05 Novembro 2018
Diante do projeto “neoliberal radical” do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, o economista Eduardo Giannetti se diz preocupado com o futuro do próprio liberalismo no País. “Temo que essa aventura neoliberal radical, se não tiver o mínimo de sensibilidade social, possa arruinar a reputação do liberalismo no Brasil por muito tempo", afirmou em entrevista ao Estado. Giannetti, porém, pondera que talvez esse programa de Guedes não chegue a ser implementado, dada a trajetória nacionalista e corporativista do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).
A entrevista é de Luciana Dyniewicz, publicada por O Estado de S. Paulo, 04-11-2018.
Responsável pelo programa econômico da candidata derrotada Marina Silva (Rede), ele diz ainda que o resultado de Marina nas urnas reflete a polarização “raivosa” da sociedade brasileira, que acaba excluindo pessoas que defendem convergências. Essa polarização no País o levou a estudar sociedades que passaram por movimentos semelhantes, como a República de Weimar, que levou a Alemanha ao regime nazista. “Há muitos paralelos, mas não estou dizendo que isso deve ser ipsis literis aplicado ao Brasil. Quando essa polarização se estabelece, destrói o processo democrático eleitoral e a possibilidade de diálogo.”
Quais fatores explicam a derrota dos partidos tradicionais e a ascensão de um nanico como o PSL?
Há um bom tempo o eleitorado brasileiro busca sair da oposição entre PT e PSDB. Esse movimento se anunciou em 2014, quando, depois da morte do Eduardo Campos, aquela onda avassaladora levou a Marina a liderar as pesquisas. Mas ela foi atacada de modo violento pelo governo Dilma Rousseff e acabou não resistindo. Há um parentesco entre aquela onda da Marina, uma outsider à época, e o que ocorreu agora. A diferença é que se agravou o quadro institucional e econômico brasileiro. Tivemos a Operação Lava Jato, que revelou os descaminhos da relação entre público e privado na vida brasileira. Teve a recessão provocada pelo desastre do governo Dilma. Isso favoreceu o desencanto e a busca por um candidato que não pertencesse ao establishment. Além disso, o Bolsonaro soube utilizar de maneira competente as novas tecnologias da informação para alavancar sua campanha mesmo sem estrutura partidária. De certa maneira, o PT provou de seu próprio veneno. O que eles fez contra a Marina em 2014, em termos de boatos, foi feito contra eles agora pelo Bolsonaro, usando as mídias sociais de uma maneira mais avançada.
Dá para colocar PT em 2014 e PSL em 2018 no mesmo patamar?
Não foi muito diferente. A diferença é que, em 2014, era o poder instituído contra uma candidata sem recursos. Ela acabou sucumbindo diante das mentiras. Disseram que ela ia acabar com o Bolsa Família e que a autonomia do Banco Central seria entregue aos banqueiros. Fizeram um verdadeiro linchamento do qual eu mesmo fui vítima, porque representava o lado econômico da proposta dela.
Há também uma onda internacional crescente do populismo de direita. O que explica esse movimento global?
Sem dúvida Bolsonaro é parte de um processo que tem tomado conta de muitas democracias. Domesticamente, outro elemento importante foi que, tanto PT quanto PSDB, cujos programas são, a grosso modo, social democrata, nunca estabeleceram uma atuação cooperativa. Cada um deles, quando esteve no poder, preferiu se aliar ao que há de mais sinistro na política brasileira (o centrão) do que conversar para enfrentar a desigualdade e obter um crescimento sustentável. Essa não cooperação abriu espaço para aventureiros. Também beneficiou o Bolsonaro a força do sentimento antipetista, a raiva da população diante do establishment político e o medo que a insegurança gera. Olhando de forma mais ampla, há um desencanto generalizado com a democracia representativa nesse mundo da tecnologia da informação, em que há cobrança por resultados imediatos, muito mais possibilidades de organização e de compartilhamento de raiva e medo. Esses dois sentimentos elegeram o Bolsonaro. Ele soube melhor que qualquer um se apresentar como alguém capaz de atender a raiva e o medo. Bolsonaro tem parentesco com o que aconteceu nos Estados Unidos, com Donald Trump. É um tipo de populismo de direita que hoje tem muito apelo e que funciona muito bem nas mídias sociais. E ele tem um parentesco também no seu lado autoritário e meio autocrático com as democracias de fachada, como são Rússia e Turquia.
Há riscos para a democracia?
É possível responder afirmativamente, mas num sentido preciso. Uma definição estreita de democracia é a renovação periódica dos governantes em ambiente competitivo pelo voto universal e secreto. Isso não está em risco. Mas sabemos que essa definição é compatível com práticas que comprometem a ordem democrática em sentindo pleno. Uma definição mais abrangente de democracia inclui o império da lei, o respeito a divisão de poderes, a liberdade de imprensa e de expressão, o respeito aos direitos das minorias e o respeito às oposições. Esses elementos suscitam dúvidas quanto a essa aventura na qual o Brasil está entrando, que é a eleição de Bolsonaro.
Até então, nenhum desses componentes haviam sido ameaçados?
Algumas propostas do PT ameaçavam também. Por exemplo, a liberdade de imprensa e de expressão e mesmo a autonomia dos poderes. Agora, a ameaça é maior com Bolsonaro. O Brasil vai viver duas coisas. Primeiro, um teste das nossas instituições democráticas. Será que elas sobrevivem ao voluntarismo e a tudo que Bolsonaro manifestou no passado? É uma dúvida. O segundo ponto é uma aventura para nossa sociedade em uma agenda ultraconservadora no plano dos costumes, que ameaça direito de minorias, e que, se se materializar, vai ser um tremendo retrocesso do ponto de vista da convivência no Brasil. Há uma outra aventura na agenda neoliberal radical que a equipe econômica está propondo. Uma agenda com muita pouca sensibilidade para questões ligadas à equidade, a grupos sociais vulneráveis e que me fez lembrar uma histórica da Revolução Russa. (À época), Max Weber era professor de Georg Luckács, o principal filósofo marxista do século 20. Weber disso para ele: "Temo que os russos arruínem a reputação do marxismo por um século.” Eu temo que essa aventura neoliberal radical, se não tiver o mínimo de sensibilidade social e de compromisso com a ideia de justiça, arruíne a reputação do liberalismo no Brasil por muito tempo.
Com base nessa análise, Bolsonaro deve ser chamado de presidente de ultradireita?
Não tenho a menor dúvida.
Em relação a essa agenda econômica liberal “radical”, acha que ele será realmente implementada? Bolsonaro já desautorizou Paulo Guedes.
Também tenho dúvidas em relação a essa agenda, porque ela é totalmente inconsistente com a trajetória do Bolsonaro durante sete mandatos na Câmara. Ele sempre votou ao lado dos corporativistas, dos nacionalistas e dos estatizantes. Os sinais são muito desencontrados e não está claro qual vai ser a resultante desses vetores em conflito. É muito estranha essa conversão (de Bolsonaro) às vésperas da eleição ao ideário neoliberal radical. Não sei se ele se dá conta das implicações disso nem o que vai prevalecer quando ele tiver de decidir. Em relação ao Paulo Guedes, eu me lembrei de uma frase que eu ouvi uma vez: "Os economistas podem ser mais ingênuos sobre a política do que os político sobre a economia". As intenções dele são boas, mas temo que não saiba onde está se metendo.
Em geral, como vê o programa dele?
É um programa genérico. Tem pontos positivos, como a abertura econômica. Acho que eles têm ciência da gravidade da situação fiscal, mas subestimam a dificuldade de implementação. Quando vejo essa equipe dizendo que vai zerar o déficit primário em um ano, fico muito incrédulo. Isso é improvável tangenciando o pensamento mágico. Essa ideia de usar receitas excepcionais, como a de privatizações, para cobrir rombos fiscais sem resolver o desequilíbrio das contas públicas é vender a prata da família para jantar fora. Você vai ter algum alívio, reduzindo a dívida no curto prazo, mas, se não equilibrou as contas, daqui a pouco estará na situação anterior e já vendeu a prata da família. Então, tem de tomar cuidado. O problema essencial do Brasil é que os gastos obrigatórios estão crescendo em um ritmo acima do crescimento do PIB, é insustentável. Temos seis meses para apresentar um programa fiscal crível, que cria o mínimo de ancoragem fiscal. Caso contrário, vamos entrar em uma situação de inadimplência do Estado e colapso financeiro. Aí tem duas alternativas, ambas péssima: calote ou inflação. Essa ancoragem fiscal depende de medidas que vão ter de ser tomadas no início do mandato. A reforma da Previdência é a primeira. Acho até muito boa essa ideia de já aprová-la agora.
O sr. tem estudado sociedades fortemente polarizadas, inclusive a República de Weimar, que deu origem ao regime nazista. Há paralelos com o Brasil?
Eu me interessei em entender como uma sociedade se divide e chega ao tipo de polarização raivosa que o Brasil chegou. Ha muitos precedentes na história. A França teve a Revolução Francesa, a Espanha, a Guerra Civil e a Alemanha, a República de Weimar, que, dentro de um arcabouço democrático, elegeu Hitler, num enfrentamento entre nazismo e bolchevismo. Há muitos paralelos, mas não estou dizendo que isso deve ser ipsis literis aplicado ao Brasil. Quando essa polarização estabelece, ela não permite mais nada que não esteja em um dos polos. Isso destrói o processo democrático eleitoral e a possibilidade de diálogo. Na Alemanha, você era bolchevique ou nazista. E a elite financeira e industrial alemã, com medo do bolchevismo, estava topando qualquer aventura. Encontrei declarações de banqueiros e industriais alemães dizendo que Hitler não era problema porque, depois de eleito, eles o domesticariam. A elite econômica topou qualquer coisa para impedir que se repetisse na Alemanha uma revolução comunista nos moldes da Russa.
A elite brasileira tem apoiado Bolsonaro, sobretudo porque ele tem Paulo Guedes.
Tem de fazer todas as mediações, não é uma coisa que você pode aplicar diretamente. Mas, no Brasil, já vivemos isso na eleição do Collor. Para impedir o Lula, quase toda a elite embarcou numa aventura que terminou mal, com um impeachment.
O que cria essas sociedades divididas?
O descrédito nas forças políticas estabelecidas, no status quo. A recessão também, no caso da Alemanha. O desemprego havia aumentado e Hitler soube se apropriar do sentimento de medo e de raiva. Ele oferecia ordem para uma sociedade que estava à beira de uma situação caótica de desorganização e da total incerteza em relação ao dia seguinte. Isso em condições muito mais dramáticas que o caso do Brasil. Agora, os paralelos são fortes.
Há elementos fascistas em Bolsonaro?
Essa palavra tem de ser usada com algum critério. Mas o que ele falou sobre mulheres, homossexuais e indígenas ultrapassa qualquer fronteira de um pensamento civilizado do século 21. São de uma agressividade desmedida e, para qualquer pessoa minimamente centrada, gera uma enorme apreensão.
Todas as sociedades que o sr. estudou acabaram em guerra?
Não, os EUA estão vivendo isso. Tem estatísticas que mostram que, em 1980, 5% dos republicanos não queriam que seus filhos se casassem com democratas. Em 2010, eram 49%. É um tipo de polarização preocupante que mina a confiança, que é fundamental para a democracia. Confiança de que você pode conversar com seus oponentes e encontrar pontos de convergência que permitam alguma atuação cooperativa acima das paixões partidárias.
Com base nesses estudos, como dá para imaginar o futuro do Brasil?
Vai depender do governo recém-eleito, que poderá ou não construir um espaço de diálogo em prol de propostas comuns.
O que aconteceu com a Marina, que começou a corrida eleitoral bem, mas terminou na lanterna?
Se fixou na imaginação do eleitorado brasileiro a ideia de que ela é frágil. E essa polarização raivosa exclui o surgimento de uma força que prega o diálogo e a convergência. Ela foi vitima dessa dinâmica. Foi por isso que fui estudar essa popularização raivosa que tomou conta da sociedade.
Isso significa que, por enquanto, o político que procurar a convergência não terá espaço?
Esses polos têm gás para se manter por certo tempo.
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'Reputação do liberalismo no Brasil pode ser arruinada'. Entrevista com Eduardo Giannetti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU