03 Agosto 2021
"Uma esquerda cultural, que existe e deve existir, está agora olhando a vacina para os outros, para aqueles que não têm proteção. Promove uma democracia inclusiva onde o gren pass seja extensível. Por exemplo, para quem vem de fora e não teve acesso a este direito de imunização. Vacina para os migrantes, para os pobres, para os que moram nas periferias planetárias. É a perspectiva oposta àquela do ego soberano e rebelde, ressentido e retraído sobre si mesmo. Isso não significa que não tenhamos que ser vigilantes e, aliás, zelar pela democracia, que corre o risco de ser suspensa, ou melhor, esvaziada.Mas não faz muito sentido ver o estado de exceção em todo lugar, mesmo no green pass", escreve a filósofa italiana Donatella Di Cesare, professora de Filosofia Teórica na Universidade “La Sapienza”, de Roma, em artigo publicado por L'Espresso, 01-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sabemos agora que a pandemia não é um evento que está por acabar, um episódio que vai terminar logo. Pelo contrário, a pandemia, que agora está inscrita na história mais do que nas notícias, abriu uma nova época que para todos nós é uma terra incógnita. É difícil prever quais serão as repercussões para a existência de cada um e os efeitos na esfera política. É por isso que cada decisão é árdua, cada escolha enormemente complexa. São demasiados os elementos de novidade. Não é por acaso que estamos aqui há meses discutindo animadamente questões mais ou menos específicas, mais ou menos inéditas.
Isso deveria levar à cautela. Declarações peremptórios, juízos absolutos, comparações precipitadas não ajudam a reflexão e acabam por desviar o debate. O caso mais marcante é o confronto proposto por Giorgio Agamben entre o green pass e a estrela amarela virtual. As diferenças são abissais. Como Hannah Arendt nos ensinou, os judeus que usavam a estrela amarela eram simples e irremediavelmente discriminados por seu "ser". Mesmo os convertidos acabaram nos campos de concentração e nas câmaras de gás. O no vax atual escolhe por não tomar a vacina, possibilidade que lhe é oferecida. Por convicção, por medo ou por outros motivos, não disponibiliza seu corpo àquela pequena alteração provocada pela vacina, a que nós todos estamos, não sem problemas, nos submetendo para combater o coronavírus, esse gênio maligno da alteridade. Onde estaria a discriminação? De que modo se produziriam cidadãos de segunda classe? O espaço público é atravessado hoje por graves discriminações; são muitas e muitos os que, condenados a não ter voz, a ficar à margem, são condenados à invisibilidade. Para estes últimos, sem proteção, expostos a tudo, sem vacinas, deveria se voltar a nossa atenção. Não para aqueles que se autoexcluem do espaço público respondendo com um "não" violento àquele chamado à responsabilidade que é o green pass.
Por sua vez, Massimo Cacciari compartilhou e subscreveu a mensagem de Agamben em um post conjunto em que, entre outras coisas, é ventilado o risco de a vacina se tornar um "símbolo político-religioso". Só que é assim mesmo considerado por quem o rejeita, por aquela nova direita soberanista e conspiratória que agita as ruas. São os paladinos do corpo místico da nação, a ser defendido contra os estranhos, os cultores do mito da identidade, a ser preservado contra aqueles que vêm de fora. São principalmente aqueles no poder que acreditam ver conspirações dos outros, das forças ocultas, dos poderes fortes, de Soros e das ONGs, das finanças judaicas e dos imigracionistas. Não é por acaso que aquele confronto entre estrela amarela e green pass foi tão apreciada à direita e, portanto, também foi relançado com tons violentos.
Nunca antes as palavras têm peso. Estamos cientes do perigo de que os cidadãos se transformem em pacientes, de que a fronteira entre direito e sanidade se torne fluida. Mas é completamente diferente falar de regime despótico ou mesmo de ditadura sanitária. Esses termos, gritados nas ruas e cadenciados nos slogans, acabam soando um tanto grotescos e triviais. A tarefa dos filósofos, escritores, intelectuais hoje seria de chamar à complexidade, promovendo um debate aberto sobre as grandes questões que envolvem a todos cotidianamente, da liberdade à responsabilidade e aos direitos, evitando alarmes vazios e confusões ruinosas. É indispensável uma comunidade interpretativa que, ao hospedar os conflitos, evite fraturas como aquela que se criou entre antivacinas e céticos. A ciência pode e deve ser criticada. Mas as duas derivas opostos são deletérias: aquela do conspiratório crédulo que vê em toda parte o plano da Big pharma, e aquela do cientista pedante e arrogante, convicto de que tem a verdade absoluta em seu bolso.
Uma esquerda cultural, que existe e deve existir, está agora olhando a vacina para os outros, para aqueles que não têm proteção. Promove uma democracia inclusiva onde o gren pass seja extensível.
Por exemplo, para quem vem de fora e não teve acesso a este direito de imunização. Vacina para os migrantes, para os pobres, para os que moram nas periferias planetárias. É a perspectiva oposta àquela do ego soberano e rebelde, ressentido e retraído sobre si mesmo. Isso não significa que não tenhamos que ser vigilantes e, aliás, zelar pela democracia, que corre o risco de ser suspensa, ou melhor, esvaziada.
Mas não faz muito sentido ver o estado de exceção em todo lugar, mesmo no green pass.
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Caros Agamben e Cacciari, pensemos em quem não está protegido. Artigo de Donatella Di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU