“A viabilidade de associação entre a Agenda 2030 e a Economia de Francisco tem uma possibilidade de emancipação econômica, com amparo da sustentabilidade e solidariedade, para os países periféricos e as populações em estágio de pobreza crônica”, escreve Mireni de Oliveira Costa Silva, para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”, publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Mireni de Oliveira Costa Silva é oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. É mestre em Direito pela Universidade de Marília (UNIMAR), em parceria com a Escola Mato-Grossense de Magistrados (EMAM); especialista em Direito Processual Civil pela Escola do Ministério Público de Mato Grosso; especialista em Direito Processual Penal pela Universidade Gama Filho; especialista em Poder Judiciário e Atividades dos Oficiais de Justiça pela AVM Faculdade Integrada; graduada em Direito e licenciada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT).
A política, em especial a econômica, é marcada ao longo da história da humanidade por interesses de grupos dominantes. São pessoas ou países que se organizam em torno de objetivos comuns, ligados à expansão de capitais financeiros, para exercer o seu poder sobre outras empresas, grupos e até países.
A dinâmica da economia no final do século XX e primeiras décadas do século XXI tem proporcionado, aliado ao neoliberalismo e ao fenômeno da globalização, uma acumulação de capitais nunca antes visto na história da humanidade. Dados apontam que “de toda a riqueza gerada no mundo em 2017, 82% foi parar nas mãos do 1% mais rico do planeta. Enquanto isso, a metade mais pobre da população global – 3,7 bilhões de pessoas – não ficou com nada” [1]. Muitos são os fatores que contribuem para essa concentração de riqueza, dentre eles podemos citar a influência das políticas neoliberais que impõem processos de “modernização” das economias de países periféricos obrigando-os a flexibilizar regras do comércio exterior, privatizar empresas estatais que em grande parte são adquiridas por consórcios de multinacionais, vantajosos incentivos fiscais para que esses consórcios se instalem nos países, exploração de mão de obra barata nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento e ausência de políticas ambientais mais rígidas que acabam contribuindo para a devastação do meio ambiente em decorrência da exploração desenfreada das empresas multinacionais, a exemplo dos desastres ambientais ocorridos no Estado de Minas Gerais.
Esses processos de acumulação de riquezas têm proporcionado, em contrapartida, um agravamento no índice de pobreza ao redor do mundo, o contingente de pessoas sobrevivendo abaixo da linha da pobreza ganhou proporções alarmantes, o que tem motivado muitos debates e proposições nos países mais progressistas.
A propósito da Agenda 2030, apresentada pela Organização das Nações Unidas em 2015, apresentou 17 objetivos para, em parceria com os 193 países, implementar e buscar amenizar os efeitos preocupantes da política econômica global.
Os objetivos, em sua grande maioria, fazem referência à sustentabilidade em todos os aspectos, não só no econômico; e, por meio de parceria com os países, a ONU busca implementar a Agenda.
No mesmo sentido, o Papa Francisco faz uma Carta convite a jovens do mundo inteiro para juntos discutirem uma proposta de economia sustentável para o planeta, uma economia “que faz as pessoas viver e não mata inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não da caça” (Vaticano 2019). Essa economia está sendo chamada de Economia de Francisco, e propõe estabelecer novos paradigmas de um modelo sustentável, alicerçado na solidariedade que inclua todos os povos do planeta.
Nessa perspectiva, o presente artigo se justifica pela importância e urgência em discutir a proposta que está sendo veiculada sobre a Economia de Francisco e a Agenda 2030 a partir da perspectiva histórica do desenvolvimento econômico global, como ele foi construído e alicerçado e promoveu um processo catastrófico de expansão da pobreza em escala alarmante.
A história política e econômica mundial é marcada por lutas por territórios e expansão do comércio em todas as suas modalidades. Desde os primórdios da humanidade, o homem promove guerras, sob qualquer pretexto, pela disputa econômica, todas as guerras possuíram esse fator como preponderante.
Inicialmente, o homem era nômade, não possuía território fixo, sobrevivia essencialmente daquilo que a natureza pudesse lhe oferecer de caça e pesca, sem a expectativa de ter que plantar e colher para sobreviver. Posteriormente, passou a viver em cavernas, fixar residência e a depender da sua força de trabalho e de produzir o seu alimento, dado que sua permanência num determinado lugar não lhe garantia sustento por muito tempo, bem como começa a fabricar seus primeiros tecidos e suas vestes.
Dessa necessidade de armazenar advém a possibilidade de comercializar, que nesse período ocorria por meio do “escambo”, que era a troca ou a permuta de mercadorias sem o uso de moeda, elas aconteciam com produtos diversos e em regiões longínquas.
O homem começou a formar pequenos vilarejos que depois se transformaram em promissoras comunidades, e “a evolução dessas comunidades esteve ligada ao desenvolvimento de novas formas de produção – agricultura, criação de gado, artesanato; e processou-se em duas direções: no sentido da extensão da posse e da propriedade individual dos bens e no sentido da transformação das antigas relações familiares” (ARRUDA e PILLETI, 1996, p. 13). Deu-se então início ao processo de exploração e acumulação.
A terra era propriedade pública, então parte da produção tinha que ser repassada para os Senhores para que fosse investido na estrutura das cidades e nas relações com os comércios em outras regiões. A classe social que representava o Estado era caracterizada pelos nobres, religiosos e funcionários. Quem administrava as riquezas eram os sacerdotes. Havia um paradoxo entre a liberdade e a escravidão, aceita como fato habitual e natural.
Em todas as épocas e modelos de organização social sempre existiram aquelas pessoas que ditavam as normas e as regras e as que deveriam cumpri-las. Esse fato acontecia em todas as áreas; no entanto, ficava mais evidente no aspecto econômico, pois ele preponderava sobre os demais, na arrecadação e na exploração e escravização da mão de obra que fazia aumentar as riquezas daqueles que tinham o “direito” de acumular sem trabalhar, que sobrevivia da força e do trabalho alheio.
Posteriormente, esses proprietários de vastas extensões de terras formaram as camadas dominantes, grandes impérios foram construídos nesse período.
O Cristianismo, que anunciava o desapego aos bens materiais, nada tinha a ver com a organização e a hierarquia da Igreja, que se expandiu e tornou-se uma instituição muito poderosa, com seus ritos e paramentos usados para atrair fiéis pelos cinco continentes, chegando ao ponto de adquirir o seu próprio Estado: o Estado da Igreja, que nasceu em 756, e possuía como Chefe Maior a figura do Papa.
Com a crise do Império Romano, surgem os feudos, que eram propriedades do Senhor e abrigavam os servos que na terra poderiam trabalhar, pois detinham a posse útil da terra e o direito de ser protegidos pelo Senhor a quem deviam obrigações. Havia, nesse período, homens livres, escravos e aqueles chamados de ministeriais, que realizavam algumas atividades, eram artífices, serviçais, estafetas, feitores. Os feudos maiores eram chamados de unidades econômicas e políticas, já que estabeleciam relação de proteção entre seus dependentes e assim foram adquirindo autonomia, até mesmo “concessão de imunidades, como a isenção fiscal e tributária” (ARRUDA e PILLETI, 1996, p. 98). Os senhores também precisavam de proteção e a conseguiam fazendo juramento a um ou mais senhores, tornando-se vassalo do seu protetor com obrigações pré-estabelecidas, as quais deveria cumprir. Os mais fortes, de mais posses, subjugavam os mais fracos.
Com o enfraquecimento do sistema feudal, começou a intensificar o comércio; as classes burguesas, constituídas por artesões e comerciantes, formaram a população dos centros urbanos.
No século XV, surgem os Estados, impondo barreiras políticas ao comércio que até então era livre, pois não havia fronteiras internacionais. Com o grande desenvolvimento e expansão do comércio internacional, surgem as sociedades capitalistas, os bancos, os fundos de depósitos que passam então a depender da reação do mercado e este das atitudes e comportamentos dos mandatários.
A Igreja, até então uma ferrenha crítica da usura, com o desenvolvimento do comércio começa a mudar de postura e se torna mais flexível, aceitando a cobrança de juros. A economia antes em ascensão entra em crise em razão da diminuição da população provocada pela Peste Negra [2].
Essa crise no crescimento da economia possibilitou a expansão marítima e abertura de novas rotas comerciais, o que favoreceu o desenvolvimento da economia e uma nova fase para o capitalismo que deixa de ser pré-capitalismo para tornar-se capitalismo comercial, promovendo uma modificação no sistema feudal, integrando-o ao capitalismo.
O capitalismo passou pela fase comercial, industrial e financeira. Na fase comercial, a maior parte do lucro concentrava-se nas mãos dos comerciantes. O capitalismo industrial tem sua origem na Inglaterra em meados do século XVIII, e de lá se espalha para outras partes do mundo, quando, no final do século XIX, tem início o capitalismo financeiro, que se consolidou no século XX com a expansão do sistema bancário e das corporações financeiras, que começam a controlar outros ramos de atividades empresariais. Surgem os grandes conglomerados e “as empresas concentram-se, tornam-se cada vez mais poderosas, assumem dimensão internacional: são as multinacionais [...] esta fase também chamada de capitalismo monopolista” (ARRUDA; PILLETI, 1996, p. 128).
Até se firmar como um sistema político-econômico, que alcançou hegemonia, o capitalismo enfrentou as fases já mencionadas, e segundo a doutrina de Antonio Negri, outra importante característica que ele assumiu logo após a crise do Welfare na década de 70 foi a fase do biocapitalismo, que para ele:
[...] quando pensamos no modo de expansão do capitalismo, falamos de um capitalismo vencedor que se tornou global, que aumentou sua capacidade de fazer produzir para o capital ao mundo inteiro. Mas o capital não é um monarca, é uma relação social; de fato se não houvesse trabalho vivo o capital não existiria. O capital vive da exploração e a exploração é uma relação. (NEGRI, 2015, p. 62).
E é exatamente essa relação que às vezes subjuga o trabalhador às necessidades do capital, num verdadeiro processo de reificação é que surgem as resistências e as formas de organização das relações entre o trabalhador e os modos de produção da sociedade capitalista globalizada.
Embora tenham ocorrido algumas iniciativas socialistas e comunistas em alguns países, a exemplo do bloco socialista liderado pela União Soviética e a experiência comunista com o exército vermelho na China e em Cuba, o regime que prevalece até a atualidade é o capitalista, com todas as suas nuances e conformações.
O sistema capitalista, ao longo da história − em especial do século XX para cá −, sofreu profundas alterações marcadas essencialmente pelas alterações políticas e econômicas a nível mundial. Os Estados passam a agir em atenção aos reclamos dos mercados, políticas são definidas e executadas a partir de orientações e indicativos do momento político e do próprio mercado. Para Mises (2018), foi a economia que preparou o caminho para a empresa capitalista e, como ciência, acabou sendo reconhecida como um dos eventos mais significativos da história da humanidade.
As duas grandes guerras mundiais, ocorridas no século XX, foram, aliadas à devastação social e política, grandes propulsoras de mudanças significativas na área econômica.
Teorias que já vinham sendo estudadas, a exemplo do liberalismo econômico, “despontou no século XVIII como ideal de organização econômica da sociedade, coincidindo com os interesses de expansão e desenvolvimento da nascente indústria de produção em escala na Europa”(AGUILLAR, 2016, p. 63), inspirado nas ideias de Adam Smith, com a sua obra Riqueza das nações, defendia que o Estado não deveria intervir na economia, pois ele se autorregularia, foram amplamente colocadas em prática no intuito de balizar as decisões do mercado e a economia de modo geral. De acordo Smith, o mundo seria mais justo e eficiente se houvesse mais livre iniciativa, se o Estado desregulamentasse e privatizasse suas atividades econômicas, reduzindo de modo significativo sua atuação. “Segundo a doutrina liberal, a procura do lucro e a motivação do interesse próprio são inclinações fundamentais da natureza do homem [...] premia a iniciativa criadora, incitando ao trabalho e à inovação” (MORAES, 2001, p. 14).
Por outro lado, “o período que vai de meados do século XIX até a terceira década do século XX, portanto, é profundamente marcado pelo predomínio do liberalismo e de seu principal sustentáculo: o princípio do trabalho como mercadoria e sua regulação pelo livre mercado” (BEHRING e BOSCHETTI, 2010, p. 56). Para as autoras, esse livre mercado possibilita aos indivíduos a busca pelos seus interesses individuais e esses, quando somados aos interesses de outros indivíduos, proporcionariam um bem coletivo maior. Nesse caso, estaria atuando a “mão invisível” [3] do livre mercado para regular essas relações econômicas e sociais e alcançar o bem comum, cabendo ao Estado apenas propiciar as bases legais para tornar essas relações mais benéficas para o homem. No entanto, essa “liberdade encontra sua limitação nas leis que o regem” (OLIVEIRA; DIAS, 2017, p. 19). Apontam os autores que essa liberdade disseminada pelos liberalistas era apenas aparente, refletia-se sobre a classe burguesa e não para a totalidade dos cidadãos.
Nesse sentido, apesar das ideias disseminadas pelo liberalismo serem muito úteis ao capital, o mesmo não pode ser percebido nas camadas mais baixas da população:
[...] a celebrada mão invisível do mercado, de Adam Smith, nunca bastou por si mesma para garantir um crescimento estável ao capitalismo, mesmo quando as instituições de apoio (propriedade privada, contratos válidos, administração apropriada do dinheiro) funcionam adequadamente. Algum grau de ação coletiva – de modo geral, a regulamentação e a intervenção do Estado – é necessário para compensar as falhas do mercado (tais como os danos inestimáveis ao ambiente natural e social), evitar excessivas concentrações de poder de mercado ou combater o abuso do privilégio do monopólio quando este não pode ser evitado (HARVEY, 2010, p. 118).
A grande crise enfrentada pelos EUA em 1929, e que ficou conhecida como a Grande Depressão, serviu, em suma, para demonstrar as fissuras que havia no liberalismo que entra em decadência em razão da crise; a concentração de riquezas e a liberdade em excesso para movimentar capitais conduziu-o ao enfraquecimento, suas principais ideias como livre mercado, intervenção mínima do Estado na economia já não conseguiam resolver os graves problemas que surgiram.
A partir de 1930, os Estados começam a intervir de modo mais contundente na economia, propiciando o início do Estado do Bem-Estar Social, Welfare State, defendido por John Maynard Keynes, e passam a investir em políticas sociais para atender o grande contingente de desempregados que a grande depressão havia provocado:
a eliminação do desemprego em massa, tornou-se pedra fundamental da política econômica nos países de capitalismo democrático reformado [...] o argumento keynesiano em favor dos benefícios da eliminação permanente do desemprego em massa era tão econômico quanto político. (HOBSBAWM, 1995, p. 100)
O capitalismo, no decorrer da história, em especial a moderna, passou por algumas crises bem perceptíveis que alteraram as relações de trabalho, hábitos de consumo ligados à capacidade produtiva e condições para tal. Harvey (2010) aponta que essas alterações foram tão significativas que afetaram as configurações geográficas e geopolíticas, poderes e práticas dos Estados.
Segundo o autor:
[...] as pressões coletivas exercidas pelo Estado ou por outras instituições (religiosas, políticas, sindicais, patronais e culturais), aliadas ao exercício do poder de domínio do mercado pelas grandes corporações e outras instituições poderosas, afetam de modo vital a dinâmica do capitalismo. Essas pressões podem ser diretas (como a imposição de controles de salários e preços) ou indiretas (como a propaganda subliminar que nos persuade a incorporar novos conceitos sobre nossas necessidades e desejos básicos na vida), mas o efeito líquido é moldar a trajetória e a forma do desenvolvimento capitalista de modos cuja compreensão vai além da análise das transações de mercado (HARVEY, 2010, p. 118).
Essas pressões só agravaram a crise do capitalismo, que pretendia se fortalecer com o sistema corporativo implantado por Henry Ford, que tentava implementar uma remodelagem ao capitalismo e sair da crise. No entanto, o seu modelo de sistema corporativo não resistiu e ele se viu obrigado a demitir os trabalhadores e a cortar parte dos salários.
Esse processo não afetou somente os centros urbanos nos EUA, onde a crise foi mais fortemente acentuada, as pessoas que trabalhavam no campo, e sobretudo os imigrantes ilegais, que já viviam em situação de risco e pobreza mesmo antes da Depressão, tiveram sua condição agravada. Por outro lado, os grandes produtores também foram afetados pela crise, já que os seus produtos tiveram uma queda vertiginosa no mercado, os excedentes da produção forçavam a queda nos preços dos produtos, ocorre nesse período o endividamento de famílias tanto de grandes, mas sobretudo de pequenos produtores.
Nos EUA, fatores como o “desemprego generalizado e redução salarial comprometeram mais ainda o consumo, os lucros despencaram invariavelmente. Os investimentos, por sua vez, se retraíram, posto que as empresas já estivessem funcionando em capacidade ociosa” (POGGI, 2008, p. 31), e contribuíram para originar e consolidar a crise de 1929.
Foi necessária a intervenção do Estado para tentar salvar o capitalismo, tanto nos EUA como em outros países, o exemplo mais marcante foi o adotado pelo governo do Presidente Roosevelt, que lançou um pacote de políticas econômicas chamado New Deal [4], que serviu de marco inicial do Welfare e das ideias Keynesianas no país. Segundo Negri (2015), o capital para se sustentar passou por adequações, precisou aceitar o fato de que de era necessário entrar na vida das pessoas, o Welfare, o Estado da providência, da assistência.
Essas alterações foram, em certa medida, impulsionadas pelo processo de globalização política, pois havia um crescimento e demanda acelerados nos mercados internacionais; países como a URSS, que rompeu com o capitalismo, passaram a ter um viés socialista, no mesmo período vivia o apogeu do seu crescimento econômico, “enquanto o resto do mundo, ou pelo menos o capitalismo liberal ocidental, estagnava, a URSS entrava numa industrialização ultrarrápida e maciça sob seus novos planos quinquenais (HOBSBAWM, 1995, p. 100)”.
O período entre guerras foi marcado por estagnação na economia em grande parte dos continentes. No entanto, os EUA, que já despontavam no cenário internacional como a maior economia do mundo, dada a estabilidade alcançada com sua economia liberal clássica que entrou em decadência provocada pela Grande Depressão. Porém, mesmo com as guerras e a crise interna, continuaram sendo grande potência mundial, “a guerra não apenas reforçou sua posição como maior produtor industrial do mundo como os transformou no maior credor do mundo” (HOBSBAWM, 1995, p. 101).
A economia global passou, no decorrer do século XX e primeiras décadas do século XXI, por grandes transformações, e todas elas, inevitavelmente, tiveram uma participação dos EUA, talvez porque o país assumiu “a posição de poder hegemônico dentro do mundo não comunista. Lideraram uma aliança global para manter a maior parte possível do mundo aberta para absorver o excedente de capital. Seguiram sua própria agenda por mais que parecessem agir para o bem universal” (HARVEY, 2011, p. 34), seja por interferências em outros países, pelas guerras com as quais esse país esteve envolvido, os conflitos tendo o petróleo como o seu epicentro, crises no mercado imobiliário, que em princípio não chamou a atenção do governo, “as autoridades e a mídia não deram atenção porque as pessoas afetadas eram de baixa renda, principalmente afro-americanos, imigrantes (hispânicos) ou mães solteiras” (HARVEY, 2011, p. 9), crise no Banco Lehman Brothers e que, de uma forma ou de outra sempre afetaram a economia global, enfim, discutir os modelos e a dinâmica cíclica da economia mundial não seria possível sem levar em consideração os eventos que ocorreram na história americana e que de lá se espalharam para outras partes do mundo, interferindo de modo significativo na globalização econômica e nos mercados de capitais.
Essa crise provocada pela falência do Banco Lehman Brothers, e que provocou um colapso no sistema bancário internacional, fez com que “os Estados enfrentassem, desde 2008, com maior ou menor perplexidade, a tarefa de limpar as ruínas da crise financeira e de restabelecer alguma ordem – tarefa que não pode ser, obviamente, privatizada” (STREECK, 2012, p. 87).
A crise financeira provocada por esse episódio ganhou proporções globais, com um grande reflexo negativo sobre as moedas, “esse alcance ampliado levou à introdução de um conjunto de políticas destinadas a apoiar as empresas financeiras em todo o mundo, com um grau significativo de cooperação para os bancos centrais” (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 267). Mesmo com altos investimentos públicos para salvar o sistema financeiro, o crescimento econômico foi insatisfatório, com o avanço da globalização avançam também os reflexos da crise em todos os continentes, as bolsas de valores caem e afetam os mercados de capitais por todo o globo, o que afeta substancialmente os índices de desemprego, de investimentos de áreas cruciais e emergenciais como alimentação, educação, saúde, moradia, segurança, saneamento, áreas essas que possibilitam uma condição de vida digna para um contingente enorme de pessoas que dependem diretamente do poder público.
O capitalismo manifesta várias características no seu processo de consolidação. Segundo Harvey (2011), são os capitalistas que dão vida a esse processo e assumem, no seu desenrolar, várias particularidades e identidades, eles são comerciantes, rentistas, financistas, proprietários, mas a que predomina desde o século XVIII é o capital industrial ou de produção, que utiliza a mão de obra, a força de trabalho como mercadoria em busca do lucro.
Segundo Chesnais (2005), o capitalismo pode ser entendido como um conjunto de transformações que se influenciam mutuamente, tais como as estruturas de classes, as formas de o Estado exercer seu poder, os quadros institucionais, as mudanças técnicas e de rentabilidade. Para ele, numa economia capitalista, é fácil distinguir a classe dominante, basta, para isso, identificar quem é que possui a propriedade dos meios de produção, será, portanto, esse que definirá de maneira inequívoca a classe dominante.
Nesse sentido:
[...] o capitalismo como processo de acumulação ilimitada, deve estimular incessantemente as tendências à insaciabilidade e ativar diferentes formas de desejo de acumular: acumulação de propriedade, concentração de poder [...] o capitalismo só pode desenvolver-se apostando na inclinação humana para acumular ganhos, poder, invenções, experiências diferentes (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 484).
Caso contrário, ele não se sustenta, pois um de seus principais sustentáculos é a acumulação. Para manter esse sistema em pleno funcionamento são adotadas medidas de proteção de mercados, barreiras comerciais, acordos entre países, mercados comuns, grupos de países são criados para facilitar as relações comerciais, a exemplo do G7, que forma o grupo das 7 economias mais avançadas do mundo, e, ainda, bancos, a exemplo dos BRICS (banco formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). No entanto, “a financeirização da economia, a desregulação economica e a capacidade de pressão das grandes empresas são fatores que limitam a capacidade de gestão do Estado” (MONEDERO, 2012, p. 1), que acaba muitas vezes sofrendo pressões e se submetendo aos interesses do capital em detrimento de seus próprios interesses, orientando-se por organismos internacionais que (re)orientam suas políticas internas para atender aos reclamos do capital externo.
Muitos desses organismos são vinculados à Organização das Nações Unidas, que reúne no seu conjunto inúmeras instituições destinadas às demandas ligadas à economia global, a exemplo do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, que são responsáveis por “promover a cooperação monetária global, garantir a estabilidade financeira, facilitar o comércio internacional, promover o alto nível de emprego e o crescimento econômico sustentável e reduzir a pobreza em todo o mundo, monitoramento e empréstimos e assistência para o desenvolvimento” (Nações Unidas, 2020), o que nem sempre acontece, pois a economia é cíclica, sofre interferências de fatores externos e alheios às determinações estruturais.
O neoliberalismo surge na década de 70 como uma estratégia do capital financeiro. Ele é considerado por Duménil e Lévy (2014) como um novo estágio do capitalismo, expressando uma estratégia das classes capitalistas aliadas aos trabalhadores do alto escalão, especificamente do setor financeiro.
A globalização da economia tomou uma grande dimensão na história recente da humanidade.
A globalização ou mundialização constitui um processo ainda inacabado cujo perfil definitivo ainda está longe de ser fabricado [...] o fenômeno refere-se a uma etapa capitalista gerada nas últimas décadas pelo incessante processo de acumulação e internacionalização dos capitais, sobretudo o financeiro. (SILVA, 2000, p. 10).
O capital deixou de ter fronteira, “o sistema do capital é orientado para a expansão e movido pela acumulação” (MÉSZÁROS, 2009, p. 100), as grandes empresas passaram a ser transnacionais, de capital volátil, o que provoca centralização e acumulação de capitais.
O mundo do trabalho sofreu impactos em sua dinâmica, pois as grandes empresas se deslocam para os mercados nos quais tem mais oferta de mão de obra, pois tendem a baratear o custo da produção e, somado a essa conjuntura, existe de outro lado a preocupação com a pobreza crescente que assola vários países, em especial os do continente africano. As discussões e preocupações políticas acerca da sustentabilidade, do meio ambiente e sobretudo de metodologias para sua preservação ocupam muitos debates nos governos mais progressistas.
A economia alicerçada no modelo neoliberal, que teve suas ideias definidas nas Escolas Austríaca, com Friedrich August von Hayek, Chicago, com Milton Friedman e na Virgínia, com James M. Buchanan, tem demonstrado resultados insipientes nas questões que são mais afetas à preocupação com os problemas elencados.
Ao longo da história da Organização das Nações Unidas, muitos são os acordos, agendas e tratados firmados entre os países com vistas a buscar alternativas viáveis para solucionar os problemas apontados. No entanto, a depender dos interesses envolvidos, muitos deles deixam de cumpri-los sem nenhuma restrição ou sanção.
O neoliberalismo surgiu como proposta para dinamizar a economia, ampliar os ganhos das empresas e o acúmulo de mais riquezas para os países e o 1% mais rico do mundo, segundo relatório produzido pela Oxfam Brasil [5] “de toda a riqueza gerada no mundo em 2017, 82% foi parar nas mãos do 1% mais rico do planeta. Enquanto isso, a metade mais pobre da população global – 3,7 bilhões de pessoas – não ficou com nada” (2018). Esses dados apontam no sentido de que existe um contingente de pessoas ao redor do mundo vivendo abaixo da linha da pobreza.
Ao tempo em que as ideias propulsoras do neoliberalismo estavam sendo estudadas e pesquisadas nas universidades, principalmente na Escola de Economia de Chicago, os governos, em especial na América Latina, enfrentavam grandes crises econômicas, muitas fabricadas em regimes ditatoriais. Muitos países assumiram grandes empréstimos junto ao FMI para tentar frear a inflação e desenvolver as políticas públicas básicas, primárias.
Aos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento couberam a tarefa de implementar as agendas políticas determinadas por eles, como cortes em orçamentos, privatizações, erradicação do analfabetismo e equilíbrio fiscal nas contas públicas.
As principais ideias neoliberais e que foram impostas aos países como:
[...] duas grandes exigências gerais e complementares: privatizar empresas estatais e serviços públicos, por um lado; por outro, desregulamentar, ou antes criar novas regulamentações, um novo quadro legal que diminua a interferência dos poderes públicos sobre os empreendimentos privados (MORAES, 2001, p. 35).
O primeiro país a implementar o neoliberalismo foi o Chile, que ficou conhecido como laboratório da Escola de Chicago, seguido na sequência pela Inglaterra e pelos EUA.
Aponta Moraes (2001) que a mundialização financeira já consolidada nos anos 70 foi determinante para a consolidação do neoliberalismo na década de 80. No Brasil, em especial, ela fica mais acentuada a partir de 1995, no governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que para conseguir empréstimos junto ao FMI implementou a agenda neoliberal no país, a principal política de adesão que ficou mais perceptível foram as privatizações de empresas estatais, algo em torno de 123 estatais entre 1995 a 2002 [6].
Afirma ainda o autor que a ideologia neoliberal difunde a ideia da desregulamentação por parte dos Estados nacionais, e que essa tarefa acaba sendo transferida para outras esferas, como o Banco Mundial, a OCDE, o FMI, a OMC e o G-7, que são, em grande medida, dominados por banqueiros e governos das grandes potências mundiais, dando forma ao Estado Supranacional.
São, em grande medida, essas instituições quem definem os rumos da economia globalizada, e, nesse sentido, cabe aos Estados Nacionais submeterem-se a essa nova ordem, à “lógica” do capital, deixar ou não de ser o homo aeconomicus [7].
Alguns teóricos pós-modernistas, a exemplo de Aktouf (2004, p. 205), “anunciam que a sociedade pós-industrial possibilitará a superação do homo aeconomicus, do individualismo, do consumismo e a ilusão de que o livre mercado garante por si mesmo o desenvolvimento e a liberdade do indivíduo”.
No mesmo passo, observamos que a realidade caminha em sentido diametralmente oposto, os interesses globais se sobrepõem aos regionais ou locais, os países periféricos acabam se sujeitando a grandes reformas estruturais definidas e defendidas para atender a essas demandas.
Todavia, não é sempre que um país subdesenvolvido, de economia instável, que enfrenta problemas na esfera política, econômica e social tem condições de enfrentar os organismos internacionais. Eles fazem as imposições para conceder os empréstimos e eles acabam cedendo, para Aktouf (2004, p.48), “a argumentação neoliberal, qualquer que seja ela, tem geralmente por objetivo fazer aceitar o inaceitável, tendo por objetivo fazer-nos admitir como normais, economicamente ideais, racionais, ou administrativamente inteligentes toda uma série de absurdos que correm o mundo real” e isso inclui, em muitos casos, os governos locais terem de adequar suas legislações em diversas áreas como política ambiental e econômica para atender aos interesses externos.
Muitos acordos e agendas são idealizadas e realizados pela Organização das Nações Unidas, que congrega 193 países de todos os continentes, com vistas a amenizar os efeitos causados pelas interferências e interesses da economia global, do capital financeiro, às vezes nocivos para esses países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Esse modelo de economia global, que privilegia sempre as economias mais ricas, os países mais desenvolvidos em detrimento de uma agenda global que propicie um desenvolvimento mais equitativo entre os povos, tem gerado preocupação e mal-estar entre as nações. Muitos têm sido os debates acerca do equilíbrio fiscal, desmatamento, preservação ambiental, créditos de carbono, créditos verdes, sustentabilidade, solidariedade, miséria, fome, moradia, enfim, são muitos os problemas a serem enfrentados no século XXI, em plena era digital, da nanotecnologia, muitos desses problemas já deveriam ter sido superados se de fato fizessem parte de uma agenda global.
No entanto, o que é possível perceber é que esse modelo neoliberal de economia globalizada, de capital financeiro, tem gerado grandes riquezas, porém para poucas pessoas. A concentração de renda chegou a um ponto insustentável, que levou as Nações Unidas a criar, em 2015, mais um plano de ação – Transformando nosso mundo: A Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável . Essa Agenda trouxe um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade com vistas a alcançar a paz universal com mais liberdade.
[Continua neste link...]
[1] A Oxfam Brasil é uma organização da sociedade civil brasileira criada em 2014 para a construção de um Brasil mais justo, sustentável e solidário, eliminando as causas da pobreza, as injustiças sociais e as desigualdades.
[2] Epidemia causada por um vírus oriental em 1348, dizimou de um terço a metade da população europeia (ARRUDA e PILLETI, 1996, p. 109).
[3] Ideia desenvolvida por Adam Smith, em sua obra Riqueza das Nações, em 1776, principal teórico do liberalismo que defendia a ideia de que o Estado não poderia intervir na economia.
[4] O New Deal foi o projeto criado pelo então presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt, em 1933, o projeto consistia em fortes obras na infraestrutura, como estradas, hospitais, escolas, tubulações de esgoto etc. gerando empregos. Com empregos, os cidadãos voltaram a consumir, as empresas aumentaram a produção e começaram a vender mais, contratar mais, e o capitalismo volta a crescer. Disponível neste link.
[5] A Oxfam Brasil é uma organização da sociedade civil brasileira criada em 2014 para a construção de um Brasil mais justo, sustentável e solidário, eliminando as causas da pobreza, as injustiças sociais e as desigualdades. Atuamos em três áreas temáticas: setor privado, desigualdades e direitos humanos; cidades: juventudes, gênero e raça; e justiça econômica. A Oxfam Brasil faz parte de uma rede global, a Oxfam, que tem 20 membros que atuam em cerca de 90 países no total, por meio de campanhas, programas e ajuda humanitária.
[6] FOLHA DE SÃO PAULO. País privatizou 165 empresas entre 91 e 2002. 21 dez. 2004. Disponível neste link.
[7] O homo aeconomicus é abstração. Não é um homem real. É antes qualquer homem real que se conforme ao modelo, a ser testado. Assim sendo, não se trata de testar uma teoria econômica em confronto com o comportamento real do produtor ou consumidor racionais, e são racionais na medida que se comportam como previstos (COSTA, 2009, p. 6).