18 Setembro 2020
“A pandemia reforçou o que vem minando as bases do capitalismo desde 2008: o vínculo entre lucros e acumulação de capital. A crise atual revelou uma economia pós-capitalista na qual os mercados de bens e serviços reais não coordenam mais a tomada de decisões econômicas, a tecnoestrutura atual (que inclui as grandes empresas de tecnologia e Wall Street) manipula o comportamento em uma escala industrial e o demos está excluído de nossas democracias”, escreve o economista Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças grego, em artigo publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Setembro/2020. A tradução é do Cepat.
Em 12 de agosto, algo extraordinário aconteceu. Noticiou-se que, nos primeiros sete meses de 2020, a economia do Reino Unido havia sofrido a maior contração da história (queda na renda nacional de mais de 20%). A Bolsa de Valores de Londres reagiu com uma alta no FTSE 100 (seu principal índice de ações) de mais de 2%. No mesmo dia, quando os Estados Unidos começavam a parecer um estado falido, não apenas uma economia com problemas, o índice S&P 500 atingiu um pico sem precedentes.
Sem dúvida, os mercados financeiros há muito recompensam os resultados que aumentam a miséria. As más notícias para os trabalhadores de uma empresa - dispensas planejadas, por exemplo - costumam ser boas notícias para os seus acionistas. Mas quando as más notícias atingiam a maioria dos trabalhadores simultaneamente, as bolsas sempre caíam, devido à expectativa razoável de que, quando a população apertasse os cintos, toda a renda e, portanto, o rendimento médio e os dividendos, seriam comprimidos. A lógica do capitalismo não era bonita, mas era compreensível.
Não mais. Não existe uma lógica capitalista para os acontecimentos que culminaram em 12 de agosto. Pela primeira vez, uma expectativa generalizada de menor renda e lucratividade levou a um frenesi de compras sustentado em Londres e Nova York ou pelo menos não o impediu. E isso não é porque os especuladores estão apostando que as economias do Reino Unido e dos Estados Unidos chegaram ao fundo do poço, tornando este um ótimo momento para comprar ações. Não, pela primeira vez na história, os financistas não ligam para a economia real. Veem que a Covid-19 colocou o capitalismo em uma animação suspensa. Veem como desaparecem as margens de lucro. Veem o tsunami da pobreza e seus efeitos de longo prazo na demanda agregada. E veem como a pandemia revela e reforça profundas divisões raciais e de classe pré-existentes.
Os especuladores veem tudo isso, mas consideram irrelevante. E não estão errados. Desde que a Covid-19 colidiu com a enorme bolha que os governos vinham utilizando para relançar o setor financeiro, a partir de 2008, os mercados de ações em expansão tornaram-se compatíveis com uma implosão econômica massiva. Foi um momento historicamente significativo, que marcou uma transição sutil, mas discernível, do capitalismo para um tipo peculiar de pós-capitalismo.
Mas vamos começar do início. Antes do capitalismo, a dívida aparecia no final do ciclo econômico. No feudalismo, a produção vinha primeiro. Os camponeses trabalhavam nos campos dos senhores e a distribuição vinha após a colheita, quando o xerife recebia a parte que correspondia ao senhor. Parte dessa cota posteriormente era monetizada quando o senhor a vendia. Só então surgia a dívida, quando o senhor emprestava dinheiro aos devedores (muitas vezes até ao rei).
O capitalismo inverteu a ordem. Uma vez que a mão de obra e a terra haviam sido mercantilizadas, a dívida era necessária antes mesmo do início da produção. Os capitalistas sem-terra tiveram que se endividar para alugar terras, trabalhadores e máquinas. Os termos desses arrendamentos determinavam a distribuição da receita. Só então podia começar a produção, gerando renda cujo resíduo era o lucro dos capitalistas. Consequentemente, a dívida alimentou a promessa inicial do capitalismo. Mas foi apenas na Segunda Revolução Industrial que o capitalismo foi capaz de reformular o mundo à sua imagem.
O eletromagnetismo deu origem às primeiras companhias em rede, que produziam de tudo, de usinas de geração de energia e rede elétrica a lâmpadas para todas as casas. As necessidades colossais de financiamento dessas empresas geraram o megabanco, junto com uma capacidade considerável de criar dinheiro do nada. A aglomeração de megaempresas e megabancos criou uma tecnoestrutura que usurpou mercados, instituições democráticas e os meios de comunicação, o que primeiro conduziu aos “loucos anos 1920" e depois à crise de 1929.
De 1933 até 1971, o capitalismo global estava planejado centralmente sob diferentes reproduções da estrutura de governança do New Deal, incluindo a economia em guerra e o sistema de Bretton Woods. Como esse marco foi arrasado em meados dos anos 1970, a tecnoestrutura, disfarçada de neoliberalismo, recuperou seus poderes. Depois, veio uma enxurrada de 'exuberância irracional' ao estilo dos anos 1920, que culminou na crise financeira global de 2008.
Para reabilitar o sistema financeiro, os bancos centrais canalizaram ondas de liquidez muito barata para o setor financeiro, em troca da austeridade fiscal universal que limitou os gastos das famílias de baixa e média renda. Incapazes de se beneficiarem de consumidores atingidos pela austeridade, os investidores passaram a contar com constantes injeções de liquidez dos bancos centrais, um vício com graves efeitos colaterais para o próprio capitalismo.
Consideremos a seguinte reação em cadeia: O Banco Central Europeu dá ao Deutsche Bank nova liquidez a juros quase zero. Para lucrar com isso, o Deutsche Bank deve emprestar esse dinheiro, embora não para as "pessoas pobres", cujas circunstâncias deterioradas enfraqueceram sua capacidade de pagar. Por isso, o empresta, por exemplo, à Volkswagen, que já está inundada de economias porque seus executivos, temendo uma demanda insuficiente por novos carros elétricos de alta qualidade, adiaram investimentos cruciais em novas tecnologias e empregos bem remunerados. Embora os chefes da Volkswagen não precisem do dinheiro extra, o Deutsche Bank o oferece a uma taxa de juros tão baixa que a aceitam e imediatamente a usam para comprar ações da Volkswagen. Naturalmente, o preço das ações dispara e, com ele, os bônus dos executivos da Volkswagen (que estão vinculados à capitalização de mercado da companhia).
De 2009 a 2020, essas práticas ajudaram a desvincular os preços das ações da economia real, resultando em uma "zumbificação" corporativa generalizada. Assim estava o capitalismo quando chegou a Covid-19. Ao afetar o consumo e a produção ao mesmo tempo, a pandemia forçou os governos a repor a renda em um momento em que a economia real tinha a menor capacidade de investir na geração de riqueza não financeira. Como resultado, os bancos centrais foram chamados a estimular ainda mais a bolha da dívida que já havia "zumbificado" às corporações.
A pandemia reforçou o que vem minando as bases do capitalismo desde 2008: o vínculo entre lucros e acumulação de capital. A crise atual revelou uma economia pós-capitalista na qual os mercados de bens e serviços reais não coordenam mais a tomada de decisões econômicas, a tecnoestrutura atual (que inclui as grandes empresas de tecnologia e Wall Street) manipula o comportamento em uma escala industrial e o demos está excluído de nossas democracias.
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O pós-capitalismo já está aqui? Artigo de Yanis Varoufakis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU