistema social que dita de quais instituições obtemos a nossa realização.
Ao contrário da nova sabedoria, o trabalho nos ama de volta, sim. Foi o que eu descobri enquanto fazia a pesquisa para o meu novo livro – “Work Pray Code: When Work Becomes Religion In Silicon Valley” [Trabalhar, rezar, programar: quando o trabalho se torna religião no Vale do Silício] (Princeton University Press, 2022) – um estudo sobre trabalho e espiritualidade em empresas de tecnologia do Vale do Silício, que às vezes são vistas como modelos para a cultura do trabalho estadunidense.
A socióloga estadunidense Carolyn Chen e seu novo livro (Foto: Divulgação)
Apesar de os profissionais se beneficiarem de várias formas com seus empregos, muitos de nós falamos sobre o trabalho como extrativista: dizemos que vendemos a nossa alma ao trabalho; descrevemo-lo como algo que nos suga. Mas, no Vale do Silício, o trabalho é onde muitas pessoas encontram as suas almas.
Ao longo de cinco anos, eu entrevistei mais de 100 profissionais da indústria de tecnologia que ecoaram esse sentimento. Um jovem engenheiro, um ex-cristão evangélico que se mudou da Geórgia para se juntar a uma startup de San Francisco, me disse que havia transferido seu fervor pela religião para o trabalho.
Sua empresa tornou-se a sua nova comunidade de fé, proporcionando-lhe o pertencimento, o sentido e a missão que antes ele havia encontrado em sua Igreja em sua terra natal. Na fraternidade da sua startup, ele desenvolveu a fé de que o seu aplicativo de rede social empresarial iria “mudar o mundo”.
O engenheiro foi um dos muitos entrevistados que se descreveram como pessoas que haviam se tornado mais “íntegras”, “espirituais” ou “conectadas” por causa do trabalho.
Isso não é coincidência. Os profissionais têm dedicado mais tempo ao trabalho nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, muitos deles também têm se afastado de sua observância religiosa, das organizações cívicas e dos grupos comunitários, segundo o cientista político Robert D. Putnam. A afiliação religiosa, em particular, é notavelmente menor em centros da indústria do conhecimento como San Francisco, Seattle e Boston. Agora, muitas empresas de tecnologia assumiram a tarefa do cuidado espiritual para tornar seus trabalhadores mais produtivos.
As empresas projetam a experiência de trabalho para que seus empregados possam “ser uma pessoa realizada”, como me disse um profissional de recursos humanos. Outro profissional de RH me disse que o trabalho de um “grande RH” é “alimentar a alma das pessoas quando elas estão trabalhando tanto”.
É por isso que lugares como o Google e o Salesforce, por exemplo, trazem mestres budistas e têm salas de meditação específicas para dar aos empregados o tempo e o espaço para eles se conectarem com seus “eus” autênticos. Essas empresas oferecem coaches executivos a seus líderes seniores, que um gerente descreveu como “conselheiros espirituais”. Todas essas ofertas ajudam os profissionais de tecnologia a alinharem as partes mais profundas deles mesmos com o seu trabalho.
Mas essas vantagens não são oferecidas a fim de melhorar os empregados pelo seu próprio bem, e muitas empresas de tecnologia têm sido criticadas por valorizar a produtividade e o lucro em detrimento do bem-estar de seus trabalhadores.
Mesmo assim, as empresas de hoje percebem o benefício de atender às necessidades espirituais de seus empregados ocupados, e fornecer esses serviços lhes dá uma vantagem competitiva. Por exemplo, valeu a pena quando uma startup investiu em um de seus talentosos jovens engenheiros, pagando para que ele participasse de um programa de meditação mindfulness e de um retiro espiritual, e trabalhasse com um coach executivo. O jovem engenheiro, agora reforçado com um senso de missão e propósito dirigido ao trabalho, rapidamente se tornou engenheiro-chefe, disse-me o CEO da empresa. O trabalho tornou-se mais gratificante para ele, e a empresa lucrou com o seu crescimento.
Na realidade, os trabalhadores de tecnologia no meu estudo são um exemplo extremo do sentido de realização no trabalho nos Estados Unidos. Os empregos de muitos estadunidenses, especialmente aqueles sem diploma universitário, foram expatriados e automatizados. Para eles, junto com tantos trabalhadores temporários de hoje, o trabalho traz menos benefícios e tornou-se menos disponível, menos seguro e menos significativo.
No entanto, em suas atitudes em relação ao trabalho, muitos estadunidenses não são tão diferentes dos trabalhadores de tecnologia. De acordo com uma pesquisa recente da McKinsey, 70% dos profissionais disseram que seu senso de propósito é definido por seu trabalho. A maioria dos estadunidenses diz ter feito amigos íntimos no trabalho. E muitos profissionais descrevem um bom trabalho com palavras como “vocação”, “missão” e “propósito” – termos que antes eram reservados à religião.
A maioria das empresas não oferece consultas com monges budistas, mas mesmo corporações tradicionais como a Aetna e a General Mills trouxeram práticas espirituais como meditação e mindfulness para o escritório. As empresas estão gradualmente se posicionando como nossos novos locais de culto, alimentando as pessoas com um evangelho de propósito divino no local de trabalho. O Vale do Silício não é uma exceção, mas um prenúncio para os profissionais estadunidenses.
Mesmo para aqueles de nós que começaram a procurar a sua realização em outros lugares, começando um novo hobby, tirando um ano sabático ou garantindo um emprego melhor e mais significativo, todas essas soluções deixam intacta a teocracia do trabalho.
Essas ações individuais não fazem nada para mudar um sistema que concentra todas as suas recompensas materiais, sociais e espirituais na instituição do trabalho. A única forma de reorientar isso é revitalizar e construir “locais de culto” compartilhados fora do trabalho, mudando as estruturas que organizam a nossa realização.
Esses locais de culto teriam que reivindicar o nosso tempo, energia e devoção, assim como o trabalho faz. Teríamos que nos sacrificar e nos submeter às suas demandas, assim como fazemos pelo trabalho. Teríamos que construir comunidades de pertencimento, buscando juntos o sentido e o propósito fora de nosso trabalho produtivo.
Esses locais de culto não precisam ser apenas religiosos. Também podem ser nossas cooperativas, bairros, sindicatos, grupos de leitura ou clubes políticos – qualquer coisa na panóplia de organizações civis que possa nos ajudar a visualizar o florescimento humano que se eleva acima dos resultados financeiros de uma empresa.
David Foster Wallace escreveu: “Nas trincheiras do dia a dia da vida adulta, não existe isso de ateísmo (...) Todo mundo presta culto. A única escolha que temos é a que prestar culto”. À medida que as restrições da pandemia diminuem, estamos voltando aos nossos escritórios, às nossas escolas e aos nossos locais de trabalho. Este momento nos convida a escolher novamente a que vamos prestar culto, a quem vamos pertencer e o que vamos preencher de sentido.
A questão é coletiva: o que vamos tornar sagrado? Se não fizermos essa pergunta e não mudarmos, continuaremos apenas marchando por um caminho desgastado que nos deixará com o trabalho como a última instituição significativa ainda em pé.
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Mindfulness e coaching executivo: quando a empresa se torna a nova comunidade de fé. Artigo de Carolyn Chen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU