14 Janeiro 2022
A inércia da história, com a qual a Igreja e todas as instituições sempre fazem as contas, nos reserva, ao lado da sobrevivência das formas velhas, uma nova compreensão do episcopado, que, em uma nova fidelidade aos primeiros séculos, lê o ministério episcopal com uma lógica diferente da medieval e moderna.
O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 12-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O raciocínio teológico que avalia a história da Igreja Católica do século passado não se cansa de identificar diversos motivos de atualização e de releitura da tradição no Concílio Vaticano II. No entanto, muitas vezes se esquece que, entre as maiores novidades que nos são oferecidas pelos documentos conciliares, não há apenas uma “nova figura da Igreja”, mas também uma poderosíssima releitura do ministério episcopal.
Entre aqueles que, com maior lucidez, contribuíram para esclarecer essa grande novidade, está, sem dúvida, o falecido Ghislain Lafont, refinado mestre de pensamento teológico em Santo Anselmo e na Gregoriana por muitos anos. Muitas vezes, ouvimo-lo dizer com grande ênfase isto: do Vaticano II, recebemos uma nova teologia do episcopado.
Também neste blog, há quase quatro anos, ele havia escrito um texto muito luminoso sobre esse ponto (que pode ser lido aqui [em italiano]) e do qual gostaria de extrair duas passagens preciosas.
Eis um primeiro texto de Lafont:
“O Concílio Vaticano II operou uma transformação importante da teologia afirmada pela Escolástica medieval e pelo Concílio de Trento. O Vaticano II tem um conceito unificado de autoridade episcopal e fala do padre na mesma perspectiva: ‘... o bispo, assistido pelos seus padres’: também para o padre, em apoio ao bispo, a autoridade é global e diz respeito ao conjunto do ministério de ‘vigilância’ (episcopé). A teologia anterior, por outro lado, antes de falar do bispo, se interessava pelo padre e estabelecia nele uma separação entre o que lhe derivava do sacramento, ou seja, o poder litúrgico, e o que lhe derivava por delegação do bispo ou do papa, ou seja, o poder sobre a comunidade. O caráter (...) o qualificava apenas para as ações rituais, ou seja, aquelas em que tanto o significado quanto a eficácia fogem do controle do homem: ele as exerce apenas respeitando um programa do qual só pode ser instrumento. A competência pastoral, que deriva do discernimento evangélico pessoal, não era considerada de origem sacramental nem estava conectada ao caráter: ela era vista descida de cima, por meio de determinações jurídicas que se estruturam em graus. Essa origem, mais ou menos imediatamente divina, confere à palavra de quem a detém não uma autoridade ritual, mas uma garantia de verdade: ‘magistério’ e ‘jurisdição’ são termos que qualificam a palavra do bispo, e acima dele, do papa, ou, sob ele, do padre. Não há mais sacralidade, mas poder, não há mais validade por fidelidade ao programa ritual, mas exercício prudente da autoridade. Tomemos alguns termos coloridos: o titular da mais alta função é Sumo Sacerdote (por sacramento) e Imperador (por eleição divina), algo que se conjuga com nuances diferentes em graus hierárquicos diferentes.”
Essa leitura medieval e moderna, que chega até ao Vaticano II, produziu um efeito surpreendente, pelo menos aos nossos olhos: excluiu o episcopado do “sacramento da ordem”. Assim foi por quase um milênio, até anteontem. Mas o que significa a nova inclusão do Bispo dentro do “sacramento da ordem” – como grau mais alto e de plenitude? Também aqui Lafont acrescenta palavras de grande clareza.
De fato, é preciso se perguntar se
“essa unificação da origem das funções e das missões do bispo no sacramento implica ou não uma mudança da fisionomia geral do ministério cristão. E, como parece difícil negar que algo mudou, perguntamo-nos se é possível dizer em que consiste a mudança. Em outras palavras, essa autoridade pastoral global conferida pelo sacramento da Ordem se inclina em direção ritual ou, antes, na direção da autoridade? O caráter sagrado da ritualidade litúrgica se estende a todas as palavras do Bispo ou as palavras litúrgicas são remetidas à única condição de palavras de autoridade, sem eficácia específica? Vou retomar as palavras utilizadas anteriormente: o bispo será mais um Pontífice ou mais um Rei? Ou: categorias desse tipo já estão obsoletas; e então o que devemos propor para definir o ministério cristão?”
No momento em que, por muitos séculos, o Bispo não tinha diretamente a ver com o sacramento da ordem, mas se limitava apenas ao “magistério” e à “jurisdição”, ele podia ser tratado substancialmente segundo as lógicas do “rei” e da sua corte. E assim foi possível usar durante séculos um “Caerimoniale Episcoporum”, um cerimonial de corte que concorria com o dos condes, dos barões e dos marqueses.
Por outro lado, a teologia justificava essa condição “funcional” do episcopado com muitos argumentos. Tendo que gerir o controle da doutrina e o exercício do poder, ele não dependia de uma “ordenação sacramental”, mas de uma “consagração” que tinha as características não do sacramento, mas do “sacramental”, ou seja, daquilo que tem uma eficácia como “ação da Igreja”, não como “ação de Deus”.
Essa leitura “burocrática” do episcopado não se deixava iludir demais. E, por isso, podia multiplicar as “dignidades” e os “privilégios”, sabendo que trabalhava com uma dimensão segunda e penúltima. Em tal mundo, era bem possível que o título de “arcebispo”, obtido para um cargo ao qual não correspondia nenhuma diocese a ser administrada, pudesse ser “personalizado” e atribuído ao funcionário eclesial como um mero “título”, como uma “honraria”.
Não se deve esquecer que, nessa lógica, era até mesmo possível que o Bispo não residisse na Diocese em que devia exercer o seu poder de jurisdição. O Concílio de Trento tentou remediar essa falha secular, sem obter um sucesso imediato.
Hoje, já não é mais assim. Ou, melhor, não deveria ser mais assim. Porque a inércia da história, com a qual a Igreja e todas as instituições sempre fazem as contas, nos reserva, ao lado da sobrevivência das formas velhas, uma nova compreensão do episcopado, que, em uma nova fidelidade aos primeiros séculos, lê o ministério episcopal com uma lógica diferente da medieval e moderna.
Todos os três munera batismais (sacerdotal, profético e régio) encontram uma “forma ministerial” em nível de diaconato, de presbiterado e de episcopado, que constituem os três graus do ministério ordenado. Portanto, a Igreja inteira está unida por uma competência sobre o culto, sobre a palavra e sobre o governo.
Em uma Igreja assim concebida e vivida, os conceitos jurídicos de “bispo titular” e de “arcebispo ad personam” são escandalosos, porque pretendem impor, na nova configuração, as categorias velhas. Em certo sentido, são “dispositivos de bloqueio”, que impedem a transformação do ministério eclesial, porque o paralisam em uma concepção “pessoal”, “burocrática”, sem vínculo com o povo de Deus.
Utilizam a palavra “Bispo” e “Arcebispo” com um significado que não é mais compatível com a compreensão eclesial e pessoal do ministério episcopal. Porque é possível ser Bispo “ad populum”, eventualmente “ad officium”, mas nunca “ad personam”. Esse é, teologicamente, um conceito que o Concílio Vaticano II tornou aberrante. A teologia do episcopado o exclui e, se estiver nas normativas, deve ser apagado, despedindo-se de uma aberração.
No mundo de antes, no qual a figura do Bispo podia ser reduzida “teologicamente” a um funcionário do papa, não era absolutamente escandaloso que se fosse consagrado Bispo para fazer um trabalho de escritório. De fato, a redução a funcionário era, no fundo, uma possibilidade para todos os Bispos, que podiam se satisfazer com uma boa administração do pessoal e com um eficaz controle da doutrina. Isso, então, também podia ser compatível com uma dimensão de “sacramento da ordem” reduzida a celebrar missas e eventualmente a absolver pecados.
O próprio bispo podia limitar a sua “vida sacramental” à missa privada da manhã, em uma capela privada, sozinho. Esse era um mundo coerente e eficiente, ao qual o Concílio Vaticano II disse: “Você é inadequado e autorreferencial”!
Mas se hoje, graças a categorias jurídicas antiquadas, a teologias de farmacêuticos e a práticas complacentes, em uma Igreja que deveria fazer do sacramento do episcopado o seu carro-chefe, nós continuamos ordenando Bispos sem diocese, que talvez ainda hoje, em Roma e em outros lugares, celebram a missa sozinho antes de se dedicarem aos deveres de escritório, permanecemos no modelo velho: todo episcopado “ad personam” é um escândalo do qual devemos nos libertar. Digamos melhor: é um Vetus Ordo que permanece como um “baixo contínuo” pelo menos em nível de Cúria Romana.
Assim como um papa, que, como sinal claro de autoridade do Concílio Vaticano II, celebra todas as manhãs com o povo em Santa Marta e que, na Argentina, como arcebispo não “ad personam”, ia de metrô ao encontro das comunidades com as quais celebraria, nos meandros da Cúria Romana pode chegar a celebrar “privadamente” a Missa in Coena Domini na capela privada de um cardeal ou permitir que uma autoridade talvez indesejada, ou cansada, ou incômoda seja transferida para a periferia, mas lhe conservando o título “ad personam”.
Aqui, a periferia não é um conceito teológico novo, mas a velha noção residual e marginal: é um afastamento da corte, talvez para escrever novas “Tristia”. Mas triste é, acima de tudo, ver a Igreja Católica em 2022 se reduzir a esses meios simplórios de “ancien régime”.
Também contra esse Vetus Ordo episcopal, precisamos de “traditionis custodes”, de fortes e corajosos guardiões da sã tradição, e não da doente.
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O Vetus Ordo do episcopado: história e limites. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU