Existem as elites que enriqueceram nos últimos 40 anos e há o resto da população que não aproveita nada das riquezas. Palestra com Gaël Giraud no IHU

A renda mínima universal é justificada pelos efeitos das mudanças climáticas, diz o economista em palestra online promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos

Arte: Natália Froner | IHU

Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 27 Outubro 2020

A tese de que uma renda universal incondicional precisa ser implementada para sanar as consequências do avanço da robotização, como a possibilidade de não haver trabalho humano no futuro, parte de um diagnóstico equivocado da realidade, diz Gaël Giraud, economista francês e professor da Georgetown University, dos Estados Unidos, na conferência "Renda Universal e Justiça Socioambiental. Fundamentos econômicos, éticos e teológicos", ministrada na manhã de ontem, 26-10-2020, em evento online promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. "Na França, o candidato do partido socialista tomou partido por uma renda universal que deveria ser implementada porque estamos avançando por uma sociedade totalmente robotizada e não haverá mais trabalho humano. Esse é um erro de diagnóstico em que as elites estão desconectadas da realidade ecológica. No contexto em que estamos hoje, não há uma robotização integral das nossas sociedades, mas um risco integral das nossas sociedades, e é tendo em vista esse risco que precisamos repensar as nossas relações", argumenta.

O evento online transmitido na manhã de ontem faz parte dos ciclos de estudos "Renda Básica Universal. Para além da justiça social" e "Emergência Climática. Ecologia integral e o cuidado da casa comum", promovidos pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Giraud: “Essa denúncia que o papa faz sobre a financeirização não se encontra em nenhum outro documento das instituições internacionais” (Foto: João Vitor Santos | IHU)

 

De acordo com Giraud, o real problema que já atinge e poderá atingir ainda mais a humanidade nas próximas décadas é a crise ecológica contemporânea e é por causa dos seus efeitos que se faz necessário implementar um programa de renda universal. "Não podemos refletir sobre uma renda básica universal sem entrarmos no nosso contexto mundial da crise ecológica mais grave que já vivemos na história da humanidade", diz.

Nessa situação de crise climática, em que as projeções das pesquisas internacionais indicam que todos os países do globo serão afetados a partir de 2040 por um dos dois fenômenos climáticos, ou a combinação letal de aumento da temperatura e umidade ou estresse hídrico, o economista observa que "não há nenhuma chance de termos sociedades guiadas por robôs nos próximos anos, porque os robôs também precisam de minérios e energias [para serem fabricados]". Ao contrário, em decorrência das mudanças climáticas, todos os países serão atingidos, em algum nível, pela falta de água, energia, minérios ou biodiversidade e ainda pelos eventos climáticos extremos. "Sem minério e energia, nos próximos anos, não haverá robôs. Então, eu não acredito nem um pouco na grande fantasia do trans-humanismo californiano, que acredita que daqui a alguns anos teremos máquinas que farão todo o trabalho humano. Isso não acontecerá simplesmente porque não teremos nem minérios nem energia suficiente para que as máquinas funcionem", assegura.

Ao invés de a mão de obra do trabalho ser substituída por robôs, o grande risco apontado por Giraud é o do retorno da escravidão. "Vou dar um exemplo muito simples: as abelhas estão ameaçadas em todo o planeta pela agricultura química. (...) Alguns economistas dizem que isso não é um problema porque o desaparecimento das abelhas nos obrigará a construir máquinas e drones que polinizarão os campos com braços mecânicos e isso vai aumentar o PIB. Isso me parece uma ironia muito grande, porque precisamos de energia e minérios para fabricar esses drones. A meu ver, a realidade é muito diferente. É o que já estamos observando nos campos pobres da China, onde as mulheres pobres polinizam à mão. Não são máquinas que substituem a polinização; são os pobres. O que está se desenhando não é uma sociedade sem trabalho, em que as máquinas nos substituem. Pelo contrário, é uma sociedade em que teremos de trabalhar cada vez mais e em que a tentação da escravidão será muito grande. Este é o temor principal".

Ele lembra que o Ocidente renunciou à escravidão no século XIX essencialmente porque encontrou energias que foram mais produtivas do que o corpo humano, como o carvão, o petróleo e o gás. Entretanto, menciona, "não sei se teríamos renunciado à escravidão sem esses recursos. Se amanhã faltar petróleo, fico preocupado com a ideia de que uma certa elite cínica tente resgatar a escravidão".

 

 

Nos dias de hoje, ressalta, as lideranças políticas dos países do Ocidente já estão rompendo aos poucos com os direitos trabalhistas e abolindo as aquisições sociais conquistadas nos século XIX e XX. A consequência disso, explica, "é que temos uma uberização, ou seja, uma precarização do mercado de trabalho, em que cada vez mais jovens se tornam autoempreendedores sem qualquer direito, muito mal pagos e trabalham como loucos. Esta é a implantação que firmas multinacionais impuseram aos países do Sul durante anos. Então, a questão da renda universal tem que ser pensada neste âmbito e não em função da invasão do mundo pelas máquinas".

Além disso, informa, o pico de extração do petróleo ocorreu no ano de 2006 e os engenheiros divergem acerca da data limite para a exploração desse recurso natural, mas, possivelmente, irá ocorrer por volta de 2060. "Hoje, no nosso mundo globalizado, a mobilidade está ligada ao petróleo. Pouquíssimos seres humanos se deslocam sem usar esse recurso. Se não pudermos aumentar a quantidade de petróleo do solo, não haverá mais crescimento econômico, porque ele é dependente do consumo de petróleo e haverá uma crise de mobilidade grave e desglobalização. A globalização comercial nos últimos 40 anos foi construída no fato de que o petróleo não custava nada". E acrescenta: "Para a prosperidade, um país precisa de água, energia, minério e biodiversidade".


Renda universal incondicional

Diferentemente daqueles teóricos que defendem a instituição de uma renda universal única ou exclusivamente por causa dos efeitos do avanço do capitalismo, a motivação de Gaël Giraud parte do entendimento de uma cosmovisão cristã da realidade, que critica o culto ao dinheiro e constata que a natureza está sendo destruída pelo homem. Esse pensamento é explícito nos discursos do papa Francisco, em especial na homilia feita na Páscoa deste ano, e na carta do papa endereçada aos trabalhadores dos movimentos populares, publicada igualmente no dia da Páscoa, 12 de abril de 2020. "O ponto de partida da minha reflexão é o fato de que o papa, na homilia do domingo de Páscoa, disse uma frase surpreendente: é hora de pensar novamente em uma renda básica para alguns países do Sul. Isso me motivou a voltar a pensar nessa questão, estimulado pela posição pública do papa Francisco", disse.

No artigo intitulado Uma “renda universal”. A proposta do Papa Francisco, publicado no sítio do IHU neste ano, o economista mencionou a frase do papa aos trabalhadores: "Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos".

No texto, Giraud esclarece o que o papa quis dizer quando usou a palavra "salário" ao se referir à renda universal. "As várias traduções da Carta Pontifícia sugerem que o termo 'salários' não pode ser interpretado de forma estrita: salaire, salarios, salário e wage, mas também Grundeinkommen e remuneração". A proposta do papa, assegura, é endereçada para todos os trabalhadores. "Uma dona de casa, por exemplo, cujos serviços, por não estarem no mercado, nunca são levados em consideração no cálculo do PIB, fornece uma prestação 'de trabalho'? Quem são esses 'trabalhadores' se não são reconhecidos por um status que os qualifica como tal? É precisamente nessa sua invisibilidade que reside o problema que Francisco quer resolver. Acreditamos que a resposta esteja nos próprios "'invisíveis'".

Na palestra, o economista retomou os cinco critérios expostos nesse artigo, os quais definem o que é uma renda universal:

1. um pagamento periódico, diferente do cheque uma tantum de US $ 900 que o governo australiano enviou a seus cidadãos em 2009 para superar as consequências da crise financeira; ou aquele de US $ 1.000 que o governo Trump acabou de enviar às famílias estadunidenses;

2. uma transferência monetária, ou seja, em dinheiro, que oferece a todos a liberdade de fazer o que quiserem com o próprio dinheiro, mas pressupõe, por exemplo, a abertura de uma conta bancária, uma operação incomum para muitos entre os mais pobres;

3. uma contribuição personalizada: o pagamento é efetuado individualmente e não, por exemplo, em base familiar do ponto de vista fiscal;

4. universal: não está sujeito a nenhum requisito específico;

5. incondicional: o pagamento não está coberto por nenhuma obrigação do beneficiário, em especial a de procurar emprego.


Propostas de renda universal

Ele explicou ainda que é preciso prestar atenção no modo como os políticos têm discutido a proposta de uma renda universal nos diferentes países, para não cairmos numa "armadilha". À direita do espectro político, diz, a renda universal é entendida a partir do critério da eficiência econômica e, portanto, os partidários desta posição visam substituir os demais programas sociais por uma renda única. Ja à esquerda, menciona, a renda universal não substitui as demais transferências, mas soma-se a elas e é motivada por um sentimento de justiça social. "Essa distinção elementar, no entanto, imediatamente nos obriga a sair de fáceis dicotomias: a renda universal não é nem de direita nem de esquerda, mas é transversal às nossas categorias políticas tradicionais", afirma.

Segundo ele, a principal objeção contra a renda universal incondicional é a de que ela seria uma utopia irrealista, porque faltaria dinheiro para implementá-la. Entretanto, observa, o obstáculo não é financeiro, mas político e ético. Esse mantra, adverte, "é enganoso: vivemos em um planeta superabundante - embora ameaçado por uma crise ecológica - e em uma economia mundial muito rica, embora corra o risco de se tornar consideravelmente mais pobre devido ao lockdown e ao confinamento". Mas muitas elites, menciona, "temem a demonstração de que essa renda seja uma boa ideia".

O economista defende uma renda mínima no valor de 7,4 dólares diários, valor superior ao 1,9 estipulado pelo Banco Mundial ao fixar a linha de pobreza extrema. Um programa de renda universal incondicional no valor de 7,4 dólares diários custaria menos de 13.000 bilhões de dólares. "Isso pode parecer um número considerável: está próximo do PIB nominal da China em 2018. No entanto, um estudo da ONG Oxfam mostra que, no mesmo ano, 1% das pessoas mais ricas do planeta recebeu uma renda anual de 56.000 bilhões de dólares (igual a 80% do PIB mundial). Se apenas retirássemos um quarto dessa renda, seria suficiente financiar uma renda básica de 7,4 por dia para a parte da humanidade que é privada dela. Após a retirada, ao maior percentil desses super-ricos ainda restariam em média 47.500 de dólares de renda mensal por pessoa, o que deveria ser suficiente para permitir que continuassem levando uma vida digna", argumenta.

Se não implementarmos uma renda universal incondicional e continuarmos com o mesmo modelo econômico, lamenta, "haverá migrações colossais" em decorrência das mudanças climáticas.

 

Desafio espiritual e político

Ainda no artigo mencionado anteriormente, Giraud salienta que a proposta do papa suscita uma série de questões relativas aos meios para tornar a renda universal possível, mas, acima de tudo, nos conduz ao "reconhecimento desses irmãos e irmãs dos movimentos populares e daqueles para quem eles trabalham" e nos lança um desafio que "é espiritual e político".

Esse desafio, acrescenta, "certamente requer uma conversão do olhar individual de cada um de nós, mas também uma reforma das estruturas sociais que produzem e mantêm a invisibilidade daqueles que vivem na periferia de nossas sociedades. A possibilidade de ser visível no espaço público não se baseia exclusivamente em performances individuais, mas depende das regras sociais que legitimam e melhoram nossa vida cotidiana ou, pelo contrário, a tornam precária e a desqualificam". Ele explica ainda que "visibilidade e invisibilidade não são qualidades naturais, mas formas sociais de confirmar ou negar nossos estilos de existência".

O economista também recorda "a tensão espiritual entre 'desordem' e 'harmonia" evocada pelo papa Francisco em entrevista à La Civiltà Cattolica. Essa desordem, pontua, "atravessa todas as nossas instituições", mas "reformá-las é uma questão teologal, mesmo quando se trata de instituições seculares, como as que determinam a renda dos cidadãos".


Relação entre renda universal e bens comuns

De acordo com Giraud, nós vivemos num mundo abundante, capaz de alimentar 7 bilhões de pessoas e será possível nutrir toda a população em 2050. O problema, contudo, reside na má distribuição das riquezas tanto no que diz respeito aos recursos naturais quanto em relação à renda. "Quando se trata de tornar a partilha, de uma fraternidade social, alguns neoliberais nos dizem que isso não é possível porque imaginam o mundo da escassez", destaca.

Diante da abundância, a questão é administrar adequadamente os bens comuns e distribuí-los. "Os bens comuns são o projeto político da modernidade de hoje para o século XXI, o qual devemos implementar para lutar contra as mudanças climáticas. Nos últimos 40 anos, por causa do neoliberalismo, estamos envolvidos num grande projeto de privatização do mundo. E é este projeto que o primeiro capítulo da Encíclica papal Fratelli tutti denuncia como uma lógica perversa, segundo a qual, a natureza, o corpo humano, o genoma, as crianças e as mulheres, podem virar mercadoria e serem vendidos no mercado". Essa visão de mundo, essa "ideologia" de que tudo é passível de uma relação comercial, "privatiza a totalidade do mundo e é responsável pela destruição do planeta", assegura. E exemplifica: "Pensando que somos proprietários privados da Amazônia, mesmo que todos saibamos que ela é um bem comum do planeta, não poderemos fugir do aumento de 4 graus [na temperatura] nas próximas décadas".

Para lutar contra o projeto de privatização do mundo, Giraud sugere como alternativa o projeto dos bens comuns. "É a ideia muito antiga - o Direito Romano já reconhecia isso -, a res communis, a ideia de que podemos ter uma gestão compartilhada de alguns recursos que nos são importantes. Por exemplo, a floresta, a terra, um riacho não podem pertencer ao Estado ou a uma propriedade privada, mas à coletividade, que vai decidir democraticamente as regras de proteção desses bens comuns", esclarece.

A gestão compartilhada dos bens comuns é que poderá gerar uma renda universal, segundo o economista e, nesse sentido, a experiência do Alasca é bastante ilustrativa para pensarmos formas de implementá-la. "Desde 1982, uma fração dos lucros e dividendos retirados pelas empresas no Alasca é paga ao Estado pelas empresas e este lucro é redistribuído aos residentes do Alasca de forma incondicional e individual, portanto, é uma renda universal. O montante é de dois mil dólares por ano".

De acordo com ele, "o mais interessante nesse experimento é a justificativa dada pelo Estado do Alasca. O Estado diz que é uma compensação paga a todos os cidadãos pelo direito de um mal comum, que é o petróleo. O argumento usado pelo Estado do Alasca é que temos um bem comum, uma atividade que destrói o bem comum, há empresas que lucram com essa atividade, então, uma parte do lucro deve ser destinada para a população como forma de renda universal".

Ele lembra ainda que "a grande tradição cristã sempre considerou que o bem comum é mais digno e superior do que o bem privado". Recorrendo a Tomás de Aquino, teólogo, filósofo e doutor da Igreja, Gael destaca que "Santo Tomás não diz que a privatização do mundo era uma boa coisa. Ele diz que no direito natural - aquele que tem maior autoridade depois do direito divino, evidentemente -, a coisa comum (a res communis) é a mais importante, e a propriedade privada é entendida como uma concessão por causa da dificuldade que homens e mulheres têm na gestão do bem comum. O que Tomás diz na Questão 66, na segunda parte da Segunda Parte da Suma Teológica, é que por que os humanos têm muita dificuldade de manter os bens comuns, Deus fez uma concessão e permitiu que possamos ter o que chamamos de propriedade privada. Mas ela é uma concessão marginal, ao passo que o destino último dos bens e da criação é o destino universal dos bens comuns. Daí a minha ideia de articular bens comuns, que são a categoria privilegiada pela Doutrina Social da Igreja, com o financiamento de uma renda universal, exatamente como tem feito o Alasca desde 1982", justifica.

A crise pandêmica nos mostrou que a saúde também é um bem comum e precisa ser administrada como tal. "Se privatizarmos a saúde, não vamos conseguir erradicar o coronavírus. Se ela for tratada como um bem público, ela será tratada pelos Estados mundiais. Precisamos de instituições adaptadas".

No caso da África Subsaariana, em que haverá um aumento demográfico da ordem de 1 bilhão de pessoas nas próximas décadas, algo que jamais ocorreu na história da humanidade, Giraud reitera que a renda universal garantiria o acesso das crianças à educação. "60% das crianças que vão à escola na África Subsaariana não aprendem a ler nem a escrever. O ensino primário já é um fracasso. Com mais um bilhão de indivíduos em 2050, não sei quais serão os desafios da educação. Mas uma renda universal poderia ser uma garantia para as crianças. Quando o papa se posicionou em favor da renda universal na Páscoa, ele se referia aos países do Sul e à África", informa.

 

Crítica ao multilateralismo da ONU

Na ocasião, o economista também criticou a falta de ação propositiva do Fundo Monetário Internacional - FMI e do Banco Mundial - BM para a implementação de uma renda universal. "O multilateralismo da ONU está sofrendo grandes dificuldades. Durante a pandemia, o Conselho de Segurança da ONU foi incapaz de fazer qualquer declaração. Foi a primeira vez desde 1945 que, diante de uma crise mundial, as Nações Unidas em Nova Iorque ficaram mudas. Isso aconteceu porque o que nós chamamos de multilateralismo dissimulava mal a liderança dos EUA. Hoje essa liderança está em colapso. O multilateralismo não consegue mais ocultar o teatro da liderança dos EUA por trás disso. É preciso reconstruir o multilateralismo. Não sei se o Banco Mundial e o FMI estariam prontos para mudar o seu sistema para que países emergentes possam ter tanto peso quanto os EUA nessa instituição. Enquanto isso não acontecer, não penso que o Banco Mundial ou o FMI possam pensar soluções heterodoxas, como é o caso de uma renda universal".

Ele lembra também que hoje as pessoas que representam o 1% mais rico do planeta não vivem somente no Ocidente. "O país que mais tem bilionários é a China", cujo governo recentemente criticou o novo livro do economista Thomas Piketty. "Temos uma globalização dos muito ricos. Há ricos no Brasil, na China, na Europa, na República Democrática do Congo, ou seja, não é mais uma questão de Norte e Sul, mas uma questão que perpassa todos os países, que têm suas elites que enriqueceram nas últimas quatro décadas, e há o resto da população que não aproveita nada das riquezas".

 

Da ecologia integral à economia pela vida

Essa não é a primeira vez que Giraud participa de conferência do IHU. Em 2016, ele esteve na Unisinos São Leopoldo e abordou as relações da Encíclica Laudato Si', e o próprio pontificado de Francisco, com o Ensino Social da Igreja. “O que acho novidade é o momento político em que Francisco se dirige a todo ser humano. Na França, por exemplo, muitas pessoas dizem que não votam por descrédito nos políticos. Mas, se tivesse algum político com a lucidez que o papa tem em Laudato Si’, votariam nele”, observou durante a palestra naquele ano.

 

 

Era um contexto em que se analisava a primeira Encíclica de Francisco, construída à luz de muitos cientistas e especialistas e sendo pautada por uma temática global e não apenas de questões clericais. Foi por isso que Giraud insistiu tanto que a ideia de ecologia integral, presente em Laudato Si', é, além de uma lembrança de que todas as formas de vida do planeta se correlacionam, uma denúncia contra lógicas da financeirização que vinha inundando o mundo. “Essa denúncia que o papa faz sobre a financeirização não se encontra em nenhum outro documento das instituições internacionais”, disse.

 

 

 

Agora, o economista volta no contexto da publicação de Fratelli Tutti, um documento que, para muitos, segue na esteira de Laudato Si'. Afinal, se na ecologia integral ficou claro que tudo está inter-relacionado e que uma forma de vida está amarrada a outra, nada mais natural do que concluir que somos todos irmãos e que juntos precisamos conceber saídas que nos tirem da financeirização e nos levem para uma economia pela vida. Assim, parece ser natural que se conceba uma conversão ecológica. E a pandemia parece ter acelerado as coisas e escancarado a emergência de outras relações com o planeta e a reinvenção de uma economia. “A pandemia está nos forçando a entender que não existe capitalismo verdadeiramente viável sem um sistema de serviço público forte e a repensar completamente a maneira como produzimos e consumimos, porque essa pandemia não será a última", observa, em outro artigo reproduzido pelo IHU.

 

A experiência de uma conversão pessoal e uma transição possível

Gaël Giraud possui uma história curiosa. Muito bem graduado, o economista francês vivia nos círculos do mercado financeiro, preocupado em aumentar rendimentos e com bem pouca atenção às consequências de uma economia financeirizada. Isso até que percebeu que girava em um círculo vazio e, ainda pior, que poderia alimentar as desigualdades e sufocar o planeta. Todas essas questões o empurraram para um processo de conversão pessoal, que o trouxeram para a Companhia de Jesus. Já como jesuíta, passa a pensar na emergência de não só uma conversão pessoal, mas de pensar outras formas de operar as Ciências Econômicas.

É nesse contexto que Giraud vai pensar no conceito de transição ecológica, que mais tarde também vai levar as discussões de preparação nos grupos que assessoraram o Papa quando da escritura de Laudato Si'. Parte desses movimentos de conversão e transição, Giraud desenvolve no seu livro Ilusão Financeira. Dos subprimes à transição ecológica (São Paulo, Loyola, 2015). Quando da sua passagem pelo IHU, também publicou um artigo no Cadernos de Teologia Pública, intitulado Laudato Si’ e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: uma convergência?, em que revela um pouco de sua perspectiva.

 

 

No texto, conclui que “ao advertirem da situação alarmante do desafio climático, examinada do ponto de vista do ‘desenvolvimento sustentável’ ou da ‘ecologia humana’, o discurso do Papa e as declarações onusianas convergem indiscutivelmente. Integrando a questão social no cerne da abordagem ecológica do desenvolvimento, ambos afirmaram o caráter necessariamente inclusivo de todo progresso político”.

 

Uma nova Encíclica, um novo contexto

O Papa Francisco já trabalhava na elaboração de Fratelli Tutti quando a pandemia causada pelo novo coronavírus eclodiu. Mas, por ironia, muitas das premissas que já inspiravam o documento se confirmaram e ainda com uma maior potência. Para Giraud, a principal lição dessa pandemia diz respeito justamente à vulnerabilidade, que já estava presente em Laudato Si' e que também é ressignificada na nova encíclica. “Uma vulnerabilidade em dois níveis. Primeiro, do ponto de vista da saúde, e depois com a interrupção das cadeias de suprimento internacional, que correm o risco de provocar fome, principalmente na África e na Índia. É a consequência de uma globalização mercantil que organizamos há 40 anos em torno de cadeias de valor de fluxo just-in-time e com vistas a maximizar retornos de curto prazo. E que é completamente não resiliente diante de choques como este que estamos enfrentando”, analisa em entrevista reproduzida no sítio do IHU.

 

 

 

Saiba mais sobre Gaël Giraud

Jesuíta, professor na Georgetown University, é graduado pela Ecole Nationale de la Statistique et de l’Administration Economique - ENSAE e pela Ecole Normale Supérieure. Realizou mestrado em Modelagem e Métodos Matemáticos em Economia, na Ecole Polytechnique/University Paris-1. Atualmente é diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique - CNRS, membro do conselho científico do Laboratório sobre a regulação financeira e do Observatório Europeu Finance Watch, docente no Centre Sèvres e membro do conselho científico da Fundação Nicolas Hulot para a Natureza e o Homem.

Giraud, em conferência no IHU em 2016 (Foto: João Vitor Santos| IHU)

 

Além disso, é professor na École Nationale des Ponts et Chaussées, em Paris. Também é economista chefe da Agência Francesa de Desenvolvimento, a Agence Française de Développement, e diretor da Chaire Energie et Prosperité (Ecole Normale Supérieure, Ecole Polytechnique, ENSAE).

 

Temática presente em dois ciclos

A temática da renda básica universal e da justiça socioambiental, como vimos, são temas que guardam estreitas relações. E esses temas perpassam dois ciclos de debates que estão sendo promovidos pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

O primeiro deles é A Renda Básica Universal (RBU) para além da justiça social, que teve início em 14 de outubro e segue até 9 de novembro.

 

 

 

 

O outro ciclo é Emergência climática, ecologia integral e o cuidado da nossa casa comum, que teve início em 15 de outubro e segue até 6 de novembro, com a palestra de encerramento de Stefano Zamagni, economista italiano da Universidade de Bologna, intitulada Economia a serviço do bem comum. Desafios e perspectivas no pós-pandemia.

 

 

Dando continuidade aos ciclos de debate, na próxima quarta-feira, 28-10-202, o IHU promove a palestra Perspectivas da renda para um mundo novo. Transição ambiental e cultural, a ser ministrada pelo Prof. Dr. Moysés Pinto Neto. O evento será transmitido pela Plataforma Teams e pelo canal do IHU no YouTube.

 

 

Artigos de Gaël Giraud publicados no IHU

 

Entrevistas com Gaël Giraud publicadas no IHU

 

Notícias com Gaël Giraud publicadas no IHU