“Uma determinação e uma energia humana sem precedentes são necessárias para nos libertar da escravidão a uma vida de desperdício. Dedicando o poder da nossa fé e a engenhosidade das nossas mentes à contemplação de soluções, podemos escapar dessa servidão. Assim como podemos nos curar em comunidade, também podemos corrigir em comunidade os caminhos errados, aceitando o objetivo da proteção da dignidade e dos direitos humanos de todas as pessoas.”
Publicamos aqui a carta aberta do Patriarca Ecumênico Bartolomeu, enviada à COP-26, sobre o tema “ascese, justiça e energia”. A carta foi publicada em Il Sismografo, 13-09-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
Vossas Eminências,
Vossas Excelências,
Ilustres participantes,
Senhoras e Senhores,
Temos a honra de estar com vocês e de participar do Fórum Inter-Religioso do G20 para exortar os membros do G20 a intensificarem e a responderem efetivamente aos mais urgentes desafios do nosso tempo. Agradecemos aos organizadores pelo seu amável convite para falarmos neste Fórum aqui hoje.
Estamos a um minuto da meia-noite para a humanidade avançar rumo a um futuro sustentável e resiliente que promete curar as pessoas e o nosso planeta. Para isso, precisamos aumentar a abundância das nossas melhores ideias e, pela fé, ter sucesso na corrida decisiva para a neutralidade de carbono global (“net zero”) e para uma cultura da solidariedade.
Todos temos a capacidade de deter o aumento global da temperatura abaixo de 1,5ºC até a metade deste século? Seremos todos capazes de mitigar os riscos das mudanças climáticas? Seremos todos capazes de preservar a riqueza da natureza que alimenta as gerações atuais e futuras? Seremos todos capazes de evitar a extinção em curso de espécies e diminuir a perda da preciosa biodiversidade? Seremos todos capazes de parar a violência entre nós e contra a criação de Deus? Teremos sucesso em acabar com as guerras e eliminar a injustiça social e a marginalização dos nossos semelhantes?
As respostas a essas perguntas são multifacetadas.
Estamos reunidos aqui hoje, em comunidade, para permanecermos firmemente unidos na fé de que somos capazes de ter sucesso nessa tarefa global essencial. Se aplicarmos a moderação piedosa e utilizarmos o respeito e a humildade como guias espirituais para uma produção e um consumo responsáveis e sustentáveis, teremos sucesso. Somente mediante tal autocontenção, simplicidade e μετάνοια [metanoia], que em grego significa literalmente uma mudança de mente, não apenas internamente, dentro de nós mesmos, mas também na práxis e na aplicação concretas, na forma de uma ascese moderna, ἄσκησις, isto é, prática, o ato de exercitar, podemos esperar curar a nós mesmos e ao nosso mundo.
A emergência climática, com todas as suas perturbações em nossas vidas e meios de subsistência neste belo mas danificado planeta, é causada pelo aumento conspícuo do consumo em várias partes do mundo. Devemos libertar os nossos estilos de vida das tentações e do esquecimento mortal das condições para vivermos juntos de modo justo e bom, na solidariedade e na harmonia dadas por Deus. Praticar a abnegação para com os outros e cuidar do bem-estar da comunidade restaura a paz de espírito e de alma.
Esse é o modo de curar as nossas sociedades. Esse é o modo de curar este lindo planeta que é criação de Deus a nós confiada para uma fiel preservação. Quando Deus criou o homem e a mulher, ele os honrou como administradores prudentes do nosso ambiente natural. Uma responsabilidade tão importante, de cuidar da criação terrena de Deus, exige que cada ação individual e coletiva seja profundamente contemplada e considerada.
Uma parte importante dessa jornada já está em andamento. Ela se assenta na direção do compromisso com a recuperação verde e a dupla transformação verde e digital. Tudo começou na COP-21 em 2015, quando prevaleceu a prudência. Lá assumimos a obrigação de trabalhar juntos para limitar o aquecimento global a 2ºC e a mantê-lo o mais próximo possível de 1,5ºC, conforme prometido no Acordo de Paris no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC).
Esperançosamente, a próxima COP-26 em Glasgow, liderada pela parceria-presidência do Reino Unido/Itália com a presença de todos os Estados participantes, resultará em Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) e planos de adaptação climática e energética que podem mover o ambiente global ao nível necessário para que o mundo alcance a neutralidade de carbono. Em menos de 30 anos, é possível alcançar a regeneração do nosso planeta. Imaginem vivermos livres dos combustíveis fósseis. Imaginem um mundo em que cuidamos uns dos outros. Se realizada, a obtenção de justiça intra e intergeracional e a eliminação da pobreza abominável se tornam possibilidades.
Devemos nos dar conta disso hoje porque, paradoxalmente, a pandemia da Covid-19 nos deixa com uma oportunidade histórica de “reconstruir melhor”. Como afirmamos há poucos dias na nossa Mensagem Encíclica por ocasião do início do novo ano eclesiástico da Igreja Ortodoxa Oriental, no dia 1º de setembro, que também é dedicado à oração pela proteção do ambiente, “nós rezamos pela rápida superação das consequências da crise sanitária em curso e pela iluminação do alto dos governos de todo o mundo, para que não voltem ou persistam no economismo, àqueles princípios de organização da vida econômica, da produção e do consumo, da exploração exaustiva dos recursos naturais, princípios que prevaleciam antes da pandemia. Além disso, é nosso desejo genuíno que a disseminação de opiniões pseudocientíficas sobre os supostos perigos das vacinas contra a Covid-19, a calúnia dirigida contra especialistas da área médica e a degradação infundada da gravidade da doença sejam encerradas. Infelizmente, opiniões semelhantes também são propagadas em relação às mudanças climáticas, suas causas e seus efeitos desastrosos. A realidade é totalmente diferente e deve ser enfrentada com responsabilidade, colaboração, ações conjuntas e visão comum”.
Para aproveitar este momento e agir de modo real, devemos nos conscientizar da gravidade do problema: a produção e o consumo insustentáveis prejudicam o planeta e todas as espécies vivas. Até hoje, a nossa geração não contemplou suficientemente as consequências dos seus impulsos eudemonísticos de experimentar as sensações do progresso e os prazeres da vida para alguns e não para todos. Como consequência, o fardo mais pesado foi colocado sobre as vidas e os meios de subsistência das pessoas que estão na linha de frente das mudanças climáticas, que não apenas são cada vez mais forçadas a abandonarem suas casas, mas também, especialmente as mulheres e as crianças, se tornam os principais alvos e vítimas do tráfico e da exploração humanos.
Os enormes sofrimentos dos refugiados do clima para salvarem a si mesmos e a sua prole dos perigos das mudanças climáticas devem ser enfrentados imediatamente. Como diz nosso Senhor Jesus Cristo no Santo Evangelho de São Mateus: “Na verdade vos digo: toda vez que fizestes isso a um desses mais pequenos dentre meus irmãos foi a mim que o fizestes” (Mateus 25,40). As vítimas deslocadas da emergência climática suportam essas tribulações sozinhas e injustamente.
Inundação em Altenahr Altenburg, na Alemanha. | Foto: Martin Seifert / Wikimedia Commons
No entanto, nos últimos meses, muitas nações experimentaram, pela primeira vez, os efeitos devastadores da degradação do clima. Inundações na França, Bélgica, Alemanha e Luxemburgo; incêndio de florestas na Grécia, Turquia, Sérvia, Austrália e Califórnia; tempestades desastrosas e secas prolongadas em toda a África – cada uma delas são resultados inegáveis dos danos que infligimos à nossa terra. Esses eventos climáticos extremos são o nosso destino previsível, se insistirmos na nossa inimizade para com o ambiente natural.
Nesse sentido, é fundamental que a COP-26, que ocorre de 31 de outubro a 12 de novembro em Glasgow, nos una e nos vincule em nossa dedicação para curar o clima e proteger o nosso planeta. O sucesso nessa questão requer que libertemos o futuro da escravidão do desperdício e dos hábitos infelizes que matam os próprios pré-requisitos para uma vida boa para todos nós na terra.
Em cada Liturgia Ortodoxa, rezamos incessantemente: “Por um clima favorável, por uma abundância dos frutos da terra e por tempos de paz”. Cada vez que rezamos, lembramo-nos do que precisa ser feito. Ansiamos pelo momento em que os governos globalmente moldarão políticas e criarão planos para salvaguardar as vidas das pessoas e das comunidades ameaçadas e afetadas pelas consequências da grande crise ecológica. Novas políticas devem se aventurar para além do usual, produzindo apenas aquilo que é necessário de modo sustentável e sem desperdício.
Na tradição cristã ortodoxa, os monásticos modelaram uma vida sustentável por gerações. Agora, temos a oportunidade de seguir o exemplo deles para vivermos com dignidade e alegria por uma causa comum recém-descoberta. Não é por acaso que um livro recentemente publicado, intitulado “The Monk who became CEO – 1000 Years Athonian Management” [O monge que se tornou CEO – 1.000 anos de gestão athoniana] (Tessalônica, 2017), se tornou um best-seller, por “revelar” o segredo do sucesso da gestão ascética implementada pela comunidade monástica do Monte Athos e o modo como ela pode apresentar um protótipo para uma nova estratégia e orientação de valores diferenciada na filosofia de uma empresa moderna.
Nesse espírito de ascese moderna, urgimos que as principais economias do mundo liderem todas essas transições para uma economia verde. A economia verde se refere ao bem-estar resultante da produção sem desperdício e do consumo responsável. O verde é a cor que simboliza a vida que Deus deu a todos. Assim, as tecnologias inovadoras para transformações verdes podem e devem ser tecnologias para a vida.
Essas tecnologias devem impulsionar a cura do nosso planeta. Ao melhorar a eliminação de resíduos, a despoluição da água, do ar e do solo, e alimentar as nossas florestas e oceanos, estamos dando uma grande guinada rumo a uma economia ecológica para a bem contemplada prosperidade comunitária e global de todos.
Por meio das nossas contemplações, podemos ver um mundo em que carvão, petróleo e gás são deixados no seio do nosso planeta, enquanto alimentamos a nossa mobilidade, a produção de eletricidade, aquecimento, refrigeração, construção e todas as nossas atividades com energias verdes e limpas. Tais contemplações não são meros sonhos diurnos. Já existem soluções tecnológicas bem elaboradas para o urgente problema da energia. Elas precisam ser apoiadas não apenas por governos, empresas e investimentos pioneiros, mas também devem ser empoderadas por todos os envolvidos no movimento de desinvestimento em combustíveis fósseis e nos modos de produção e consumo que destroem o nosso futuro. Devemos compartilhar agora essas novas tecnologias com justiça e igualdade em todo o mundo e investir nelas do Sul ao Norte, a fim de sermos cidadãos globais responsáveis.
Para fomentar os talentos humanos, cultivar a fé na inventividade e encorajar o engajamento vigoroso, é vital promover uma educação de qualidade para todos, homens e mulheres, sem discriminação. Ao longo de toda a nossa vida, devemos aprender de novo e adquirir as habilidades necessárias para realizar todas as agendas transformacionais, da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável até a Agenda da ONU para a Humanidade. A educação para essas novas realidades é essencial para o sonho e a realidade de transformar o nosso mundo em um mundo de bem-estar, sustentabilidade, resiliência, responsabilidade e justiça para todos.
Precisamos assegurar que as brechas intergeracionais não se ampliem, e que as transformações verde e digital não deixem ninguém para trás. Os nossos jovens tomaram as ruas, as praças públicas e todos os cantos da terra para iniciar uma ação coletiva visando aos mais altos alvos de neutralidade climática. Ligados e conectados em rede pela inspiração que nos foi transmitida pelos nossos jovens engajados, somos obrigados a fomentar essa demanda dos jovens e das jovens para alcançar a neutralidade de carbono global.
Jovens pelo Clima, durante a Greve Global pelo Clima em São Paulo, Brasil – 2019 (Foto: Barbara Veiga | Greenpeace)
Nossa fé e engenhosidade, nossa dedicação e inventividade comuns devem ser trazidas à tona para que todos nós possamos alcançar em comunidade esses objetivos elevados. Precisamos nos unir aos esforços dos jovens para acelerar o nosso progresso ao longo de caminhos transformacionais com o pleno envolvimento de todos aqueles que ficaram para trás. Urgimos que as nações do G20, primeiro, reconheçam e, depois, busquem as demandas dos nossos jovens e das nossas jovens por um futuro sustentável e resiliente.
Assim, devemos abrir nossos corações e mentes às ambições expressadas pelas gerações mais jovens. Elas estão dirigindo os esforços atuais pela rápida realização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para reverter as mudanças climáticas prejudiciais e melhorar as condições gerais de vida. A nossa geração mais jovem, a maior de todos os tempos na história da humanidade, certamente fará valiosas recomendações na Cúpula da Juventude para o Clima, que será realizada de 28 a 30 de setembro em Milão. Com veracidade e sinceridade, rogamos que os ministros de Milão, na reunião preparatória para a COP-26, adotem as visões e as propostas dos jovens como enviados do futuro.
Senhoras e senhores, uma determinação e uma energia humana sem precedentes são necessárias para nos libertar da escravidão a uma vida de desperdício. Dedicando o poder da nossa fé e a engenhosidade das nossas mentes à contemplação de soluções, podemos escapar dessa servidão. Assim como podemos nos curar em comunidade, também podemos corrigir em comunidade os caminhos errados, aceitando o objetivo da proteção da dignidade e dos direitos humanos de todas as pessoas.
Portanto, urgimos que os líderes das maiores economias do mundo sejam os primeiros a trabalhar juntos e coordenar suas ações em prol de um ambiente sustentável e do esforço comum para a cura global do clima e para a fundação de uma sociedade global justa.
Aqui e agora, ações individuais e comunitárias, passos corajosos e sábios dados por mulheres e homens, por jovens e idosos, nos empoderarão a tomar decisões comuns significativas. Inspiramo-nos em uma visão de um mundo unido em bem-estar, sustentabilidade, resiliência, responsabilidade, justiça e paz para todos.
Na verdade, nossos compromissos compartilhados podem curar a humanidade e a sua casa, o seu οἶκος, o nosso planeta.