15 Março 2022
Junto com o horror causado pela guerra e o repúdio à invasão russa, Jacques Sapir afirma que “o grande problema hoje é que ambas as partes têm sua cota de razão”. Ele detalha os conflitos internos não resolvidos na Ucrânia, o papel da OTAN, os erros dos Estados Unidos e a relação da Rússia com a China.
A reportagem é de Martín Burgos, publicada por Página/12, 13-03-2022. A tradução é do Cepat.
“O grande problema hoje é que ambos os lados têm suas razões”, explica o economista Jacques Sapir, um dos principais especialistas em Rússia na França, em relação à guerra na Ucrânia. Sapir é membro da Academia Russa de Ciências e autor de livros como El crack ruso de 1998, Los economistas contra la democracia, La desglobalización e El gran regreso de la planificación.
Em conversa com Cash, Sapir faz um amplo racconto de uma série de acontecimentos que oferecem explicações sobre o que está acontecendo na Ucrânia, o que é complementar ao repúdio à invasão russa e à consequente catástrofe humanitária.
Menciona os conflitos internos no país do Leste, que estão na origem da subsequente escalada militar, juntamente com a relação da OTAN com a Rússia e, em particular, o fracasso de instâncias prévias de negociação com os Estados Unidos. Ele alerta que o impacto econômico das sanções aplicadas pela União Europeia e pelos Estados Unidos pode não ser relevante para a Rússia e explica que o atual contexto geopolítico aprofunda a relação da Rússia com a China. Enfatiza também que a dependência da Europa do gás russo impede um corte total na relação econômica.
As causas são múltiplas, algumas são internas à Ucrânia. Desde 2014, tivemos uma insurreição na parte oriental em reação à revolução daquele ano, que havia declarado que aboliria os direitos específicos das populações de língua russa e da população da Crimeia. Devemos lembrar que a Ucrânia é um país muito heterogêneo quanto à sua população, onde se fala húngaro, russo, ucraniano e romeno. Tanto que o próprio presidente Zelensky fala o russo e usou essa língua em várias ocasiões nesta crise. Isso não significa que a nação ucraniana não possa existir. Mas define que, para fortalecê-la, deve-se encontrar um equilíbrio em um contexto complicado, o que não é feito desde 2014.
Da mesma forma, o Acordo de Minsk 2 nunca foi aplicado. Recordemos que este acordo, assinado em fevereiro de 2015 após o fracasso do acordo de 2014, implicava um cessar-fogo e a retirada de armas pesadas da linha de frente, a libertação de prisioneiros de guerra, a reforma constitucional na Ucrânia, que concederia o autogoverno para certas áreas de Donbas, e o restabelecimento do controle da fronteira do estado para o governo ucraniano. Este segundo fracasso fez com que as regiões orientais entrassem num regime de conflito de baixa intensidade, criando uma situação de instabilidade num contexto ainda mais grave de tensões entre a OTAN e a Rússia.
Em 1991, a OTAN prometeu não se expandir além da Alemanha, mas em 1999 Polônia, Hungria e República Tcheca aderiram ao tratado, o que aumentou o sentimento de insegurança nas elites russas, o que se refletiu no discurso de Putin em fevereiro de 2007 durante a Conferência de Segurança de Munique. Naquela Conferência, ele disse aos países da OTAN que “vocês não podem considerar que o Direito Internacional seja aquele que vocês querem, mas sim que deve ser fruto de um consenso”. Em dezembro do ano passado, Putin parece ter pensado que a situação não poderia durar mais e ofereceu um acordo aos Estados Unidos, no qual a OTAN se comprometeu a não aceitar a adesão da Ucrânia. No entanto, Washington rejeitou a proposta em fevereiro.
A partir de então houve uma ruptura na estratégia da Rússia, o que levou Putin a reconhecer oficialmente a existência das duas Repúblicas Orientais independentes, a República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk, o que significou que não era mais um problema interno ucraniano e permitiu à Rússia intervir para sua segurança. Mas também se lançou em uma operação militar visando a destruição do exército ucraniano. Isso é condenável porque não se pode permitir um conflito na Europa. Mas também não se pode ignorar as exigências de segurança da Rússia. O grande problema hoje é que ambos os lados têm suas razões.
As sanções começaram por ser simbólicas, sem efeito real. Proibir a tomada de dívida na Rússia é ridículo, porque sua dívida é de 17% do PIB, dos quais 80% são detidos por bancos chineses e 20% por bancos russos. A suspensão do gasoduto Nord Stream 2 também é simbólica porque ainda não estava em operação. Mas a verdade é que nem a União Europeia (UE) nem os Estados Unidos podem fazer muito.
A UE é muito dependente do gás russo, especialmente a Alemanha e a Itália, e não há substitutos possíveis, porque o gás que pode vir dos Estados Unidos ou da Nigéria só pode ser entregue por GNL e atualmente as instalações de regaseificação europeias estão funcionando com capacidade máxima. O Banco Central Europeu fez um estudo pelo qual estima que se houver uma queda de 10% na oferta de gás na Europa, o PIB da UE cairá 0,7% e o da Alemanha, 1,2%.
Em relação às sanções do sistema interbancário SWIFT, os russos e os chineses começaram a desenvolver um sistema alternativo há sete anos, com o que acho que a questão pode ser contornada. Quanto aos embargos aos microprocessadores, estes são fabricados na China e em Taiwan, razão pela qual existem alternativas de fornecimento. Da mesma forma, a Rússia poderia substituir as exportações de gás da Europa pela demanda chinesa, porque a infraestrutura já está pronta.
A Rússia poderia responder reduzindo seus suprimentos de gás, mas por enquanto não podemos esperar um corte completo. O gás russo é muito importante para alguns países europeus, como a Alemanha, onde responde por 55% do consumo, ou a Áustria e a Finlândia, onde fornece todo o gás consumido. O recurso é entregue em duas modalidades: contratos de longo prazo, que representam 60% da oferta, e negócios no mercado spot do dia, equivalentes a 40% do total.
As empresas russas, fundamentalmente a Gazprom, sempre disseram que honrariam suas obrigações em contratos de longo prazo. Mas nada os impede de reduzir suas entregas nos mercados spots, o que teria efeitos devastadores na economia dos países europeus mais dependentes. Embora a redução das exportações também possa ter um custo para as empresas russas devido à diminuição da quantidade, o aumento dos preços pode compensar as perdas.
A Ucrânia e a Rússia são os principais exportadores de grãos. A capacidade de exportação da Ucrânia, mesmo que a guerra termine nos próximos dias, foi aniquilada. Por outro lado, há uma demanda crescente nos mercados mundiais este ano, porque a China anunciou colheitas ruins e consome muito trigo. Isso significa que os preços do trigo, que estão em altas recordes, podem continuar subindo até o final de 2022, o que traria problemas dramáticos para os países em desenvolvimento que são altamente dependentes dos mercados mundiais e não poderão pagar por suas importações. Um raciocínio análogo poderia ser levantado para metais como o alumínio, o cobalto e o níquel.
É possível que isso aproxime ainda mais a China e a Rússia, mas essa reaproximação já vinha ocorrendo desde 2008/10. A crise na Ucrânia acelera a aproximação, mas não a gera. De fato, em 2010 o governo russo publicou sua estratégia energética 2050, na qual já previa a mudança de seus destinos de exportação para a Ásia. O erro estratégico dos Estados Unidos é notável. Se eles não queriam que a Rússia interviesse na Ucrânia, deveriam ter colocado tropas antecipando-se a essa possibilidade. Isso revela que essa região nunca esteve no centro de sua estratégia, ao contrário de Taiwan e China.
Essa escolha de prioridades gera consequências. Se o que acontece na Ucrânia é secundário, eles não deveriam ter sido tão contundentes em sua recusa em negociar com a Rússia. Esse erro foi notado nas posições contraditórias de Washington, que oscilaram entre discursos provocativos e declarações conciliatórias. Por exemplo, em 20 de janeiro, Joe Biden havia dito que se a invasão fosse menor, os Estados Unidos não interviriam. Mas se o direito da Rússia de intervir nessas duas repúblicas for reconhecido, não se pode dizer que seja uma invasão. Essas declarações atraíram críticas na Ucrânia e anteciparam o que viria a seguir.
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Por que o conflito Rússia-Ucrânia eclodiu e quais efeitos isso terá no mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU