“Importa seguir as bem-aventuranças, não a identidade de gênero ou a orientação sexual”. Entrevista com a irmã Jeannine Gramick, 50 anos de pastoral LGBTQIA+

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10 Janeiro 2022

 

Jeannine Gramick, irmã de Loreto, e antes irmã Escolar de Notre Dame, passou os últimos 50 anos trabalhando para as pessoas LGBTQIA+. Junto com padre salvatoriano Robert Nugent, a irmã Gramick fundou o New Ways Ministry, que oferece formações para católicos sobre pesquisas científicas e teológicas sobre homossexualidade e para a defesa dos direitos da população LGBTQIA+. Para esse trabalho, ela e o padre Nugent foram proibidos pela Congregação da Doutrina da Fé de trabalharem com pessoas LGBTQIA+, um pedido que a irmã Gramick recusou de acatar. Ela acabou tendo de mudar a ordem para continuar seu ministério.

 

Recentemente, o Papa Francisco enviou à irmã Gramick uma carta parabenizando-a pelos seus 50 anos no ministério pastoral, descrevendo seu trabalho como sendo “a estilo de Deus”. Falando com a irmã Gramick, o que mais chama a atenção é sua total falta de animosidade ou ego diante de tudo o que ela vivenciou. Ela tem um humor fácil e autodepreciativo, brincando que é como a mulher do Evangelho que não para de bater à porta do juiz.

 

E mesmo quando ela relembra alguns dos momentos mais dolorosos que atravessara, ela fala de suas décadas de ministério com esperança e compreensão. “Nós, povo de Deus, estamos sempre crescendo em conhecimento e consciência”, disse-me, na entrevista de três horas, concedida por telefone.

 

A entrevista é do padre jesuíta Jim McDermott, publicada por America, 07-01-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Qual é o sentimento de ter feito esse ministério por 50 anos?

 

Os primeiros sentimentos são gratidão e alegria. Nós temos um longo caminho. Certamente, nós não estamos onde nós deveríamos estar como Igreja, particularmente nos Estados Unidos, com demissão de professores e outros que apoiam a comunidade LGBTQIA+. Mas, honestamente, 50 anos atrás não se poderia nem dizer a palavra “gay”.

 

O que fez você se envolver com a pastoral LGBTQIA+?

 

Eu estava fazendo o doutorado em Matemática na Universidade da Pensilvânia, e eu encontrei um homem gay, Dominic Bash, na missa. Dominic esteve com os franciscanos por um breve período. Ele sabia desde novo que era gay, mas é claro que naqueles dias não se fala sobre isso. Se você fosse ao confessionário, o que ele fez, era descartado.

Embora ele tenha saído, Dominic era ainda muito espiritual. Depois da missa ele disse: “Eu tenho muitos amigos que amariam ter estado nessa missa, mas eles tem medo. Eles pensam que a Igreja não os quer”. Eu sugeri, “por que nós não fazemos uma missa no seu apartamento, e você convida seus amigos homossexuais?”.

Nós começamos a fazer liturgias semanais no seu apartamento. E assim foi o começo.

 

Qual era o seu entendimento de homossexualidade naquele tempo?

 

Eu tinha ouvido a palavra, mas eu sabia muito pouco o que significava. Eu tinha todos os mitos e estereótipos que a sociedade tinha em 1971. Eu pensava que lésbicas e gays eram pessoas boas, mas eu pensava que eles eram psicologicamente desequilibrados. Era o que as pessoas pensavam.

Mas quando eu comecei a se encontrar com Dominic e seus amigos, eles pareciam como pessoas normais. Eu lembro de uma advogada, ela trabalhava para a ACLU, eu a admirava muito. Ela era muito inteligente. Eu pensava, “essa mulher não é desequilibrada”.

 

Você teve algum medo de que essas missas pudessem ser perseguidas pela Igreja?

 

Não. Eu tenho pensamento limitado nesse sentido. Eu realmente não olho para frente ou antecipo muito. Eu meio que vou com o fluxo. Eu sabia que isso era algo que a Igreja precisava fazer porque eram católicos que tinham medo de ir à Igreja.

É claro que conversei com minhas superiores em Baltimore. Graças a Deus, eram mulheres de visão. Algumas das minhas provincianas sabiam mais sobre homossexualidade do que eu. Elas me encorajaram a fazer o que eu pudesse. Elas disseram: “este é um grupo de pessoas que a Igreja negligenciou. Faça o que puder porque a Igreja precisa estar lá para elas”.

E ver o brilho em seus olhos depois daquelas missas, a alegria em seus rostos, era maravilhoso.

 

Como você e o padre Robert Nugent formaram o New Ways Ministry?

 

Bob juntou-se aos salvatorianos e, durante o processo de transferência, estava em Washington, D.C., trabalhando meio período no Quixote Center, um centro de paz e justiça. Eles queriam fazer algo sobre justiça para lésbicas e gays na Igreja. Então, entrei para a equipe e Bob e eu começamos a fazer workshops educacionais sobre homossexualidade. Nós os chamávamos de oficinas “New Ways” (“Novos Caminhos”, em tradução livre) porque naquele ano dom Francis Mugavero, de feliz memória, havia escrito uma carta pastoral chamada “Sexualidade, um Dom de Deus”. Nessa carta, ele falou sobre a necessidade de encontrar “novos caminhos” de levar a verdade de Cristo às pessoas lésbicas e gays.

As oficinas eram abertas a qualquer pessoa e os conteúdos eram muito completos: conversávamos sobre as origens da homossexualidade, os aspectos médicos... Daríamos muitos dados da pesquisa sociológica que estava sendo feita sobre homossexualidade e homofobia.

Analisávamos todas as citações negativas sobre homossexualidade na Bíblia e mostramos como os estudiosos da Bíblia lidam com elas. E conversávamos sobre as posições teológicas sobre orientação e comportamento sexual.

Assim que começamos o New Ways em 1977, viajamos por todo o país. Bob uma vez calculou isso e já tínhamos estado em três quartos das dioceses dos Estados Unidos. Isso tudo foi no final dos anos 70, 80 e nos anos 90.

 

Estou surpreso em saber que você foi bem recebida em tantas dioceses; isso parece diferente do que pode ser possível na Igreja dos EUA hoje.

 

Bem, muitos bispos nos excluíram. Realizamos essas oficinas principalmente em casas mães de comunidades femininas ou centros de retiro. Estou muito feliz em dizer que as religiosas foram as primeiras na Igreja a abordar a questão da homossexualidade.

Mas alguns bispos também compareceram. Como o dom Leroy Matthiesen, de Amarillo, ou Thomas Gumbleton, de Detroit.

 

Parece que havia mais abertura na Igreja para conversas sobre homossexualidade naquela época.

 

No final dos anos 60, nos anos 70 e no início dos anos 80, as pessoas estavam realmente entusiasmadas com o Vaticano II e a justiça social. Houve hesitações por parte dos bispos, mas os padres, freiras e leigos que dirigiam as instituições católicas estavam mais dispostos, eu diria, a abraçar algo polêmico ou novo.

Quando o Papa João Paulo II começou a nomear muitos bispos no início dos anos 80 e 90, as coisas realmente se complicaram. Naquela época, a “administração intermediária” da Igreja – os líderes católicos que dirigem centros de retiro, hospitais ou outras instituições – eram muito mais informados, amigáveis e abertos aos LGBTs. Mas eles estavam com medo do que o bispo diocesano pudesse dizer.

Foi nessa época que o Vaticano fez a notificação ao padre Nugent e a mim.

 

Como esse processo aconteceu?

 

Os primeiros bispos pressionam nossas comunidades. Eles queriam que as comunidades fizessem o trabalho por eles, então, em três ocasiões, eles pediram que nossas comunidades nos investigassem e recomendassem sanções, mas nenhuma sanção foi recomendada.

Passei por meia dúzia de provinciais e superioras gerais em meus dias como Irmã Escolar de Notre Dame, e todas apoiaram o trabalho.

 

Em algum momento, essas reclamações foram levadas ao próximo nível.

 

Sim. Em 1985, a Congregação para a Doutrina da Fé – CDF nomeou uma comissão do Vaticano para nos investigar e dar recomendações. Foi chefiada pelo cardeal Adam Maida, em Detroit. Ele era um bom homem, realmente um bom homem. Eu não acho que ele gostou desta tarefa. Ele foi nomeado em 1985, mas realmente não saiu do chão até 1991, quando ele recebeu uma carta da CDF perguntando sobre o status da investigação.

Tivemos várias reuniões com a comissão e eles encaminharam algo à CDF. Aparentemente, isso não satisfez a CDF, pois nos deu uma série de perguntas por escrito que Bob e eu deveríamos responder. E não respondemos da maneira que eles queriam, então eles basicamente nos disseram as respostas que eles queriam.

Eles queriam que disséssemos que a atividade homossexual é objetivamente imoral e que pessoalmente acreditávamos nisso. E eu não poderia dizer isso. Disse-lhes que não daria minha opinião pessoal sobre o assunto. Eu sou uma educadora. Posso apresentar o ensino da igreja, mas não vou dar a você a opinião da minha consciência.

Em 1999, eles emitiram uma notificação de que nem Bob nem eu teríamos permissão para fazer mais nenhum trabalho com a população gay ou lésbica. Nós não seríamos envolvidos com esse tema.

 

Isso soa como uma travessia muito dolorosa para você.

 

Em algum certo sentido eu me senti como excomungada. Porque o que excomunhão significa? Significa fora da comunidade. Isso estava sendo evitado. E depois de 1999, foi como me senti. Haviam lugares que eu não era mais bem-vinda, como outrora era.

 

O que você fez depois que isso aconteceu?

 

Percorri o país e contei ao público católico minha história da investigação do Vaticano. E eu disse a eles: “Se vocês acreditam que não temos uma audiência adequada, escreva para o Vaticano e diga a eles para reconsiderar”. No final daquele ano, o Vaticano recebeu milhares e milhares de cartas de todo o mundo. As principais pessoas que o lideraram foram as freiras.

O Vaticano escreveu à minha superiora geral dizendo que isso tinha que parar. Fui convocada a Roma para meu generalato. Foi comovente. Eu sabia que minhas líderes comunitárias me apoiavam, mas elas me imploraram para parar de falar publicamente sobre a investigação. Estava claro que, se eu não obedecesse, elas seriam forçadas a me dispensar da vida religiosa.

Naquela reunião, percebi que me sentia como uma mulher maltratada. Eu não tinha sido espancada fisicamente, mas emocionalmente, fui espancada de 1985 a 1999. Mas, viajando pelo país contando minha história, ganhei força. Acho que isso é verdade para mulheres espancadas e para pessoas LGBTQIA+ também. Cada vez que contam sua história, ganham mais força.

E percebi que continuarei a contar não apenas minha história com o Vaticano, mas minha história com a população LGBTQIA+. Eu precisava continuar a defendê-los porque eles não tinham defensores na Igreja institucional.

 

Você deve ter ficado muito braba com a CDF e os bispos que a trataram dessa maneira.

 

Não concordei com o cardeal Joseph Ratzinger quando essa notificação saiu, mas o respeitei. Acredito que ele estava sinceramente fazendo o que acreditava ser certo.

Você já ouviu minha história do encontro com o cardeal Ratzinger?

 

Não.

 

Em 1998, as coisas estavam realmente sombrias, e minha provincial teve a ideia de que ela e eu deveríamos fazer esta peregrinação a Munique, onde a fundadora das Irmãs Escolares de Notre Dame está sepultada, e rezar em seu túmulo por um milagre. “Porque você precisa de um milagre”, disse ela.

Quando estávamos trocando de avião em Roma para ir a Munique, vemos essa pessoa passando na nossa frente. E minha superior diz: “este é o cardeal Ratzinger.” Eu disse “Oh não, provavelmente é algum burocrata de baixo escalão do Vaticano que se parece com o cardeal Ratzinger”. Ele parecia muito abatido e tinha uma camisa que poderia ter sido clerical, mas ele não estava vestido, tipo, para ser “conhecido”.

Entramos no avião e vejo que o assento ao lado dele está vazio. Eu simplesmente me sentei ao lado dele e comecei a falar com ele. Eu disse: “Sou uma irmã Escolar de Notre Dame e vou para nossa casa-mãe em Munique”. Ele diz: “Minha tia era uma irmã Escolar”. “Oh”, eu disse, “qual era o nome dela?”. Ele disse: “Ratzinger”.

Oh”, eu disse, “você é o cardeal Ratzinger?”. “Sim”. “Oh. Bem, eu sou a irmã Jeannine Gramick”.

Ele sorriu. “Oh, sim, eu te conheço há 20 anos” [Irmã Gramick ri].

Tivemos uma conversa de cerca de 20 minutos. Ele foi muito amigável. Encantador, eu diria. Ele me perguntou como entrei neste ministério. Eu disse a ele sobre Dominic. E ele era bom; ele aprovou que nos reuníssemos e celebrássemos missa para cristãos gays.

Depois daquela reunião, pensei naquela leitura do Evangelho de João, o discurso da Última Ceia onde Jesus diz: “Eu sou a videira, vocês são os ramos”. Mas, em vez de uma videira, visualizei uma enorme árvore com muitos galhos ao redor. O cardeal Ratzinger está lá fora em um galho, e eu estou lá fora a um galho provavelmente 180 graus ao redor daquela árvore. Não poderíamos estar mais distantes em nosso pensamento teológico. Mas estamos enraizados naquela única árvore. Temos uma fé comum em Cristo, e é isso que nos une. Estamos todos em volta daquela árvore em algum lugar.

Eu amo o cardeal Ratzinger, o Papa Bento XVI. Eu acho que ele é um homem santo. Eu realmente amo.

 

Você tem muito mais abertura para aqueles que a perseguiram do que a maioria de nós tem.

 

Nós, povo de Deus, estamos sempre crescendo em nosso conhecimento e consciência. Estamos nos tornando mais sensíveis porque sabemos mais.

Adoro essa citação do cardeal John Henry Newman. Ele disse: “Viver é mudar. Ser perfeito é ter mudado com frequência”. Sim, cometemos erros no passado, mas não tínhamos tanto conhecimento no passado como temos agora. As pessoas LGBTQIA+ estão saindo e contando suas histórias. A ciência está nos dizendo muito mais.

 

Você diria que seu trabalho tem sido principalmente sobre relacionamentos pessoais, e não sobre política?

 

Sim, mas também é sobre política. Política significa pessoas investidas de poder. Se eles estão oprimindo as pessoas que você quer ajudar, você tem que se envolver politicamente.

Eu vou te contar outra pequena história. A certa altura, para satisfazer o cardeal James Hickey, de Washington, D.C., minha provincial sugeriu que talvez eu devesse tirar um ano sabático. Fui enviada para Nova York, e o Conselho da Cidade de Nova York tinha esse projeto de lei dos direitos dos homossexuais, que estava em vigor há anos. Testemunhei pela defesa dos direitos civis das pessoas homossexuais. E recebi um telefonema da minha provincial pouco depois.

Ela disse: “Jeannine, alguém disse que você testemunhou a favor do projeto de lei dos direitos dos homossexuais e estava com o véu”. Eu disse: “Sim, testemunhei.” Ela disse: “Mas você nunca usa véu! Você está apenas usando a instituição”.

Eu disse: “Bem, é claro que estou. Para o que é a instituição? A instituição é para ser usada para ajudar o povo. Essa é a única razão para que temos instituições, para o bem das pessoas. Então é claro eu estou vestindo um véu para dar um visual que eu represento a posição católica de justiça para as pessoas gays e lésbicas”.

Isso é o que chamo de política.

 

Há alguns meses você e o New Ways Ministry, tanto no sentido pastoral quanto pessoalmente, vem recebendo cartas de apoio do Papa Francisco. Como tem sido isso para você?

 

Fiquei muito feliz por ele saber de nós, por gostar do que estávamos fazendo, por ver que estávamos participando da missão da Igreja.

Honestamente, gostaria que você escrevesse todo este artigo dedicado ao Papa Francisco. Ele é minha inspiração.

Bob, quando estava morrendo de câncer no final de 2013, disse-me: “Estou muito feliz por morrer sob este papa”. Porque Bob era um bom padre que deu sua vida inteira para pessoas que estavam à margem, e aqui ele tinha um papa que estava fazendo a mesma coisa.

 

Olhando para os últimos 50 anos, qual foi a melhor parte?

 

A melhor parte é ver a mudança que aconteceu, ver mais e mais pessoas começando a dizer: “Eu apoio as pessoas LGBTQIA+”, e protestando quando foram demitidos de seus empregos. Eu sei de mais de 100 casos de professores que foram demitidos de escolas católicas por serem gays ou pelo casamento civil. E em muitos lugares agora, há protestos públicos. Os leigos estão começando a se levantar. Isso me dá esperança.

Os gays me dizem: “O Papa Francisco é maravilhoso, mas ele não mudou o ensino da Igreja”. Bem, esse não é o seu trabalho agora. Eventualmente, é o seu trabalho, mas agora cabe a nós, as pessoas, articular a fé. No que nós acreditamos?

Temos que defender aquilo em que acreditamos e não passar a bola. Temos que seguir nossas consciências. Precisamos que as pessoas nos bancos da Igreja comecem a escrever cartas aos bispos dizendo que estão retirando as doações até que se comece a tratar as pessoas LGBTQIA+ como seres humanos e parem de excluí-las, porque está machucando não só elas, mas todo o corpo de Cristo.

Às vezes, temos que ir contra o que dizem os líderes de nossa Igreja. Temos que agir por amor e não por medo. O Papa Francisco não quer pequenos robôs. O Vaticano II também não.

 

Olhando para o futuro, o que você espera para católicos LGBTQIA+?

 

Minha esperança para os católicos LGBTQIA+ fazem que todos se sintam bem-vindos e confortáveis em qualquer paróquia do mundo. Que eles possam se sentir tão parte da Igreja quanto qualquer outra pessoa.

O que importa é como você segue as bem-aventuranças. Como você é para os pobres? Você veste as pessoas se elas estiverem nuas? Você visita aqueles na prisão? Você é misericordioso? Isso é o que eu espero que importe, não o gênero, identidade de gênero ou orientação sexual de alguém.

 

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