18 Março 2022
“A presença do corpo diplomático da Santa Sé em Roma não é apenas cerimônia e pompa; serve não apenas ao Vaticano ou aos países ou organizações dos embaixadores, mas a uma cultura de multilateralismo e diálogo. A diplomacia do Vaticano está agora enfrentando fortes ventos contrários não apenas dos líderes mundiais, mas também dentro da Igreja. No entanto, vale lembrar que, se os diplomatas papais não são capazes de apagar o fogo das guerras sangrentas, seu trabalho nos ajuda a evitar uma mentalidade de 'guerra cultural'”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 15-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Durante uma das minhas viagens a Roma alguns anos atrás, eu fiz uma caminhada com um querido amigo e companheiro católico.
“Você viu esse palácio?”, disse ele quando passávamos pela Piazza della Minerva.
“Essa é a Pontifícia Academia Eclesiástica, dedicada ao treinamento de padres para servirem no corpo diplomático e na Secretaria de Estado da Santa Sé”, apontou.
“Os primeiros dois anos são apenas para privar aqueles jovens homens de qualquer senso de empatia”, acrescentou.
Sim, ele estava brincando. Mas em toda brincadeira há também um fundo de verdade.
E a citação do meu amigo refletiu como uma certa cultura do pós-Vaticano II vê as instituições e estruturas como artificiais e supérfluas. E, nesse caso, como o serviço diplomático da Santa Sé é algumas vezes visto com um símbolo de compromisso com a força terrena.
A invasão da Ucrânia pela Rússia por um lado leva-nos à luta pela sobrevivência dos impérios no início do século XX, e por outro à desordem global que está voltando para casa na Europa.
Tudo isso tem efeitos profundos na imaginação e expectativas da maior das instituições políticas globais de todas as tradições cristãs, da Igreja Católica e seu centro administrativo, o Vaticano.
A guerra na Ucrânia terá um impacto sobre o futuro imediato do catolicismo, especialmente sobre a agenda do próximo conclave.
Mas mesmo antes disso, a guerra na Ucrânia levanta a questão da diplomacia do Vaticano. Ver a impotência do papa diante de uma guerra feroz é doloroso, e uma das tentações mais fortes é jogar fora tudo o que aparentemente não está ajudando a impedir o massacre de inocentes.
A guerra na Ucrânia pode ter acrescentado mais uma razão para ver a diplomacia do Vaticano como uma relíquia do passado. Se os embaixadores e enviados do papa não podem fazer nada para parar a guerra na Ucrânia, qual é o sentido disso?
A impotência da Santa Sé é ainda mais visível agora, nesta guerra europeia que é também uma “guerra teológica” entre as comunidades cristãs e seus líderes.
A crítica à diplomacia papal é um dos sintomas de nossa crise eclesial, mas penso que seria um grave erro considerar inútil ou pior aquele aspecto institucional da atividade internacional da Santa Sé.
É verdade que a diplomacia do Vaticano não está isenta dos problemas sistêmicos institucionais da Igreja Católica, e que ao lidar com a Rússia ela foi desequilibrada.
Também é verdade que a linguagem usada pela Secretaria de Estado sobre a Ucrânia foi incerta no início e menos apocalíptica do que a usada, por exemplo, para comentar o resultado do referendo que aprovou o casamento gay na Irlanda em 2015.
Além disso, o exemplo oferecido pelo ex-núncio papal nos Estados Unidos, o arcebispo Carlo Maria Viganò, que se tornou um teórico da conspiração e o megafone da frente católica estadunidense pró-Putin e pró-Trump, não ajuda em nada a reputação do serviço diplomático da Santa Sé.
Mas a Igreja Católica estaria pior sem a diplomacia papal.
Primeiro, devemos nos libertar da narrativa da eficácia milagrosa e super-heroica do Vaticano nos assuntos mundiais. Este é um dos legados do pontificado de João Paulo II.
Os apologistas creditam-lhe a vitória sozinho na Guerra Fria contra comunistas e liberais. Os dissidentes dizem que ele lutou contra o comunismo apenas para impor uma nova cristandade medieval na Europa.
Ambas as suposições são muito mais mitológicas do que históricas.
O papado e a diplomacia papal nunca foram tão onipotentes ou influentes nos assuntos mundiais. Se alguma coisa, o poder limitado do papa nos assuntos mundiais é um lembrete útil, especialmente para os católicos, de quão distorcida e não tradicional é essa ideia hiperpapalista do catolicismo.
Depois, há a ideia de que a diplomacia papal pertence ao passado, a uma Igreja medieval feita de relações entre o papado e os impérios, a Igreja e os regimes autoritários.
De fato, o Vaticano II teve um impacto no papel e na cultura dessa diplomacia papal que opera agora em uma Igreja e um mundo mais global: é a transição de uma Igreja que defende um sistema de privilégios para uma ideia de ministério à única família humana, católicos e não católicos.
É claro que essa transição ainda está em andamento e incompleta, como toda a mensagem do Vaticano II. Por exemplo, o que alguns núncios papais fizeram para ajudar os ditadores nos países latino-americanos dificilmente é um exemplo luminoso de clareza moral – para dizer com caridade.
Além disso, não se trata apenas de como a diplomacia papal pode contribuir para os assuntos mundiais. É também o que a Igreja como um todo recebeu através da mudança de cultura de seus diplomatas e seu envolvimento em organizações internacionais.
Pensemos, por exemplo, no desenvolvimento do magistério católico sobre direitos humanos e democracia, graças ao seu envolvimento com o processo que levou ao Ato Final de Helsinque de 1975, ou pelo desenvolvimento do ensinamento da Igreja sobre armas nucleares.
É claro que sempre ficaremos desapontados se a expectativa for ver a Igreja Católica adotar exatamente a mesma linguagem e plataforma das ONGs ocidentais.
A diplomacia do Vaticano também nos ajuda a esclarecer o mal-entendido sobre o lendário “poder brando” da Igreja Católica. Há uma grande diferença entre o soft power que os países usam para atingir os objetivos da política externa e a mensagem da Igreja.
O que os representantes do papa em países estrangeiros podem fazer é ser a voz de uma Igreja que historicamente não esteve sujeita a narrativas políticas etnonacionalistas da mesma forma que outras Igrejas foram e ainda são, por exemplo, a Igreja Ortodoxa Russa hoje.
A Igreja Católica nas últimas décadas deixou clara sua “opção preferencial pelos pobres”, e é ou pode ser a voz dos sem voz neste mundo.
A diplomacia papal hoje também é uma forma oculta, mas genuína de resistência contra a onda de revanchismo antiVaticano II.
O cerne da atividade internacional da Santa Sé oferece uma versão mais credível e mais rica do que os católicos neotradicionalistas e neoconservadores chamam ironicamente de “piedades liberais” do período pós-Vaticano II, que consideram cheio de impulsos benevolentes do qual é por definição impossível discordar: para a paz, direitos humanos, respeito pelo planeta e fraternidade universal.
Na melhor das hipóteses, a diplomacia papal dá substância política e intelectual a esses impulsos que não são apenas “piedades liberais”, mas uma maneira de ser fiel a um Evangelho da libertação – ainda que sempre de maneira incompleta e comprometida.
A diplomacia papal também oferece um exemplo de uma maneira diferente de ser diplomata, estabelecendo uma relação com os povos a quem serve diferente daquela que os diplomatas dos estados seculares deveriam ter.
Anos atrás, um funcionário júnior de uma embaixada ocidental na Santa Sé me disse que um diplomata não deveria “ir para o local”. O exemplo de diplomatas papais que não deixaram seu povo quando as guerras no Iraque, na Síria e agora na Ucrânia começaram diz algo diferente.
Seria muito romântico aplicar à diplomacia papal o que John le Carrè disse do espião britânico (que se tornou traidor) Bill Haydon no romance “O Espião Que Sabia Demais”: “Os serviços secretos são a única medida real da saúde política de uma nação, a única expressão do seu subconsciente”.
Mas não é muito romântico dizer que a diplomacia papal é um dos lugares onde a Igreja Católica ainda pensa e reúne informações sobre o mundo.
Quando você quer saber o que está acontecendo em um país, é sempre bom marcar uma reunião e ouvir o representante da Santa Sé ali presente.
De volta a Roma, o fato de o papado ter seu serviço diplomático facilita o papel da “Cidade Eterna” como um local neutro onde podem ocorrer conversas de alto nível – as mais importantes estão sempre nos bastidores.
Há um gênio especial de Roma que se relaciona com a geografia da península italiana e as identidades contraditórias da cidade – sagrada e profana, religiosa e anticlerical, glamorosa e cercada de pobreza, admirada e injuriada – que serve à missão diplomática da Igreja melhor do que outras capitais.
A presença do corpo diplomático da Santa Sé em Roma não é apenas cerimônia e pompa; serve não apenas ao Vaticano ou aos países ou organizações dos embaixadores, mas a uma cultura de multilateralismo e diálogo.
A diplomacia do Vaticano está agora enfrentando fortes ventos contrários não apenas dos líderes mundiais, mas também dentro da Igreja. No entanto, vale lembrar que, se os diplomatas papais não são capazes de apagar o fogo das guerras sangrentas, seu trabalho nos ajuda a evitar uma mentalidade de “guerra cultural”.
Desmantelar ou minar a diplomacia do Vaticano contribuiria para o desmantelamento moral e intelectual do catolicismo do Vaticano II, em favor de uma visão de mundo muito esgotada, mais sujeita ao amadorismo, agendas privadas e aventureirismo que abundam também na Igreja hoje.
Além disso, a diplomacia do Vaticano tem um papel ainda mais importante a desempenhar hoje, dado o analfabetismo generalizado em todos os assuntos religiosos entre as elites políticas e diplomáticas seculares que têm que lidar com conflitos armados que alavancam controvérsias teológicas de séculos.
Seria ingênuo ou pior pensar que o Vaticano pode mediar entre a Rússia e a Ucrânia, também porque as negociações anteriores com esses dois países foram repletas de erros, erros e correções de rumo.
A diplomacia papal foi surpreendida como (quase) todos os outros pela invasão de 24 de fevereiro.
Mas em tempos onde há uma ameaça de escalada a uma Terceira Guerra Mundial, todos tem uma opinião sobre o que o Papa Francisco deveria ou não fazer, deveria ou não dizer sobre a Ucrânia.
É como o teste de Rorschach para ideias que são projetadas sobre o Vaticano, o papado, o catolicismo, o cristianismo, a religião e as instituições em geral.
O que frequentemente se perde, novamente, é a natureza paradoxal da Igreja: neste caso, mantendo junto a profecia e a diplomacia, com a diplomacia a serviço da profecia. A voz profética do papa e da Igreja não se tornaria mais forte sem a diplomacia vaticana.
As pessoas que estão sofrendo agora em razão da guerra na Europa, África, Ásia ou América Latina não estariam melhor se as missões diplomáticas da Santa Sé saíssem dos países desses continentes.
Por fim, entender o valor da diplomacia papal é sobre o mistério da encarnação. Se isso envolve humanos, isso necessariamente implica algum tipo de instituição porque humanos constroem lares para si, para suas orações, para seus livros, para seus pets etc.
É quando esquecemos que as instituições, o que construímos, são feitas pelo homem e não por Deus, que entramos em problemas.
A diplomacia papal não é uma instituição feita por Deus, mas serve à missão da Igreja de Deus de muitas maneiras.
Neste tempo de guerra, livrar-se ou marginalizar este aspecto da atividade da Igreja seria apenas mais uma forma de se render ao agressor. Este também é um momento para a Igreja resistir.
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A Santa Sé e a guerra na Ucrânia: sobre o uso ou desuso da diplomacia papal. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU