03 Agosto 2021
Agamben não deveria se limitar a denunciar com alerta o óbvio, isto é, que, com o green pass [passaporte vacinal], alguns poderão fazer algumas coisas e outros não, mas deveria discutir a justificativa sobre a qual eventualmente se fundamentam tais limitações: se é apropriada, razoável, coerente, proporcional, extensiva a todos os interesses e os bens a serem protegidos, e assim por diante.
A opinião é do filósofo italiano Massimo Adinolfi, professor da Universidade de Nápoles Federico II. O artigo foi publicado por Huffington Post, 01-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O convite de Agamben para que sejam seriamente examinados os argumentos sobre o green pass e a vacina deve ser aceito. Então, deixemos de lado as indignações e as execrações, e também os sorrisinhos das servas educadas e graciosas que, desde os tempos de Tales que caiu no poço, acompanham filósofos e sábios (a anedota é contada por Platão no “Teeteto”: o preconceito contra as mulheres, do qual certamente me desculpo, deve ser imputado a ele). Em vez disso, esforcemo-nos com paciência. E, inevitavelmente, com uma certa extensão (da qual também me desculpo).
1. Na sua última intervenção no jornal La Stampa [disponível em italiano aqui], Agamben faz questão de esclarecer que o problema, para ele, “não é a vacina, assim como nas intervenções anteriores em questão não era a pandemia, mas sim o uso político que é feito dela”. Mas, há apenas dois dias, no espaço que ele mantém no site da editora Quodlibet, ele observava, alarmado, que para, as indústrias farmacêuticas, “não é possível prever os efeitos das vacinas em longo prazo”.
É difícil assumir esse destaque como uma crítica apenas ao uso político da vacina. O que se critica são os procedimentos seguidos e a “experimentação em massa sem precedentes” que, para Agamben, teria ocorrido e estaria ocorrendo, tendo como alvo, por assim dizer, toda a humanidade.
Essa é uma afirmação de tamanha gravidade que talvez mereceria um debate mais pontual sobre os protocolos seguidos: sobre as amostras, os tempos, das modalidades. Em todo o caso, o que Agamben diz no La Stampa não corresponde à verdade: os temores manifestados nas suas intervenções (eu poderia citar outros, começando por aquele assinado junto com Cacciari) também dizem respeito à vacina, aos métodos seguidos para autorizar o seu uso, à experimentação que, segundo ele, continua incansavelmente sobre toda a população mundial. Como se nada autorizasse hoje as autoridades sanitárias a considerar como segura a administração vacinal, como se esta não fosse segura – segura, entenda-se, segundo os padrões científicos comumente adotados, padrões que Agamben nunca discute, ou seja, sobre os quais ele não levanta nenhuma crítica específica.
2. O mesmo deve ser dito sobre a pandemia: não é verdade que Agamben, como hoje se sustenta, levantou dúvidas e alertas apenas sobre o uso político da pandemia e não também sobre a própria pandemia. Ou seja, sobre a sua efetividade, sobre o seu alcance, sobre as suas consequências.
No artigo significativamente intitulado “A invenção de uma epidemia” (que remonta a 26 de fevereiro de 2020 [disponível em italiano aqui]), Agamben começava falando sobre “medidas de emergência frenéticas, irracionais e totalmente desmotivadas para uma suposta epidemia que se deve ao vírus corona”. No dia 26 de fevereiro, portanto, a epidemia era para ele apenas “suposta”, e o alarme, absolutamente injustificado. O uso político consistia justamente em se ter inventado uma pandemia, com o único propósito – que ele parece dar a entender – de impor o estado de exceção.
Naquela data, de fato, o governo [italiano] já havia declarado o estado de emergência por causa do risco sanitário, mas Agamben evidentemente considerava totalmente instrumental a declaração do governo e desproporcionais as medidas adotadas.
Era cedo demais para se ver com clareza, poderá se dizer: mas então por que escrever a esse respeito, se ainda era cedo demais, falando hiperbolicamente de invenção? De todos os modos, no dia 11 de março de 2020, quando dezenas de províncias italianas já estavam postas em quarentena, as aulas presenciais estavam suspensas e algumas atividades estavam limitadas em todo o território nacional, Agamben escrevia um novo artigo, “Contágio”, no qual denunciava a “chamada epidemia” e o pânico que, “com todos os meios”, os poderes públicos tentavam, na opinião dele, espalhar. Os governos espalhavam o pânico: era essa, em suma, a tese na época, formulada apenas uma semana antes que uma lúgubre coluna de veículos militares atravessasse Bérgamo.
Ainda em abril, Agamben se perguntava, reiteradamente, se o número das mortes justificava as medidas restritivas: fazendo de conta, ele tentava defender que, afinal, não havia todas essas mortes. Resumindo: em tudo o que ele escreveu a esse respeito, Agamben sempre se referiu ao uso político da pandemia como uma mentira sobre a extensão da “suposta” ou “chamada” epidemia.
O governo do medo – Agamben chega a escrever: “terror sanitário” – não é apenas a instrumentalização do medo: é, segundo o filósofo, a pura invenção de um medo injustificado. Que, afinal de contas, não teria razão de ser.
Essa é a tese que Agamben defendeu e que hoje deveria defender, sem se refugiar, diante do clamor despertado, na distinção mais prudente entre pandemia e uso político da pandemia.
3. Mas agora existe o green pass, e Agamben vê duas coisas nele: em primeiro lugar, um motivo de discriminação entre cidadãos de primeira categoria (com o green pass) e os cidadãos de segunda categoria (sem o green pass); em segundo lugar, um instrumento de controle capilar, invasivo, ilimitado das nossas vidas.
Deixemos de lado a pertinência das analogias jurídicas adotadas por Agamben (sobre totalitarismos e afins). Para quem conhece o seu pensamento, é evidente que ele recorre a elas em coerência com a hipótese de uma substancial continuidade entre regimes políticos autoritários e regimes políticos democráticos. Com efeito, em nenhum texto de Agamben se dá valor não à liberdade reconquistada já desde o fim do nazifascismo, mas à sua organização e articulação institucional na forma da democracia liberal.
Simplesmente não é esse o ponto, não é aí que são feitas as experiências políticas decisivas, não é essa liberdade que interessa ao filósofo. Não surpreende, portanto, que certas práticas passem para ele, de um regime a outro, do fascismo à democracia, sem qualquer mudança de sentido, condições, contexto político e normativo.
Porém, deixemos a Agamben as suas convicções de tom anárquico sobre a política e o Estado, e limitemo-nos às observações que dizem respeito à introdução do green pass. Acima de tudo, a discriminação. Para Agamben, não interessa por quais motivos o green pass é introduzido (embora seja evidente que ele suspeita que sejam motivos fortemente exagerados): a única coisa que importa para ele é a introdução de uma distinção entre categorias de cidadãos.
Em vez disso, como ocorre com qualquer norma que introduza limites, vínculos, proibições, a justificativa sobre a qual ela se baseia é essencial para avaliar a sua constitucionalidade – isto é, a compatibilidade com a trama de direitos e liberdades que a Constituição protege. Agamben não deveria se limitar a denunciar com alerta o óbvio, isto é, que, com o green pass, alguns poderão fazer algumas coisas e outros não, mas deveria discutir a justificativa sobre a qual eventualmente se fundamentam tais limitações: se é apropriada, razoável, coerente, proporcional, extensiva a todos os interesses e os bens a serem protegidos, e assim por diante.
Infelizmente, não existe nada desse tipo no seu texto. Eu gostaria, portanto, de chegar a dizer que a cultura jurídica de Agamben, por mais ampla, profunda e bem nutrida que seja, não é, no entanto, uma cultura democrático-constitucional, isto é, que assume (ou discute e critica) os critérios de avaliação sobre os quais se apoiam as verificações de constitucionalidade e, portanto, a qualidade democrática das disposições em exame.
4. Quanto à questão do controle, aqui, francamente, o argumento de Agamben é bastante surpreendente. Não porque não seja verdade que certos dispositivos permitem saber muito sobre as nossas vidas, mas porque, de novo, aquilo que realmente importa são as modalidades com as quais eles são postos em exercício.
Os smartphones estão nos nossos bolsos há um bom tempo. Existem em circulação muito mais cartões, muito mais chips, muito mais aplicativos, muito mais trojans, muito mais cookies do que o filósofo suspeita. É uma variante do shakespeariano “há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”, e o filósofo, como Horácio, não nos causa uma boa impressão.
A menos que queiramos renunciar a tudo isso, para voltar a um mundo que não existe mais, o que precisamos não é um genérico e sempre igual alerta sobre os riscos da sociedade do controle (que já data de algumas décadas), mas sim uma legislação à altura do problema.
Agamben lembra a sua firme contrariedade, no passado, à introdução de uma carteira de identidade eletrônica, contendo os dados biológicos e quaisquer outras possíveis informações sobre a conta do proprietário. Com a mesma preocupação – eu também me permito uma analogia – poderíamos nos opor também à adoção da carteira de identidade tradicional, ainda mais que ela foi introduzida na Itália em 1931, em plena era fascista, por razões de segurança pública (ou seja, para fins de controle: identificar é controlar).
A analogia deveria evidenciar o ponto, que não diz respeito à temível possibilidade de nos identificarmos por meio da carteira, mas ao conjunto das normas e das instituições que protegem os dados pessoais e tornam o seu uso acessível ou inacessível. O alerta sumário é de pouca utilidade, caso contrário, até o cartão-fidelidade do supermercado deveria nos lançar na mais profunda angústia.
Se nos fizermos as perguntas sobre as quais o filósofo, eufemisticamente falando, sobrevoa – a pandemia existe ou não? As ondas existem ou não? O alerta sanitário se justifica ou não? A vacina funciona ou não? As normas de proteção dos direitos fundamentais existem ou não, e são ou não acionáveis por parte dos indivíduos? – reduziremos, creio eu, na medida que convém à situação histórica, o peso de questões que, por sua vez, no texto de Agamben, têm um aspecto epocal.
Ora, longe de mim a ideia de que não faz sentido se interrogar sobre os sistemas máximos (goste-se ou não, a filosofia é os sistemas máximos), mas, ao se fazer isso, seria melhor manter sob controle as hipérboles e evitar vendê-las como uma descrição de fenômenos empíricos correntes.
Agamben, por exemplo, defende que as tradicionais justificativas políticas, ideológicas, religiosas da existência desapareceram, e agora “os homens se encontram talvez pela primeira vez diante da sua pura sobrevivência biológica”. Por isso, acrescenta ele, em vez de “assumir o simples e amável fato de viver uns ao lado dos outros” (como se o vírus não ameaçasse justamente esse simples fato amável, observo eu en passant) eles sentiram a necessidade de “instaurar um implacável terror sanitário”.
Aqui, eu diria aqui que não basta um “talvez” para corrigir o exagero. A frase é de fato exagerada nada menos do que três vezes: uma primeira vez porque não é um fato inédito a queda de mitos, religiões, crenças políticas etc. Isso se chama-se niilismo, e os filósofos – como Agamben sabe muito bem – já discutem sobre isso há um bom tempo. Uma segunda vez, porque não é absolutamente verdade que a queda de mitos, religiões e crenças políticas coloca o homem diante da sua pura sobrevivência biológica (não é esta a minha vida, nem aquela dos meus concidadãos). Uma terceira vez, enfim, porque não é terror aquilo que se sente a necessidade de instaurar com o green pass e as outras normas e disposições de lei.
Mas se vê muito bem o mecanismo que está em ação em Agamben: não há nenhuma ameaça séria à saúde pública, podemos tranquilamente viver em paz uns ao lado dos outros; portanto, os medos são instilados instrumentalmente para fins políticos (no entanto, não fica totalmente claro por parte de quem e por quê).
Pois bem, é necessário que se reconheça, na vida que nos é subtraída pelo terror sanitário, a vida paradisíaca da qual o poder – como outrora o Deus da Bíblia – nos exclui, para entender dentro de qual paradigma teológico Giorgio Agamben pensa. Portanto, se colocarmos entre parênteses o general Figliuolo [comissário especial para a vacinação contra a Covid-19 na Itália] – a sua simpática semelhança com Louis De Funès e as suas rígidas insígnias – e, em vez disso, olharmos para o grandioso afresco do filósofo, bem: é preciso reconhecer que ele tem uma indubitável e grandiosa beleza.
Beleza à parte, porém, vacinar-se continua sendo muito essencial. E, certamente, prestar atenção às normas que disciplinam o green pass, mas nos servindo delas. Para abrir os espaços o máximo possível e, assim, ter menos medo, e certamente não para fechá-los e ter cada vez mais medo.
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Vacinas e passaporte vacinal: a mistificação constante de Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU