O pesquisador analisa as crises que permeiam os países latino-americanos
A situação social, econômica, política e ambiental da América Latina é "dramática". É assim que Eduardo Gudynas, que há mais de três décadas acompanha a problemática do desenvolvimento, do meio ambiente e dos movimentos sociais na região, se refere à conjuntura atual. "Somam-se mais de 22 milhões de pobres, elevando a pobreza total para 210 milhões de pessoas na América Latina. Ao menos 43 milhões de empregos foram perdidos, a informalidade aumentou, a insegurança alimentar retornou em vários países, mais de 160 milhões de estudantes sofreram interrupções em suas aulas e o atendimento à saúde, ao invés de melhorar, piorou. Esses e outros problemas estão todos interligados", constata.
A seguir, ele comenta os resultados da COP26, o Pacto de Glasgow e conjuntura dos países latino-americanos, com destaque para o Chile, à luz do 2º turno das eleições presidenciais, que serão realizadas em 19 de dezembro. "O medo diante da extrema direita é ainda mais evidente nas eleições no Chile. O candidato de extrema direita, José Antonio Kast, obteve a maioria no primeiro turno para presidente. Mas o que é mais alarmante é que a direita controlará a metade do senado e, na prática, também a câmara de deputados. Esse resultado surpreendeu a muitos, pois, desde a eclosão social de finais de 2019, tudo indicava uma guinada à esquerda. E mais, na eleição de membros para a Convenção Constituinte, o progressismo conquistou uma boa votação, porém ainda mais esperançosa foi a eleição de muitos membros que representavam uma renovação da esquerda para além do progressismo", afirma.
Eduardo Gudynas em conferência no IHU (Foto: Jonathan Camargo | IHU)
Eduardo Gudynas é pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social - CLAES. Foi o primeiro latino-americano a receber a cátedra Arne Naess em Justiça Global e Meio Ambiente da Universidade de Oslo, Noruega. Recentemente, passou a integrar a comissão para a transformação da economia do Clube de Roma. Seus últimos livros são sobre extrativismos e direitos da Natureza, publicados na Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. Em inglês, sua obra mais recente é ‘Extractivisms’ (Fernwoord, 2021).
IHU - Quais são os principais aspectos das crises vividas nos países da América Latina?
Eduardo Gudynas - É preciso compreender que estamos imersos em múltiplas crises. A insistência em que sofremos apenas com a Covid-19 é utilizada para minimizar outras crises igualmente graves. Os problemas na saúde pública agravaram dificuldades que já estavam presentes, vindas de anos anteriores. Há dificuldades econômicas, desemprego e o aumento da pobreza. Nenhum desses problemas começou com a pandemia. Por sua vez, isso explica que essas crises afetam todas as dimensões sociais, econômicas, políticas e ambientais, e que seus componentes estão interligados. Não podem ser tratados separadamente.
A situação é dramática: somam-se mais de 22 milhões de pobres, elevando a pobreza total para 210 milhões de pessoas na América Latina. Ao menos 43 milhões de empregos foram perdidos, a informalidade aumentou, a insegurança alimentar retornou em vários países, mais de 160 milhões de estudantes sofreram interrupções em suas aulas e o atendimento à saúde, ao invés de melhorar, piorou. Esses e outros problemas estão todos interligados.
IHU - Quais são as principais expressões desse conjunto de crises?
Eduardo Gudynas - Existem algumas análises que consideram a situação atual como uma etapa ou expressão da “crise do capitalismo”. Essas abordagens, às vezes, são muito simplistas porque não entendem que o capitalismo, em qualquer uma de suas versões, implica “crises”. Então, o fato dessas crises existirem não significa que o capitalismo esteja ameaçado, nem que desabe amanhã. Ao contrário, o capitalismo se reproduz aproveitando as crises e, em alguns aspectos, isso serve para reforçar suas versões mais primitivas. O que está em curso na América Latina e em outras regiões são brutais transferências de excedentes que são capturados como dinheiro, ao passo que, ao mesmo tempo, outros são derivados como externalidades de todos os tipos, sanitárias, sociais, econômicas e culturais.
IHU – O senhor propôs a ideia de necropolítica para abordar essa conjuntura. Por que essa ideia nos ajuda a compreender tais situações?
Eduardo Gudynas - A pandemia acelerou uma mudança mais profunda nos modos de entender a política. Os grupos políticos partidários e os Estados aproveitaram a pandemia para reforçar mecanismos de vigilância, controle e disciplina. Utilizaram a crise sanitária para justificar esses altos níveis de pobreza e desemprego. Por sua vez, argumentando que precisam sair da crise econômica pandêmica, aplicam medidas de proteção a empresas e investidores que até há pouco tempo eram injustificáveis.
Sob essa condição surge a necropolítica. Trata-se de deixar as pessoas e a Natureza morrerem para manter a economia viva. Estamos todos mais controlados e vigiados, aumentou a pobreza, morreram centenas de milhares por Covid e o meio ambiente foi ainda mais destruído. Mas de alguma forma isso foi aceito pelos políticos e por boa parte da sociedade.
É sobre essa mudança que o conceito de necropolítica coloca a sua ênfase. Está em curso uma mudança na essência do modo como se compreende a política, e isso faz com que todas essas crises sejam aceitas e naturalizadas. Há medo entre diversos setores da cidadania, uma crescente resignação entre outros, e há os que exigem mais controle ainda, mais facilidades para as empresas, mais destruição ecológica.
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A ideia de necropolítica também indica que está mudando o que consideram aceitável ou inaceitável nas políticas públicas, em suas exigências aos governos e em relação ao que estimam que seria vergonhoso tolerar. No passado, também existiam crises econômicas, pobreza e violência, mas, ao mesmo tempo, havia grupos políticos partidários que consideravam isso inaceitável e buscavam alternativas, e tudo isso era alimentado por fortes mobilizações cidadãs. O debate político estava presente nos diferentes modos de defender a vida, de tentar superar essas crises.
Ao contrário, na necropolítica existe um fatalismo em deixar as pessoas e a Natureza morrerem, ainda que estejam obcecados em manter as economias vivas. Parece que não percebemos que pelo menos 1,5 milhão de latino-americanos morreram pela pandemia. É um número espantoso. É uma onda de mortes que em outros tempos teria derrubado governos e presidentes, mas isso não aconteceu, colocando-se a culpa, repetidas vezes, na Covid-19. O vírus se tornou uma desculpa para fortalecer a necropolítica.
IHU - Alguns componentes dessa necropolítica, como a pobreza e a violência, estão presentes na América Latina há muito tempo.
Eduardo Gudynas - Correto. A violência tem sido um problema muito grave, não só hoje em dia, mas se arrasta desde a época colonial. Muitas de suas conhecidas expressões foram fortalecidas com a pandemia. Por exemplo, uma violência estatal em impor as medidas de quarentena e confinamento apelando a policiais e militares. A escala de tudo isso foi imensa. Por exemplo, avaliamos que pelo menos 300 milhões de latino-americanos passaram por algum tipo de confinamento. Grupos ilegais também se fortaleceram, como os concentrados no garimpo de ouro ou nos cultivos para as redes de narcotráfico, que controlam os territórios por meio da violência.
A condição necropolítica se apoia nessa disseminação da violência. No entanto, a necropolítica não se refere à violência em atos específicos, como no caso dos grupos armados na Colômbia ou as maras centro-americanas. Não é uma política que ordene executar pessoas. Contudo, é uma política que permite que morram, seja pela Covid-19, seja por esses grupos armados ou a criminalidade tradicional, e se resigna a isso. É a inação. É a aceitação resignada. Como se assumisse que acabaram todas as alternativas para poder solucionar o drama da violência.
A velha política apresentava discursos e medidas para tentar resolvê-la, independente do fato de que possamos concordar ou não com essas propostas. Esses assuntos eram matéria de debate político e amplos setores da cidadania exigiam soluções, porque não toleravam e se indignavam com os assassinatos. Contudo, a partir da pandemia, há uma transformação da moral pública: isso já não gera tanta indignação, não produz vergonha ou angústia, e passa a ser cada vez mais aceito. Esse é o triunfo da necropolítica.
Então, a necropolítica é o resultado de um rompimento no campo da moral. Isso acontece porque a opressão agora está atuando nesse nível mais profundo e consegue anular outras opções morais. Antes, as condições morais consideravam inaceitável que as pessoas morressem, as mortes geravam angústia e indignação. Há anos, tudo isso vem sendo erodido, mas com a pandemia o processo se acelerou e agravou. A opressão deu mais um passo, atuando agora nesse campo prévio às ideologias políticas, para modificar os mandatos morais que nutrem todas as principais correntes políticas.
IHU – Qual é a sua avaliação das negociações da convenção sobre a mudança climática que acabou, recentemente, em Glasgow?
Eduardo Gudynas - Muitos governantes ofereceram discursos radicais e promessas de enfrentar a mudança climática. Por exemplo, Iván Duque, da Colômbia, prometeu a neutralidade nas emissões líquidas de carbono até 2050, e o governo de Jair Bolsonaro assinou um acordo para frear o desmatamento. Mas suas práticas concretas, dentro de cada país, estão longe de cumprir essas promessas, pelo contrário, agravam as emissões de gases do efeito estufa. É assim que Duque promove a exploração de petróleo e gás por fracking e defende a mineração de carvão, e no Brasil acaba de ser confirmado um aumento de 22% no desmatamento na Amazônia, alcançando o nível mais alto em 15 anos.
O Brasil, junto a países como Argentina e Uruguai, chegou inclusive a assinar o compromisso para reduzir as emissões de metano, que é um poderoso gás do efeito estufa originado, por exemplo, na agricultura e na pecuária. Se realmente agissem assim, atingiriam o poderoso agronegócio nesses países. Mas assinaram esse acordo em Glasgow porque não impõe medidas que garantam o seu cumprimento. São apenas declarações de intenções que servem para a publicidade e para acalmar as demandas dos cidadãos, mas não garantem uma redução nas emissões de gases do efeito estufa.
Todos os governos são responsáveis. É verdade que uns mais do que outros, mas, nesse momento, todos possuem algumas responsabilidades. Por outro lado, os países industrializados evitam assumi-las em todos os seus aspectos, especialmente na ajuda financeira. Mas, ao mesmo tempo, muitas nações do Sul usam suas baixas proporções de emissões de gases do efeito estufa para continuar poluindo e para continuar exportando combustíveis fósseis, como acontece com Colômbia, Bolívia e Venezuela. Ou usam a desculpa da necessidade de se desenvolver para serem ainda mais poluidores, como Índia e México.
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Desse modo, chega-se ao documento final assinado por todos os governos, o Pacto de Glasgow, em que reconhecem que a meta deve ser reduzir em 45% as emissões de CO2 até 2030, e a zero até 2050. Mas, no mesmo pacto, alguns parágrafos depois, confessam que as ações dos governos não conduzem a essas reduções, mas atuam em sentido inverso, aumentando em 13,7% os gases do efeito estufa até 2030.
Isso faz com que o documento assinado em Glasgow seja impactante porque é uma confissão escrita de seu fracasso. E nada acontece. Não há nenhum cataclismo político, nenhum ministro do meio ambiente renunciou. Boa parte da imprensa internacional nem sequer compreende o conteúdo desse pacto, e existem organizações que até o apoiaram. Isso é necropolítica. O Pacto de Glasgow demonstra claramente que se deixa que a Natureza e as pessoas morram.
IHU - A situação política nos diferentes países permite enfrentar essa crise? Por exemplo, as mudanças de governo no Equador e Peru, ou as recentes eleições legislativas na Argentina e as presidenciais no Chile, oferecem oportunidades ou são retrocessos?
Eduardo Gudynas - Por um lado, há muitas mudanças em curso, mas por outro devemos ser cuidadosos na análise para não cair em simplificações. No Equador, venceu a presidência o banqueiro Guillermo Lasso, aplicando uma agenda muito conservadora. No entanto, permanece ativo o progressismo que apresenta semelhanças à agenda política do “lulismo” do Brasil e que no Equador se inspira em Rafael Correa. Mas, ao mesmo tempo, há uma renovação da esquerda que busca deixar para trás as limitações progressistas e explora uma plataforma que é comunitária, territorial, ambiental, feminista e indígena, liderada por Yaku Pérez.
É dito que o Peru se voltou para o que alguns chamam de progressismo ou esquerda, após a vitória do professor Pedro Castillo. Mas, na verdade, o progressismo retrocedeu muito, já que o partido Novo Peru, liderado por Verónika Mendoza, perdeu boa parte de seus eleitores. A renovação da esquerda da Frente Ampla, com Marco Arana, ficou mais reduzida. Peru Livre, o partido que tinha como candidato à presidência Castillo, defende um programa dogmático próprio do século passado, que é ideologicamente prévio aos progressismos, e inclusive se distanciou do governo.
Então, é possível notar que os setores conservadores mantêm presença e poder nesses países. Isso alimenta a necropolítica e, na medida em que ela se espalha, fortalece ainda mais o conservadorismo.
Algo semelhante aconteceu com a renovação legislativa argentina, onde retrocedeu o progressismo que corresponde ao atual presidente Alberto Fernández e à vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner. As esquerdas clássicas aumentaram sua presença, porém mais ainda os setores conservadores ligados à presidência anterior de Mauricio Macri. Não só isso, também surgiu uma extrema direita, semelhante à bolsonarista, que conquistou votos para entrar no congresso.
O medo diante da extrema direita é ainda mais evidente nas eleições no Chile. O candidato de extrema direita, José Antonio Kast, obteve a maioria no primeiro turno para presidente. Mas o que é mais alarmante é que a direita controlará a metade do senado e, na prática, também a câmara de deputados.
Esse resultado surpreendeu a muitos, pois, desde a eclosão social de finais de 2019, tudo indicava uma guinada à esquerda. E mais, na eleição de membros para a Convenção Constituinte, o progressismo conquistou uma boa votação, porém ainda mais esperançosa foi a eleição de muitos membros que representavam uma renovação da esquerda para além do progressismo. Entre eles, reconhecidos militantes territoriais, indígenas, ambientalistas e feministas. O segundo lugar na corrida presidencial ficou com o candidato de centro-esquerda, Gabriel Boric, que provém do progressismo. Gera-se uma situação muito tensa, pois ninguém quer um presidente de extrema direita, mas, ao mesmo tempo, Boric representa um progressismo que a renovação de esquerda deseja deixar para trás.
A modernidade viscosa latino-americana e a reinvenção política:
Em resumo, é possível dizer que estamos vendo diferentes tensões entre ao menos três perspectivas. Há correntes de direita, que podem ser mais moderadas, como no Uruguai, ou extremistas, como Bolsonaro e Kast. Aí se alimenta a necropolítica. Os progressismos governam na Argentina e Bolívia, mas seu desempenho é ainda mais criticado, sem avançar em uma renovação de ideias, como também aconteceria no Peru e Chile.
Na dimensão política, seguem presos ao caudilhismo, na econômica, aos extrativismos, e persistem travas, conforme os casos, com demandas como a feminista, indigenista e ambiental. Portanto, não são antídotos eficazes contra a necropolítica.
Por fim, são mantidas as tentativas de renovação de uma esquerda plural, que seja decolonial e, por isso, intercultural, ambiental e desse modo pós-extrativista, feminista e democrática. Essas são alternativas que transcendem os progressismos, que enfrentam a necropolítica, e seu avanço mais recente ocorreu no Equador e no Chile, mas retrocedeu no Peru e é marginal em países como Brasil e Argentina.
IHU - Na última entrevista que nos concedeu, o senhor disse que as “alternativas” para a América Latina “vão além do desenvolvimento capitalista, e para isso temos a inspiração do Bem Viver”. Na prática, o que isso significa em tempos de necropolítica?
Eduardo Gudynas - Especificamente, o ponto em comum nessas renovações da esquerda é que possuem componentes que correspondem ao Bem Viver. São esquerdas porque defendem, por exemplo, a justiça social e rejeitam as aventuras da direita e extrema direita. Mas também reconhecem as limitações de progressismos como os de Lula da Silva, com seu “novo desenvolvimento”. Desse modo, o Bem Viver e outras propostas semelhantes são alternativas ao desenvolvimento em todas as suas variedades. Surgem de vez em quando, e o exemplo mais impactante ocorre na Convenção Constituinte do Chile. Lá, a comissão de meio ambiente inclusive é chamada de “direitos da Natureza e do modelo econômico”. Isso deixa claro que apontam para os direitos da Natureza, que é um componente crucial do Bem Viver e que, por sua vez, corresponde a uma mudança no modo como se compreende o valor e, assim, a associação com os modelos econômicos.
Portanto, não se trata de uma discussão filosófica, mas de uma esquerda que deseja repensar todas as estratégias econômicas a partir de outros pontos de partida. Os componentes podem ser muito concretos, como novos procedimentos para a avaliação de custos e benefícios, ferramentas para tornar explícitas apreciações que não são utilitárias, outra organização do gasto do Estado, e até propostas alternativas de integração entre os países.
Aqui estão os antídotos à necropolítica. Precisamos de uma reconstrução da política que proteja a vida, que considere inaceitável que morram pessoas e também a Natureza. Este é justamente o mandato do Bem Viver. E, por assim dizer, uma política da vida que parte da valorização da vida, não somente por sua utilidade, mas também por sua beleza, histórias e inclusive por suas propriedades intrínsecas. Essa valorização alimenta um compromisso moral em defendê-la. A política da vida no Bem Viver está no modo como praticar isso.