Roberto Esposito é o filósofo que antes mesmo da pandemia abordou questões como a relação entre comunidade e imunidade. Autor de livros essenciais como Communitas. Origen y destino de la comunidad, Immunitas, Bios. Biopolítica e Filosofia (Edições 70), Categorias do Impolítico (Editora Autêntica), Comunidad, imunidad y biopolítica, diz que a crise ambiental e sanitária é um momento que pode encerrar uma era na história.
A entrevista é de Jorge Fontevecchia, publicada por Perfil, 19-02-2022. A tradução é de Cepat.
Em seu livro “Comunidade, imunidade e biopolítica” você escreveu: “Em um texto dedicado a Kant como intérprete do Iluminismo, Michel Foucault aponta a tarefa da filosofia contemporânea em um sentido preciso. Trata-se dessa relação tensa e aguda com o presente, que ele denomina com a expressão ‘ontologia do presente’. Como entender essas palavras? O que significa situar a filosofia no ponto, ou na linha, onde a atualidade se revela na densidade do próprio ser histórico? O que exatamente significa ‘ontologia da atualidade’? Como você responderia a essas perguntas com base em uma sociedade que sofreu uma crise sanitária?
Sim. A expressão “ontologia do presente” ou “ontologia da atualidade”, usada por Foucault em relação ao famoso ensaio de Kant, deve ser entendida como o convite, como o compromisso da filosofia em compreender seu próprio tempo no pensamento tal como foi formulado por Georg Hegel. É o compromisso de não se trancar em um recinto autorreferencial da filosofia, mas de olhar para fora. Abordar os problemas, as tarefas e também os conflitos do mundo contemporâneo. A contemporaneidade deve ser entendida em um sentido complexo e não literal. Não apenas como a última das épocas, mas também como um tempo que inclui em si outros tempos diferentes. E precisamente isso nos ajuda a compreender a tarefa da filosofia hoje em meio à pandemia: ser contemporâneo significa levar em conta, desde nosso presente, também o passado. Por exemplo, pensar em como outras pandemias foram tratadas, mas também o convite para captar alguma tendência sobre o futuro e adivinhar qual será a nova sociedade. Ser contemporâneo significa situar-se precisamente nesta intersecção entre presente, passado e futuro. E intuir o sentido da própria responsabilidade.
A experiência da humanidade atual desde o início de 2020 colocou mais em questão nossa ideia da biologia ou da política? Que tradição merece ser repensada com maior intensidade a partir do coronavírus?
O que aconteceu nestes dois anos exige e impõe uma nova forma de pensar, um novo repensar da política, assim como da biologia e da medicina. O que precisa ser repensado essencialmente é a relação entre elas. A relação entre política e biologia foi definida com o complexo e até controverso termo “biopolítica”. A biopolítica é a implicação direta entre política e vida biológica. Algo que está cada vez mais forte e crescente em nossas sociedades. Hoje é impossível pensar os deveres e as tarefas da política à margem dos problemas colocados pela biologia. Algo que acontece não só em termos de saúde, mas também na nossa relação com a vida e a morte, ou mesmo com a sexualidade. Mas também é impossível olhar para a biologia fora do horizonte político. Daí os fenômenos que caracterizam a modernidade desde o início do século XIX: a politização da medicina e a medicalização da política. Esses fenômenos estão aumentando e se generalizando cada vez mais. Proporcionam-nos recursos, mas também entranham riscos.
Quais são os textos clássicos de filosofia e política que devem ser relidos à luz da experiência dos últimos dois anos da humanidade?
É uma pergunta muito difícil. São muitos os textos e autores, todos extremamente relevantes. Se pensarmos no mundo clássico, existem hoje textos decisivos, como A República de Platão, não isentos de elementos que hoje definiríamos como políticos. Quanto ao tema geral, o problema da preservação da vida e do vínculo entre a vida individual e a vida coletiva; a vida do nosso corpo e o corpo político, não podemos deixar de pensar em Thomas Hobbes. E se quisermos mergulhar no horizonte da filosofia contemporânea, enfrentamos muitos dos problemas justamente na intersecção entre política, vida e história. Em particular, citarei dois nomes, precisamente o de Michel Foucault e o de Hannah Arendt, que interpretaram, ainda que de forma diferente, essa intersecção entre a vida e a política. Mas também sob outros pontos de vista, Walter Benjamin e Theodor Adorno permanecem decisivos. Sua reflexão sobre os enigmas e abismos da sociedade contemporânea e as intuições decisivas sobre a questão da Justiça em sua problemática relação com o direito nos remetem a Simone Weil, ao próprio Benjamin e também a Jacques Derrida.
“Imunidade” é um conceito da área da saúde, que foi usado nos últimos dois anos, em relação com as vacinas, por exemplo. Tem reflexo na ontologia política? Como pensar a ligação entre comunidade e imunidade?
Imunidade talvez seja mais um paradigma ligado ao mesmo tempo à saúde e ao direito. Primeiro, foi um paradigma exclusivamente jurídico por quase dois mil anos. Nos últimos dois séculos também abrange a saúde. Em ambos os casos refere-se à isenção de perigo e até mesmo de uma obrigação biológica ou política. Então, na modernidade tardia, o paradigma imunológico assumiu um significado que ultrapassa todos os limites até cruzar os domínios do direito e da medicina, e até mesmo da sociologia e da tecnologia. Adquiriu um relevo que poderíamos chamar de ontológico. Algo relativo à totalidade da realidade, ao ser da realidade. Hoje adquire um traço cada vez mais forte. Envolve toda a nossa experiência simbólica, real e imaginada; nossa experiência individual e coletiva. Com o advento da pandemia, o que chamo de paradigma imunológico tornou-se o eixo em torno do qual gira toda a experiência contemporânea. Basta ver como hoje a necessidade de imunização contra o vírus retorna em todas as áreas da vida. Não sei o significado de palavras como “infectadura”, usadas na Argentina, mas suponho que seja por um lado a infecção e por outro a forma de se proteger dela. Isso definitivamente envolve a questão da imunidade.
Faz alusão direta ao poder dos médicos sobre a vida e a liberdade das pessoas. Você salienta que “este dispositivo imunológico, esta exigência de isenção e proteção, originalmente pertencente ao campo médico e jurídico, foi progressivamente ampliado para abarcar todos os setores e linguagens das nossas vidas”.
Sim e não. A medicina invadiu todos os setores das nossas vidas. Ela nos impõe regras, determina controles contínuos; mas, ao mesmo tempo, nos protege. Sob o paradigma imunológico, a imunidade é necessária. Mas envolve algum risco necessário. Nenhuma sociedade poderia funcionar sem dispositivos imunológicos que a protegessem dos conflitos internos e externos que a ameaçam. Existe um umbral que não deve ser ultrapassado, no qual a imunização excessiva pode se transformar em uma doença autoimune. Pode bloquear e esgotar a própria sociabilidade. O termo “imunidade” deve ser usado, mas com muito equilíbrio.
O que a confusão usual entre termos da política e da medicina lhe sugere? Por exemplo, a ideia de “guerra contra o vírus”, de “coágulo social” e “economia saudável”?
Estes são termos que sugerem o quadro semântico que foi determinado há muito tempo na política, na sociologia, na economia e na medicina. Tanto a ideia de corpo político no sentido ideológico quanto de nascimento que remete ao de nação indicam que essa transição conceitual entre política e biologia nunca parou no tempo. Basta reler um autor como Nicolau Maquiavel e você verá como todo o seu vocabulário político está impregnado de metáforas médicas. E mesmo Hobbes ou Jean-Jacques Rousseau pensam no Estado como um grande corpo. Pode-se dizer que há uma espécie de atração fatal entre política e medicina, que se acentua quando, no início do século XIX, a ciência biológica como tal começa a tomar forma. A expressão “guerra contra o vírus” tem sido muito utilizada nestes últimos dois anos. Temos que ser bastante cautelosos porque isso implica um deslocamento maior da esfera política para a da guerra. O termo “viral” pressupõe naturalmente uma referência à tecnologia da informação, por exemplo, aos vírus de computador.
A reação da política e da sociedade em geral é parecida com o que aconteceu na peste negra medieval e com a chamada gripe espanhola durante o século XX?
É semelhante, mas também é diferente. Semelhante do ponto de vista da prática da quarentena, que começa na experiência da peste. Na pandemia em curso, todos os países adotaram, em um momento ou outro, práticas de isolamento e distanciamento social. Com uma forte novidade: a vacina. Na Idade Média não existia vacina. Elas foram criadas no início do século XIX. Com o uso das vacinas, a pandemia entrou em outra dimensão. Em comparação com a gripe espanhola, felizmente hoje não existe uma guerra mundial em curso que facilite a sua propagação nas linhas de frente. O número de mortos é inferior ao da gripe espanhola, que aparentemente causou 50 a 70 milhões de vítimas. Esperamos que os números que a televisão nos apresenta todos os dias não aumentem e que a vacina nos impeça dessa experiência devastadora.
Em uma reportagem desta mesma série, o filósofo espanhol Fernando Savater destacou que esta foi a primeira pandemia que realmente ocorreu em todo o mundo e a qual acompanhamos em tempo real. Essa é a particularidade desta crise?
Savater está certo: é a primeira pandemia que se espalhou por todo o mundo e conhecida precisamente no instante em que eclodiu. Mas essa não é a única novidade: nunca o peso da imunização foi tão grande quanto hoje. Nunca o conceito de imunidade circulou como hoje, a ponto de se estender para toda a comunidade mundial. E essa aproximação na relação entre imunidade e comunidade mundial é uma novidade muito importante. Até agora, a imunidade sempre se opôs à comunidade no sentido de estabelecer uma área restrita privilegiada protegida dos riscos. Pela primeira vez na história, o pedido de imunização se estendeu a toda a comunidade mundial, através da distribuição de vacinas de baixo custo ou até mesmo gratuitas. Não será fácil, não estará isento de conflitos entre diferentes Estados ou entre Estados e empresas farmacêuticas. A fronteira na relação entre imunidade e comunidade foi atravessada, tanto na área da saúde quanto na área ambiental. Entendeu-se que o mundo não pode ser salvo em pedaços. A compreensão de que a salvação não deve ser em pedaços é um passo muito importante que faz a diferença em relação a situações passadas.
Em uma reportagem desta mesma série, o cientista político espanhol Josep Colomer disse que o futuro da humanidade era o governo dos especialistas. Ele apontou organizações como o Banco Mundial ou a Organização Mundial da Saúde como os eixos de uma nova ordem universal mais séria. O futuro da representação passa por aí?
Há um peso crescente da tecnologia em relação à política. Já na crise econômica que antecedeu a crise sanitária, o papel dos especialistas econômicos cresceu exponencialmente. Agora o controle parece ter passado para os técnicos da saúde pública. Os especialistas tomam decisões que os políticos são obrigados a ratificar. Não acho que possa continuar assim por muito tempo. Tampouco essa representação pode ser reduzida a comitês de especialistas. Seria um fracasso da política. Levaria nossas democracias a perder um de seus elementos constitutivos: a soberania popular.
Paul B. Preciado escreveu no jornal El País que “Roberto Esposito analisou as relações entre a noção política de ‘comunidade’ e a noção biomédica e epidemiológica de ‘imunidade’. Comunidade e imunidade compartilham a mesma raiz, ‘munus’; em latim o ‘munus’ era o tributo que alguém tinha que pagar para viver ou fazer parte da comunidade. A comunidade é ‘cum’ (com) ‘munus’ (dever, lei, obrigação, mas também doação): um grupo humano ligado por uma lei e uma obrigação comuns, mas também por um dom, por uma oferenda”. O que seria a imunidade como oposição?
Li o artigo de Preciado e agradeço. Mas eu não a entenderia como uma oposição, no sentido de algo externo que se opõe à comunidade. É um modo de ser da própria comunidade. Um modo, como dissemos, necessário por um lado e arriscado. Pensemos como uma sociedade poderia viver sem o sistema imunológico da lei. Devemos encontrar um equilíbrio entre comunidade e imunidade. Sem imunidade a sociedade pode explodir. Mas se a imunidade se tornar predominante, nossa própria existência social pode desaparecer.
Mario Draghi é o exemplo do tecnocrata especialista. Sua passagem pelo poder é uma solução?
O caso de Draghi é muito particular. Não há dúvida de que seu prestígio internacional ajudou a Itália em um momento muito difícil. Contribuiu para o desenvolvimento e implementação do plano de vacinação em massa. Também para usar os recursos europeus. Ele o fez por meio de um governo técnico no qual entraram todas as forças políticas, com exceção da extrema direita liderada por Giorgia Meloni. Tal solução, muito útil nesta fase, não pode durar muito. Solucionou uma emergência, mas não se pode tornar uma regra. Um governo democrático não pode incluir todas as forças políticas, mesmo as da oposição. São necessárias forças que passem para a oposição. É verdade que na Alemanha foi formada a coalizão Grosse, na qual diferentes forças se juntaram ao governo. Causa uma ferida na própria democracia. Bem Draghi até agora, mas é um tempo que vai acabar.
Além da crise sanitária, houve um experimento de controle social? Como você se posiciona na discussão entre Jean-Luc Nancy e Giorgio Agamben?
Sinto-me mais próximo das ideias de Jean-Luc Nancy. Não acho que tenha havido um experimento de controle social concebido pelo poder político. O poder não está mais concentrado na questão da soberania, mas é muito estendido, assim como ele nos explicou. É verdade que o controle sobre a população cresceu, principalmente nos casos de quarentena. Mas jamais falaria em estado de exceção, como faz Agamben. Um estado de exceção destina-se a desestabilizar um determinado regime, talvez de forma permanente. Um estado de emergência que produz efeitos regulatórios durante um determinado período, o faz induzido não por um desejo de controle, mas por necessidade, como aconteceu com a pandemia. Se o estado de emergência durasse muito, cairia em uma forma de estado de exceção. É por isso que é justo alertar sobre o risco. É um excesso imunológico. A chave é distinguir entre circunstâncias e tempos muito diferentes.
Em uma reportagem desta mesma série, a última que deu antes de morrer, Jean-Luc Nancy disse que parte de sua visão da situação de saúde estava condicionada por sua condição de transplantado. O transplante que prolongou sua vida vinte ou trinta anos permitiu-lhe continuar filosofando e pensando, mesmo contra o próprio poder médico. Como você explica esse conhecimento humano e médico que gera novos vírus e zoonoses e ao mesmo tempo os sistemas que os curam?
Fiquei muito triste com a morte de Nancy, com quem tive uma relação especial ao longo do tempo. Ele foi um dos filósofos mais importantes do nosso tempo. É verdade que sua concepção de medicina foi influenciada pela experiência do transplante, devido ao seu estado da saúde muito frágil. Ele falou sobre tudo isso em um texto muito intenso e lindo chamado El intruso, a partir do seu novo coração. Foi justamente no consentimento do conhecimento médico que ele aceitou o transplante, então não tenho muita certeza se ele escreveu contra o saber médico. Nem sei até que ponto é verdade que o conhecimento médico gera novos vírus. Talvez faça isso experimentalmente para criar vacinas. É óbvio que algum risco está presente em toda prática científica, inclusive na medicina. Os medicamentos têm efeitos colaterais que nem sempre são positivos. Em linhas gerais, a medicina ajudou muito. Sem essa contribuição não estaríamos em melhores condições. Sempre com toda cautela possível, principalmente a partir do que escreveu Michel Foucault. O que não se deve fazer é ignorar os fatos da realidade.
Você disse que “a passagem da biopolítica para a tanatopolítica tem a ver com o nascimento primeiro do nacionalismo e depois do racismo. Este é o canal de passagem que permite que uma política da vida se transforme em uma política da etnicidade, da raça e finalmente da morte”. Como os movimentos antivacinas, ligados à direita, se encaixam nessa lógica?
O nacionalismo e o racismo contribuíram no passado, especialmente como os conhecemos, no início do século passado. Porque quando imaginamos como o nazismo colocou a vida de um povo acima de todos os outros ou de um povo em particular, estamos na transição da biopolítica para a tanatopolítica. Os movimentos antivacinas são outra coisa. Eles existem desde que a vacina foi inventada. Assentavam-se no medo irracional de introduzir um corpo estranho potencialmente nocivo no corpo. Hoje estão sendo usados por algumas forças de direita para desestabilizar regimes políticos, mesmo com consequências trágicas. Contrariar essa defesa contra o vírus pode causar mortes. Mas não se deve confundi-los. Os movimentos antivacinas não nascem no mesmo berço do nazismo e do racismo, embora às vezes possam produzir consequências comparáveis.
Quanto do coronavírus se originou no mercado de Wuhan e quanto na sociedade e organização política? A relação com a natureza é um problema?
Ninguém sabe como o vírus nasceu e como se propagou pela primeira vez. É verdade que o tipo de mercado na China permite o contato permanente entre animais e humanos, entre animais domésticos e selvagens. Pode ter tido um papel negativo na propagação da pandemia. Parece certo, mas ainda é uma suposição. É verdade que já vivemos bastante tempo em uma era, o Antropoceno, em que a história e a natureza entram numa relação cada vez mais problemática. Acontece do ponto de vista médico ao ambiental. É algo novo. Durante milênios, o curso da história desembocou em um canal diferente do da natureza. A história política e também a tecnologia entraram em uma relação complexa, produzindo muitos benefícios. Um exemplo são os transplantes ou as possibilidades que a biotecnologia nos oferece. A dinâmica viral situa-se precisamente nesta margem problemática entre história e natureza, biologia e política, também identidade e diferença. Vivemos uma fase radicalmente nova. Estamos à porta desta longa história. Não sabemos para onde vamos; mas conhecemos os erros que não devemos repetir.
O título de um de seus livros é “Las personas y las cosas”. O que é que iguala e distancia as pessoas das coisas?
A cultura ocidental há muito tempo estabeleceu essa distância. Em teoria, as coisas e as pessoas são opostas. A cultura jurídica romana, da qual deriva o direito moderno, baseia-se no fato de que as pessoas são “não coisas” e as coisas são “não pessoas”. Mesmo assim, desde a própria Roma, e ao longo de toda a história humana, alguns povos, como os escravos, mas em parte também as mulheres e os estrangeiros, foram tratados como coisas, excluindo-os de seus direitos como seres humanos. Nesse livro, e em outro intitulado Terceira pessoa. Política da vida e filosofia do impessoal (Editora UFMG, 2021), desenvolvi a ideia de que a categoria jurídica de “pessoa” funciona como uma espécie de dispositivo de exclusão. Aqueles que não se definiam como pessoa eram empurrados de alguma forma para o estatuto da raça. E assim eles foram deixados de fora da reflexão filosófica. Uma maneira é afastar-se dessa dicotomia e pensar na ideia de corpo. Devemos voltar à ideia de “corpo vivo”. E de “corpo humano” em particular.
Você disse que “em Nietzsche, Wittgenstein e Heidegger identificamos os três maiores autores que estabeleceram uma forte relação entre formas de vida e formas de pensamento, naturalmente, de maneira muito diferente”. As formas de vida são uma política?
A esses três nomes deve-se acrescentar o de Michel Foucault. Há uma relação evidente entre pensamento e formas de vida. E são claramente formas da política, como afirma Aristóteles, para quem a política, a filosofia e as formas de vida têm uma ligação óbvia. Para ele, o ser humano tem uma natureza social. Mas a política faz com que a vida, digamos a vida nua, seja uma vida boa, um cruzamento entre a política e a filosofia. Este é um tema que também retorna na reflexão contemporânea sobre a necessidade. Penso em particular em Hannah Arendt, para quem a vida política é precisamente o modo mais
digno da existência humana.
Estamos diante de um limite civilizatório?
Quase todas as épocas se consideravam como limites ou limiares de algo novo e diferente. É verdade que a Covid-19 nos deu um novo sentimento que dá fundamento a essa crença. Coloca em questão o sentimento de controle total sobre a natureza. Talvez uma era tenha chegado ao seu fim com a crise política e ambiental. Já no século XX falava-se do fim da filosofia, do fim da história, da política. Não devemos abusar da ideia do fim. Mas claramente algo novo está acontecendo. Há um sentimento de que devemos virar a página. Mas um forte desequilíbrio pode continuar entre países absolutamente ricos e países absolutamente pobres, ou dentro de um mesmo país pessoas que têm tudo e outras que não têm nada. É difícil que esse desequilíbrio social, ambiental e sanitário dure muito. Talvez estejamos de fato no fim de uma era, se não de uma civilização.
O que o conceito de “imunidade de rebanho” lhe sugere?
Baseia-se na ideia de que quando a imunidade atinge um número muito elevado de pessoas acaba resguardando até quem não está imunizado, pois o vírus não tem espaço para circular e para. Faz diferença se a imunidade de rebanho é resultado de uma vacinação muito extensa, como está sendo realizada por alguns países ocidentais, mesmo que não seja uma meta fácil de alcançar. Por outro lado, se entendido como a livre circulação do vírus, como foi proposto na Grã-Bretanha e em algum momento no Brasil, o que produz é um grande número de mortes de pessoas. A imunidade de rebanho é uma prática tão radicalmente política que deve ser usada com muito cuidado e circunspecção.
Qual é a ligação entre comunidade, comunismo e democracia?
Existe uma relação próxima, embora problemática. O commun é a mesma raiz, embora em alemão e inglês existam diferentes maneiras de se referir à comunidade. Há também a ideia desenvolvida por autores como Georges Bataille ou Giorgio Agamben. O comunismo pode se apoiar na ideia de comunidade. Mas do ponto de vista da prática, levou a regimes autoritários ou similares. Uma verdadeira democracia deve levar em conta tanto as regras quanto os princípios e valores.
O filósofo argentino Alejandro Groppo escreveu a obra “Tres versiones contemporáneas de la comunidad. Hacia una teoria política posfundacionalista”, em que compara seu pensamento com o de Jean-Luc Nancy e Ernesto Laclau. Quais são os pontos em comum com esses dois pensadores? O que é a comunidade hoje?
Existe uma característica comum. Com Ernesto Laclau, autor que aprecio, além do uso de suas teorias na Argentina, tenho em comum o tema do conflito como forma de participação. Discordo de sua leitura de Antonio Gramsci e Jacques Lacan. Com Nancy e Laclau compartilho o olhar sobre o comum. A comunidade não é um plano, não é uma propriedade e não é uma substância. É um espaço vazio. Laclau identifica o significante vazio como aquele que pode agregar movimentos de protesto e constituir uma política real.
Você diz que “um dever une os sujeitos da comunidade, no sentido de ‘eu te devo alguma coisa’ mas ‘tu não me deves nada’, o que faz com que não sejam inteiramente senhores de si mesmos [...]; expropria, em parte ou inteiramente, seus bens iniciais, seus bens mais pessoais, sua subjetividade [...]; é o impróprio que caracteriza o comum”. O dever constitui uma ética social?
O munus, o termo latino, implica um dar que não espera uma retribuição. Ao contrário do comunitarismo, que associa a comunidade a uma identidade de língua, religião, etnia, a comunidade não tem o sentido de propriedade, mas sim o sentido de expropriação voluntária. Não é apenas uma forma de ética social, é a forma mais elevada de ética social.
Existe uma dialética entre as afirmações identitárias individuais, como a luta feminista ou o antirracismo nos Estados Unidos, e as identidades nacionais, como os nacionalismos europeus?
O filósofo que pensou mais radicalmente sobre a alteridade é Emmanuel Levinas, que pensou sobre o coração da comunidade e da singularidade. A questão da identidade, sim, exige que sejam feitas distinções. Ao contrário do nacionalismo, a identidade feminina ou a nação são identidades de diferença, identidades diferenciais. Claro que na filosofia, mas também na realidade, nunca se pode separar completamente a identidade e a diferença, porque para estabelecer uma diferença é preciso também ter uma identidade. São nuances complexas.
Gianni Vattimo diz, um pouco brincando, que se houvesse uma Internacional Socialista em vigor, o líder deveria ser o Papa Francisco. Concorda?
Considero Vattimo um autor muito importante. Gosto dele. E acho que está certo nesse ponto. A frase carrega uma dose de exagero. Mas o Papa Francisco de fato tem um radicalismo e carisma que são difíceis de encontrar hoje em outros líderes políticos, especialmente na esquerda. É quem mais representa hoje os pobres, os últimos, os migrantes marginalizados da terra. E, além disso, ele implementou uma forte revisão da doutrina cristã também no nível dogmático, que inclui ao máximo até mesmo os não crentes ou crentes de outras denominações religiosas, o que o levou a travar batalhas com o clero de Roma. Nesse sentido, Vattimo está certo.
Você fala do momento em que “a crônica começa a ser história”. Qual a contribuição que o jornalismo pode dar a esse movimento intelectual e dialético?
Tem uma importante contribuição a dar. É verdade que o jornalismo está em crise. A sua importância mantém-se também no que diz respeito ao mundo das redes sociais. O jornalismo, quando é sério, tem aquela possibilidade extra de mergulhar nos fatos e abrir o discurso para horizontes que de outra forma permaneceriam fechados hoje. É um pouco o sentido de entrevistas como essa, como um jornalista como você.
Que lições a passagem de Donald Trump pelo poder nos Estados Unidos deixou para os filósofos políticos?
Indiscutivelmente, a eleição de Trump ensinou aos otimistas que, embora a democracia tenha seus próprios anticorpos, o risco de uma mudança autoritária está sempre ao virar da esquina. Sobre Trump alguém também falou em “fascismo”. Mas a comparação não se sustenta. A situação é muito diferente. Sim, existem algumas características paradigmáticas: uma forma de agir, uma mentalidade, um comportamento, o que Umberto Eco definiu como fascismo eterno. Vale a pena ver como líderes mundiais como Trump e Jair Bolsonaro se encaixam de muitos pontos de vista nessa mentalidade fascista. A filosofia pode aprender com tudo isso, no sentido de que o tempo não flui linearmente. Às vezes ele volta: reaparece como um fantasma, mesmo quando o tempo passou.