16 Novembro 2021
"Ter comparado as medidas introduzidas pelo passaporte verde aos campos de concentração foi uma infâmia, que acertadamente suscitou os protestos indignados da comunidade judaica. É o nosso Parlamento, eleito pelo povo, que no pleno cumprimento da Constituição - como confirma o aval incondicional do Presidente da República - exige de todos sacrifícios no interesse de todos. Talvez de vez em quando até mesmo os filósofos deveriam se esforçar para ver melhor a realidade", escreve Giuseppe Savagnone, professor de doutrina social da Igreja no departamento de jurisprudência da LUMSA (Libera Università degli Studi Maria SS Assunta de Roma), sede de Palermo, em artigo publicado por Tuttavia, 12-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Teve ampla repercussão o curto vídeo em que Mons. Carlo Viganò - ex-núncio apostólico nos Estados Unidos - lança um duro ataque à política das vacinas: “Em todas as partes do mundo onde a psico-pandemia está em vigor”, diz o arcebispo, “as pessoas vão às ruas e expressam sua discordância. As mídias do regime, praticamente todas, são sistematicamente silenciadas sobre o que, porém, podemos ver na Internet. Acordamos um pouco tarde, é verdade, mas estamos começando a entender que nos enganaram por quase dois anos, nos contando coisas que não correspondiam à realidade, dizendo que não havia cura, que estávamos morrendo de Covid, enquanto matavam deliberadamente os infectados para nos fazer aceitar máscaras, lockdown e toques de recolher. In nomine Patris, et Filii, et Spiritui Sancti” (Corriere della Sera online de 10 de novembro de 2021).
Provavelmente nem mesmo a maioria dos no-vax se sentiria confortável em afirmar que os cinco milhões de pessoas que morreram pela pandemia (ou pelo menos um certo número delas) foram mortas "deliberadamente" (por quem? Pelos médicos nos hospitais?) para que as medidas restritivas fossem aceitas. Até porque, para apoiar uma afirmação tão grave, existe, como única prova, a palavra de Mons. Viganò, que, como ele mesmo fala, descobriu tudo isso pesquisando "na Internet".
Por mais extrema que seja, a intervenção do arcebispo confirma que a revolta contra as vacinas e contra o passaporte verde não pode ser descartada como um fenômeno marginal, simples resultado da ignorância, mas envolve diretamente expoentes de uma elite cultural, bem como do mundo político, evidenciando uma profunda cisão dentro da própria classe intelectual.
É bem conhecida a posição, nesse sentido, de um filósofo do calibre de Giorgio Agamben, que, embora sem falar em homicídios intencionais como Viganò, antecipou a sua análise, falando de "invenção de uma epidemia, segundo ele, fruto da dramatização de "uma gripe normal, não muito diferente das recorrentes de todos os anos", e denunciou as "medidas emergenciais frenéticas, irracionais e totalmente desmotivadas para uma suposta epidemia devida ao vírus corona".
De forma coerente, Agamben expressou uma forte crítica à vacinação em massa, questionando a alegada incoerência de um Estado que impõe a vacina, mas ao mesmo tempo não assume a responsabilidade pelas suas consequências: “Vocês sabem que o Governo, com um decreto-lei específico, o número 44 de 2021 denominado ‘Escudo Penal’ agora convertido em lei, eximiu-se de qualquer responsabilidade pelos danos causados pela vacina”. E cita o art. 3 do decreto.
À primeira vista, a objeção é muito convincente. Só que se baseia em uma leitura completamente falsa do texto legislativo. Porque o art. 3º do Decreto-Lei 44, a que se refere Agamben, não diz respeito ao Estado, mas sim à responsabilidade penal do médico ou do profissional de saúde que administra a vacina.
E, em qualquer caso, o texto explicita expressamente que isso só é verdade em precisas condições: “Exclui-se a punibilidade quando o uso da vacina obedece às indicações contidas na disposição de autorização da liberação para a comercialização, emitida pelas autoridades competentes e às circulares do Ministério da Saúde com relação às atividades de vacinação”.
O que o Estado, nesse texto, não assume (ou, antes, exclui para médicos e profissionais da saúde), não é a responsabilidade pela aplicação da vacina, mas sim aquela que derivaria de seu uso incorreto. Se, por outro lado, a vacina, ainda que administrada da forma prevista, causar danos, na Itália já existe uma lei, a n.210 de 1992, que prevê um “ressarcimento” pelo dano causado por uma vacina obrigatória (porque danos podem ocasionalmente derivar de qualquer vacina!).
Até o momento, as vacinas contra o Covid-19 não são obrigatórias, mas pela sentença do Tribunal Constitucional 118/2020 - e pela subsequente sentença no. 7354 de 2 de dezembro de 2020 do Supremo Tribunal de Cassação – o eventual ressarcimento ainda poderia ser reconhecido, mesmo para aquelas vacinas "fortemente recomendadas".
Definitivamente mais circunscrita - e mais correta - é a objeção de outro conhecido pensador, Massimo Cacciari, que nunca negou a existência da pandemia e nem mesmo a utilidade das vacinas, mas apenas seu caráter obrigatório. “Essa história de que a vacina serve para todos e em qualquer situação não é científica: é claro que cada medicamento é mais adequado para uma pessoa e não para outra. Para alguns, é até de altíssimo risco”.
Daí também a denúncia de uma opinião oficial que efetivamente sufoca as vozes dissidentes. “Sei muito bem que a vacina é necessária, mas também sei que todas as dúvidas levantadas por alguns cientistas são silenciadas. Ponto".
Aquilo sobre que Agamben e Cacciari concordam, porém, são as críticas ao passaporte verde e seu "uso político". Juntos, assinaram uma carta na qual denunciam o perigo de que a introdução obrigatória do passaporte verde dê origem a "discriminação contra uma categoria de pessoas, que se tornam automaticamente cidadãos de segunda classe", criando uma situação que é típica dos regimes totalitários. "Um fato gravíssimo, cujas consequências podem ser dramáticas para a vida democrática".
Sobre as afirmações de Mons. Viganò e Agamben, partilhadas por muitos nas redes sociais, e por alguns até no Parlamento (estou me referindo ao Exmo. Cunial, ex-5Estrelas), é difícil conciliá-las com os fatos que estão à nossa frente.
Para demonstrar sua total falta de fundamento, basta acessar as notícias cruas desses dois anos, que falam (dados atualizados até 10 de novembro de 2021) de 758.000 mortes devido ao Covid nos EUA, 610.000 no Brasil, 462.000 na Índia, 290.000 no México, 245.000 na Rússia, 143.000 na Indonésia, 142.000 no Reino Unido, 132.000 na Itália, 119,00 na França, 127.000 na Colômbia, 116.000 na Argentina, 97.000 na Alemanha, 87.000 na Espanha. Sem falar de muitos outros países em todos os continentes, onde o número de mortes é menor, mas certamente não insignificante.
E não se trata de um drama que já ficou para trás: para citar apenas um exemplo, atualmente a Rússia registra um recorde de casos: quase 41.000 infecções e 1.237 mortes somente no dia 10 de novembro. Justificando o grito de alarme da vice-primeira-ministra Tatiana Golikova que informou que mais de 80% das 301.500 vagas hospitalares, destinadas aos pacientes de Covid-19, estão ocupadas.
Uma gripe semelhante à sazonal? Quem conhece pessoas que tiveram Covid sabe muito bem as sequelas pesadas que a doença comporta, muitas vezes até para os recuperados, a ponto de justificar a expressão "long-Covid".
Os "negacionistas" dizem que os números da mortalidade do Covid estão inflados, porque na verdade incluem vítimas de outras patologias. Mas deveriam explicar o aumento da mortalidade que coincidiu com a pandemia em comparação com a média de mortes nos cinco anos anteriores. Sem dizer que, em quase todos os países, esse "excesso de mortalidade" na realidade supera aquele das vítimas oficiais do Covid: na Itália, segundo a análise do Economist é de 150 mil vítimas contra os cerca de 130 mil atribuídos ao Coronavirus.
Quanto às acusações sobre a política seguida pelos dois governos que se sucederam na Itália na luta contra a pandemia, destacam que a Itália é o único país onde são estritamente obrigatórios tanto o passaporte verde quanto as medidas de prevenção sanitária, como máscaras e distanciamentos. E é verdade. Mas é tão certo de que esse seja um motivo para críticas e não uma escolha que está se revelando vencedora?
Já poderiam ser uma indicação as palavras do conhecido virologista Anthony Fauci, assessor médico da Casa Branca de dois presidentes de tendências políticas opostas, que expressou seu total apreço pela gestão da pandemia pelo nosso país: "A Itália", Fauci disse “foi um dos países mais severamente atingidos pelo Covid-19 e aprendemos muito com o vosso país. Vocês estão na vanguarda e nas vacinas estão à frente dos EUA”.
Mas mesmo entre aqueles que não querem dar crédito a Fauci, entre os críticos incondicionais, deveria gerar algumas dúvidas o fato de que a Itália - no início o país da Europa e do planeta (depois da China) muito mais afetado pela pandemia - no decorrer desses 20 meses tenha perdido esse triste primado e agora se coloque entre o décimo quinto e o vigésimo lugar no mundo.
E que sempre existe uma relação entre a baixa taxa de vacinação e/ou a ausência de medidas de prevenção (é o caso do Reino Unido, que já vacinou grande parte de sua população, mas onde não há restrições aos comportamentos sociais) e a disseminação do vírus, com seus efeitos letais.
Confirmação semelhante vem da relação com a situação italiana antes das vacinas e aquela atual. Uma tabela publicada há dois dias pelo Corriere explica a situação atual: em 5 de novembro de 2020, foram 34.505 novos casos, na mesma data deste ano foram 6.764. E a diferença é ainda maior se considerarmos as internações (23.256 na época e 3.124 em 5 de novembro de 2021), as terapias intensivas (2.391 há um ano contra 395 de 5 de novembro) e os óbitos por Covid (445 de 5 de novembro de 2020 contra 51 de 5 de novembro de 2021).
É claro que também adoeceram pessoas que tomaram as duas doses da vacina. Mas a doença geralmente ataca de forma menos grave e causa um número enormemente menor de vítimas. Enquanto é significativo que as maiores porcentagens de hospitalizados em condições graves não tenham sido vacinados (às vezes ferrenhos no-vax).
Se essa é a situação, a referência às alegadas violações da liberdade perde muito de seu significado. Numa situação de emergência é claro que existem restrições, mas não indiscriminadas e descontroladas.
Ter comparado as medidas introduzidas pelo passaporte verde aos campos de concentração foi uma infâmia, que acertadamente suscitou os protestos indignados da comunidade judaica. É o nosso Parlamento, eleito pelo povo, que no pleno cumprimento da Constituição - como confirma o aval incondicional do Presidente da República - exige de todos sacrifícios no interesse de todos.
Talvez de vez em quando até mesmo os filósofos deveriam se esforçar para ver melhor a realidade.
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Covid: os protestos dos filósofos e a lição dos fatos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU