Da desinformação à corrupção: estratégias do governo Bolsonaro na pandemia. Entrevista especial com Isabela Kalil

Pesquisa aponta que a CPI já revela indícios de que a corrupção pode ser o pano de fundo de toda estratégia negacionista. Mas, segundo ela, uma coisa nunca está separada da outra

Foto: Alan Santos | PR

Por: João Vitor Santos | Edição: João Vitor, Patricia Fachin e Ricardo Machado | 07 Julho 2021

 

É tão ridículo que chega a, de tanto constrangimento, gerar risos. O mundo diz que Cloroquina não funciona e o governo brasileiro insiste que tem de tomar esse e outros remédios do ‘kit covid’. O mundo se une em torno da produção de vacinas e o governo desdenha, debocha e questiona a vacina. E essas são apenas algumas das estratégias do governo Bolsonaro durante a pandemia que flertam com o tosco anedotário de trapalhadas e incompetência. Mas, para a antropóloga Isabela Kalil, é preciso transpor essa percepção e ver que isso não é uma ação de incompetência, mas sim uma estratégia. “Às vezes, as pessoas tendem a ver que o que aconteceu foi apenas uma inaptidão por parte do governo Bolsonaro, mas eu acho que não, percebemos que esse foi um projeto que foi colocado em processo na tentativa de ser implementado”, aponta em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, numa conversa via Zoom.

 

E se foi uma estratégia, afinal, o que se queria de fato? “Hoje, algumas posições, principalmente por conta das investigações da CPI, já não falam em negacionismo, mas em corrupção, em propina, em interesses econômicos. Mas quando analisamos os estudos sobre negacionismo e desinformação, vemos que uma coisa não está separada da outra”, responde Isabela, que com sua equipe se dedicou a analisar por onde orbitaram os discursos do governo nessa pandemia.

 

Ela ainda observa que para levar a cabo esse projeto o discurso foi se movendo. Primeiro, havia a forma clássica do negacionismo, aqui manifestado com a ideia de que a pandemia não existia. Depois, não tendo mais como negar isso, passou-se a apelar para o discurso do medo. “O presidente Bolsonaro investiu em uma dicotomia entre economia e saúde pública, colocando a seguinte posição: enquanto ele estaria defendendo as empresas e a população, os governadores estariam colocando a população em risco ao incentivarem o isolamento social e privarem a população de suas atividades de trabalho. Então, o medo foi o principal afeto mobilizado”, analisa.

 

Assim, o governo vai sempre atualizando seu discurso de desinformação que, como bem observa Isabela, bebe também das velhas teorias conspiratórias. “As teorias conspiratórias são um subtipo de desinformação. A desinformação tem várias características: são fake news, teorias conspiratórias, campanhas de difamação, uso de informações que não são falsas, mas usadas em contextos diferentes como forma de manipular a opinião pública”, detalha.

 

Por fim, a pesquisadora ainda conclui que toda essa estratégia é tributária de um neoliberalismo da extrema direita que, no fim das contas, quer acabar com o Estado para soltar o mercado e se mover livremente com ele. A polêmica da compra das vacinas por empresas privadas que vacinariam seus funcionários, o que chegou a ser cogitado, revela isso. “Num país em que se tem um grau de desigualdade tão grande e um mundo do trabalho em que grande parte da mão de obra não tem carteira assinada, além do nível de desemprego que temos hoje, iria acirrar as desigualdades já existentes”, adverte.

 

Isabela Kalil (Foto: Arquivo pessoal)

Isabela Kalil é doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo - USP. Ainda atuou como visiting scholar no Departamento de Antropologia da Columbia University, na cidade de Nova Iorque. Foi professora do Brazilian Studies Program da Pontifícia Universidade Católica - PUC-SP. Desde 2012, vem atuando como pesquisadora e docente na graduação e pós-graduação da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP). Ainda está vinculada ao pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Vem pesquisando extrema direita e bolsonarismo, com foco em conservadorismo, neoliberalismo e políticas antigênero, protestos, manifestações públicas, ativismo digital e internet. Mais recentemente, tem se focado em investigações sobre ciência e política na pandemia de Covid-19, desinformação, negacionismos e teorias conspiratórias.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – A partir das suas pesquisas, quais diria que foram os principais elementos do governo Bolsonaro que geraram maiores danos durante a pandemia?

Isabela Kalil – Um dos objetivos da pesquisa foi analisar a estratégia em si do governo federal [durante a pandemia], inclusive a de propagar a desinformação.

O presidente Bolsonaro e alguns de seus apoiadores usaram uma estratégia muito próxima à do então presidente Trump. Essa estratégia foi se modificando ao longo do primeiro ano da pandemia, entre março e dezembro, e foram exploradas diferentes narrativas a respeito tanto do vírus – do seu contágio e origem – quanto do enfrentamento da pandemia ou da doença em si. Essas diferentes dimensões vão desde atribuir responsabilidade a outros atores sociais – como atacar a mídia, os governadores, os prefeitos – até a negação da pandemia em si – como expresso na frase do presidente, quando disse que era só uma gripezinha, tal como também fez o ex-presidente Trump –, ou na própria defesa de medicamentos que são, comprovadamente, ineficientes.

Um dos elementos principais dessas diferentes posições e narrativas é a mobilização do medo, que, no caso da pandemia, está relacionado tanto à exploração dos medos da doença e da pandemia em si, quanto às suas consequências sociais. Vou dar um exemplo: um dos medos mobilizado foi o do desemprego e de como as pessoas poderiam ficar vulneráveis socialmente – e de fato ficaram –, inclusive expostas a situações de insegurança alimentar. O presidente Bolsonaro investiu, em termos de discurso, em uma dicotomia entre economia e saúde pública, colocando a seguinte posição: enquanto ele estaria defendendo as empresas e a população, os governadores estariam colocando a população em risco ao incentivarem o isolamento social e privarem a população de suas atividades de trabalho. Então, o medo foi o principal afeto mobilizado.

 

 

IHU On-Line – Como essa narrativa iniciou e como foi se transformando a partir do próprio medo?

Isabela Kalil – No começo da pandemia houve uma posição de minimizar a crise. Mas mesmo posições que tentavam minimizar a pandemia exploravam outros medos que não tinham correlação direta com a pandemia em si.



Primeira narrativa

Duas grandes estruturas narrativas foram mobilizadas de março a dezembro. Uma está relacionada à ideia do vírus em si, chamada pelos apoiadores do presidente de “vírus chinês”. Quando o presidente estava subestimando a pandemia, dizendo que ela era algo menor ou não tão importante, ao mesmo tempo mobilizações de discursos diziam que havia uma conspiração comunista, a qual estava sendo encabeçada pela China, para forjar a existência de uma pandemia, e a Organização Mundial da Saúde - OMS fazia parte desta conspiração. Essa narrativa, apesar de não mobilizar o medo da pandemia em si num primeiro momento, mobilizou medos antigos relacionados ao anticomunismo. Ou seja, o medo está mobilizado mesmo ao se minimizar a pandemia. Era como se esses discursos dissessem o seguinte: não precisamos ter tanto medo da pandemia; temos de ter mais medo da China, da OMS, da Organização das Nações Unidas - ONU e de sua conspiração globalista e comunista, porque querem implementar um regime autoritário no mundo todo. Dessa narrativa, há diferentes variações que vão mudando ao longo do tempo: algumas narrativas afirmavam que não existia pandemia; ao contrário, a dita “pandemia” era uma forma de causar pânico na população, porque querem acabar com o Ocidente, com a família e a sociedade judaico-cristã, e querem utilizar essas narrativas [da existência da pandemia] para implementar um regime autoritário global. Ao mesmo tempo, tinham narrativas dizendo que alguns caixões estavam sendo enterrados com pedras, vazios, ou que o número de mortes noticiado era falso.

Conforme foi ficando mais difícil negar a existência da pandemia em função do número de mortes, a narrativa muda um pouco: passa daquela visão de que não havia uma pandemia, para uma ideia de que era algo menor, e o discurso vai se alterando. Entram as narrativas dizendo que a China criou o vírus em laboratório, de forma deliberada e intencional, como uma forma de colocar em marcha a conspiração globalista e comunista. Ou seja, o processo de negação da gravidade da pandemia foi se alterando e passou-se a dizer que a pandemia era grave, mas foi criada deliberadamente pela China.

 

 

Teorias novas e antigas

Apesar dessas mudanças, as teorias conspiratórias sobre a pandemia combinam teorias conspiratórias que já estavam em circulação, como as teorias sobre o globalismo. Então, a ideia de atacar órgãos multilaterais, a diplomacia, a ONU e a OMS, vai se misturando com teorias que já existem. O fato de a pandemia ter iniciado na China deu a oportunidade de reatualizar teorias conspiratórias muito antigas dos Estados Unidos, que falavam do contexto da Guerra Fria e do pós-11 de setembro. No caso brasileiro, essas teorias conspiratórias têm muita força e estão em circulação entre setores militares. Basta lembrarmos que uma das justificativas para o golpe de 64 foi a de salvar o Brasil de uma ameaça comunista. Ou seja, a justificativa para termos tido 21 anos de regime militar foi a luta contra o regime comunista. Essas teorias conspiratórias vão se combinando e a pandemia é utilizada como uma oportunidade política para colocar em circulação novos medos, como o da própria pandemia, do desemprego, da fome etc., e também reatualizar medos existentes na sociedade.

 

Segunda narrativa

A segunda grande narrativa surgiu quando passamos a ter o desenvolvimento internacional de vacinas. Nesse momento, entra em circulação uma série de teorias conspiratórias sobre as vacinas. A ideia do “vírus chinês” sai um pouco de campo e entram em circulação as ideias sobre a “vacina chinesa” ou “vachina”.

O caso brasileiro tem uma especificidade: como o estado de São Paulo, via Instituto Butantan, estava desenvolvendo a CoronaVac, e a vacina estava sendo feita em parceria com o Instituto Sinovac, isso ampliou a possibilidade de explorar o “lugar da China”. Mas houve uma diferença: foram combinadas as narrativas sobre o anticomunismo com a exploração de narrativas sobre pânicos morais. As teorias sobre as vacinas não foram inventadas durante a pandemia; elas já existiam, porque há uma série de teorias conspiratórias antivacinas. Mas as teorias conspiratórias contra as vacinas anti-Covid-19 acabaram combinando alguns elementos, como a mistura de teorias conspiratórias antigas com teorias conspiratórias novas.

 

 

Tipos de teorias conspiratórias em circulação

Utilizando elementos da antropologia e da linguística, mapeamos quatro tipos de teorias em circulação relacionadas à vacina, embora haja uma gama muito grande de teorias conspiratórias.

O primeiro tipo são as teorias conspiratórias que falam sobre autoritarismo, vigilância e comunismo. Segundo essas teorias, quando uma pessoa é vacinada, é implementado um chip 5G em seu corpo. Uma variação dessa teoria é que a pessoa passa a emitir e receber bluetooth. Outras narrativas dizem que o chip 5G é operado pela Huawei, outras dizem que é operado pela Microsoft, por conta do investimento da Fundação Bill e Melinda Gates no desenvolvimento de vacinas, ou pelo fato de eles serem vistos como parte desta conspiração globalista de capitalistas que querem acabar com o capitalismo e com o Ocidente.

Outras teorias acreditam que não existem vacinas; o que existe é uma espécie de placebo e que a população está sendo enganada. Outros ainda dizem que as vacinas contra Covid-19 existem, elas funcionam, mas é arriscado tomá-las porque vão controlar a mente e o corpo das pessoas vacinadas e saber a sua localização. Dentro das teorias conspiratórias sobre as vacinas, há uma ideia de que o autoritarismo está muito forte, e aí tem um apelo para a discussão sobre comunismo, autoritarismo, vigilância. Ou seja, a pessoa será localizada, saberão o que ela está pensando, vão gravar o que ela está dizendo etc. São teorias que têm um forte apelo para as tecnologias.

 

 

O segundo tipo de teorias conspiratórias sobre vacinas é aquele que trata de sexualidade, mutação genética e experimentos científicos em humanos. Ou seja, pânicos morais relacionados a essas questões. Uma delas diz que se um homem hétero tomar a vacina, ele pode “se tornar gay” ou, como diz o presidente, “começar a falar fino”. As mulheres, por sua vez, podem “começar a falar grosso” ou vai nascer barba [no rosto delas]. São questões que estão no âmbito do pânico moral e que mobilizam a população conservadora no que diz respeito a questões de gênero e sexualidade. Isso não é novo e vem sendo explorado desde a epidemia de HIV/aids. Essa epidemia foi um momento muito fértil para teorias conspiratórias parecidas com essas que vemos hoje: o HIV foi criado em laboratório, é uma forma de exterminar os homossexuais, apenas homossexuais se contaminam com HIV etc. As variações [sobre a vacina de Covid-19] dizem que se uma pessoa gestante tomar a vacina, o feto vai sofrer alguma anomalia. Há ainda a ideia de que o momento de vacinação é uma oportunidade para fazer experimentos em humanos, sem ter comunicado isso à população, e que testariam tecnologias e medicamentos novos para explorar a mutação entre humanos e animais. É daí que vem a fala do presidente de “virar jacaré”. Minha hipótese, inclusive, é a de que ele não iria falar “jacaré”, mas, sim, “chimpanzé”, porque as teorias conspiratórias falam de chimpanzés, mas ele evitou cair no crime de racismo. De todo modo, trata-se da narrativa de que se implementaria o DNA de um animal durante a vacinação na pessoa e ela se tornaria um híbrido entre humano e animal. Não é que as pessoas acreditem que vão virar um animal, mas que podem ter características de um animal, como o nascimento de pelos, por exemplo.

O terceiro tipo está relacionado a doenças. Entre os pânicos mobilizados está aquele dizendo que a vacina vai inocular doenças nas pessoas, como autismo, HIV, câncer, demência etc.

O quarto tipo de teorias da conspiração fala sobre questões relacionadas ao aborto, ao controle populacional e ao genocídio. Segundo essa teoria, as vacinas são feitas de fetos abortados, ou são formas de controle populacional que vão tornar as pessoas estéreis, ou estão relacionadas a genocídios porque, na medida em que a pessoa toma a vacina, seria uma forma de matar uma parte da população. Ou seja, esses pânicos morais vão sendo mobilizados nas teorias conspiratórias antivacinas combinados com pânicos novos e antigos que já estão em circulação na sociedade.

 

 

IHU On-Line – Como entender o que está por trás da propagação dessas teorias conspiratórias neste momento particular que temos vivido e em relação ao governo Bolsonaro?

Isabela Kalil – As teorias conspiratórias são um subtipo de desinformação. A desinformação tem várias características: são fake news, teorias conspiratórias, campanhas de difamação, uso de informações que não são falsas, mas usadas em contextos diferentes como forma de manipular a opinião pública etc.

 

 

Desinformação e ganhos econômicos

Se sairmos um pouco da teoria conspiratória e pensarmos na desinformação, quais são os interesses de propagar a desinformação, quem ganha com isso? Hoje, algumas posições, principalmente por conta das investigações da CPI, já não falam em negacionismo, mas em corrupção, em propina, em interesses econômicos. Mas quando analisamos os estudos sobre negacionismo e desinformação, vemos que uma coisa não está separada da outra. Uma das formas de explicarmos e de entendermos posições de desinformação e de negacionismo está relacionada a ganhos econômicos e financeiros.

Alguns trabalhos mostram como a indústria do tabaco acabou financiando campanhas que estavam ligadas a posições negacionistas para colocar em dúvida os estudos que estavam surgindo sobre os malefícios do cigarro. A indústria do petróleo também fez isso, principalmente em campanhas contra o desenvolvimento de estudos ligados ao aquecimento global e ao meio ambiente. A indústria de pesticidas e agrotóxicos também e, no limite, até a indústria de alimentos fez isso. Então, existem campanhas negacionistas e de desinformação, inclusive, feitas pela indústria de alimentos, que desestimula o aleitamento materno para estimular a compra de ultraprocessados, como a fórmula para alimentar os bebês.

 

 

Qual é a motivação dessas indústrias? Não são apenas interesses ideológicos, até porque não se separam os interesses econômicos dos interesses ideológicos. O mesmo ocorre neste momento que estamos vivendo: não dá para entender o negacionismo como se ele ocorresse apenas quando se tem uma excentricidade ou discursos desconectados da realidade ou fantasiosos. Existem formas de negacionismo que estão relacionadas à desregulação por parte do Estado, seja na área ambiental, de consumo, de uso de pesticidas e agrotóxicos, na área de alimentos, das propagandas etc. Ou seja, tem uma série de desregulações que atendem a interesses econômicos. Além disso, tem uma situação que está relacionada ao fato de que, no campo da comunicação, a desinformação se tornou uma indústria muito lucrativa. Quando existem, como hoje, no campo comunicacional, determinados vídeos no YouTube que são monetizados, ou seja, quanto mais pessoas assistem, mais ganha a pessoa que produziu o vídeo, há a possibilidade de criar vídeos que sejam peças de desinformação, mas que vão causar o medo, vão instigar as pessoas a assistirem. A propagação da desinformação nesse sentido é lucrativa. Então, não é apenas uma coisa ideológica; é preciso distinguir quem produz a desinformação e a coloca em circulação, quem a estimula e quem a consome. Pode ser que pessoas estejam consumindo essas desinformações por estarem com medo, por estarem numa situação de insegurança, por ingenuidade, por dificuldade de lidar com o contexto digital, e outras razões. Mas é preciso separar essas motivações daquelas de quem produz esse material.

 

 

Neoliberalismo e desinformação

Por isso, o artigo traz uma discussão entre neoliberalismo e desinformação, neoliberalismo e as teorias conspiratórias. Algumas pessoas acreditam que o 5G vai controlar a mente delas, mas que o neutralizariam se colocassem na cabeça um chapéu feito de papel alumínio. Quando falamos de negacionismo, às vezes, dá a impressão de que estamos falando só de pessoas que vão colocar o chapéu de alumínio na cabeça, de modo que o Bill Gates não tenha acesso ao que se passa na mente delas. Mas não é só isso. Uma outra forma de negacionismo é quando há o chamado “mercado” definindo posições na área de saúde pública e definindo posições para as quais deveriam, em última instância, ser consultados especialistas e cientistas. Mas, ao contrário, são consultadas pessoas da área do “mercado”, que vão dizer se tem ou não que abrir ou fechar o comércio, fazer ou não lockdown, se tem ou não que aderir ao distanciamento social, baseados em projeções que são da área da economia e que estão atendendo a interesses que não são os de saúde pública, mas que estão relacionados especificamente a questões econômicas. Isso é uma forma de negacionismo.

 

 

IHU On-Line – Podemos, então, afirmar que o negacionismo apareceu lá no começo de forma mais clássica e que depois foi sofisticando suas estratégias?

Isabela Kalil – Exato, é isso mesmo. Tanto é que primeiro temos uma situação de teste. Pode parecer estranho termos uma profusão de teorias ou de narrativas que podem até ser contraditórias entre si, mas há um processo que é o de lançar determinadas coisas na opinião pública e testar qual narrativa vai funcionar melhor. Assim, entre as várias narrativas que estão em circulação, acaba acontecendo uma estratégia, especialmente no caso da extrema direita, de testagem mesmo. Ou seja, coloca-se em circulação uma série de teorias e vai se investir naquela que tiver maior adesão.

No artigo da pesquisa, exploramos o fenômeno que alguns autores chamam de globalização das teorias conspiratórias. Consiste em observar como as teorias conspiratórias vêm se tornando um fenômeno transnacional. É o caso das teorias antivacinas nos Estados Unidos e que depois se tornam transnacionais, e chegam ao caso do Brasil e de diferentes lugares no mundo. Acontece que essas teorias e a desinformação como um todo não vão funcionar da mesma forma em diferentes países, porque existem as necessidades locais, tem as questões históricas, sociais e a própria forma como as instituições e a política estão organizadas. Por exemplo, no Brasil, parte das teorias conspiratórias antivacinas não encontrou um terreno fértil para se espalhar, porque aqui temos o SUS. Assim, tínhamos essa camada longa de proteção de anos de políticas públicas na área de saúde, um histórico de campanhas pró-vacinas – veja a importância de figuras como Zé Gotinha, especialmente para as crianças – e isso fez com que algumas das teorias conspiratórias, embora fortes nos EUA, não tivessem tanta força no caso brasileiro, inclusive porque lá o sistema de saúde é privado.

E, nesse caso da Covid-19, chegou a aparecer uma ideia, lá no começo, embora tenha mudado um pouco depois, de que as empresas só estavam visando ao lucro e as pessoas questionavam: será mesmo que é uma vacina? Ou será que só querem que se pague pelas vacinas? No caso do Brasil, foi ficando cada vez mais claro, ainda antes de se ter as vacinas finalizadas, de que se nós tivéssemos vacinas contra a Covid, elas não seriam pagas. Então, não faz sentido você acreditar que estão querendo lucrar com as pessoas, se as vacinas serão fornecidas de forma gratuita.

Assim, parte das teorias antivacinas no caso da Covid foram aniquiladas pelo nosso histórico do SUS, por sermos referência em vacinação, e, no caso dos EUA, pelo fato de as vacinas terem sido distribuídas também de forma gratuita dentro de uma estrutura estatal, mesmo que a partir de sistemas de parcerias.

 

IHU On-Line – Ouvindo a senhora falar, é possível se conectar àquela possibilidade que foi defendida pelo governo brasileiro de que as vacinas poderiam ser adquiridas pelo setor privado e parte dessas vacinas doadas ao SUS. Isso faz sentido, dentro dessa ideia de ‘lucrar’ com as vacinas? Afinal, a CPI da Pandemia tem apontado não só um caminho de negacionismo, mas também de corrupção.

Isabela Kalil – Pode fazer essa relação sim. Antes da publicação de nosso artigo, escrevi um texto sobre esse projeto de lei para aquisição de vacinas contra Covid de forma privada, destacando como, no caso do Brasil, isso poderia representar uma questão de apartheid sanitário. Ou seja, a aquisição de vacinas privadas, no contexto e no modo como estava em discussão – e que tem a ver com questões como a defesa para importar vacinas sem terem sido aprovadas pela Anvisa –, pode ser vista como uma forma de negacionismo.

Isso porque o negacionismo tem a ver com questões que visam, em última instância, a um enfraquecimento da regulação por parte dos Estados. Como a Anvisa é um órgão regulatório, descredibilizar a Anvisa e oferecer a possibilidade de comprar vacinas sem o seu aval acaba esvaziando o órgão regulatório e atendendo a interesses de órgãos privados específicos, além de, claro, colocar a população brasileira em risco. Aliás, diferentes coisas poderiam acontecer, como corrermos o risco de termos vacinas não seguras e, na melhor das hipóteses, tendo apenas vacinas aprovadas pela Anvisa, poderíamos chegar a uma situação de acirramento das desigualdades, com a ideia de que as empresas pudessem vacinar seus funcionários. Isso, num país em que se tem um grau de desigualdade tão grande e um mundo do trabalho em que grande parte da mão de obra não tem carteira assinada, além do nível de desemprego que temos hoje, iria acirrar as desigualdades já existentes no Brasil.

Além disso, do ponto de vista sanitário, isso não faz sentido. Para a vacina funcionar, não pode ser tomada como uma saída individual, mas deve ser um pacto coletivo. Isso não adianta nem para quem tomou a vacina, pois se imunizarmos apenas uma parte da população, não há efetividade. Por isso, nesse caso, considero a compra privada de vacinas como uma forma de negacionismo, e isso tem a ver com aquela lógica que comentei de que o mercado não deve ter regulação e que deve haver a substituição de órgãos regulatórios, de cientistas, pelas decisões do mercado.

 

 

IHU On-Line – Em sua pesquisa, a senhora faz todo um mapeamento discursivo. Esse mapa revela uma estratégia desse governo? E qual seria essa ação que faz uso do negacionismo e das teorias conspiratórias?

Isabela Kalil – Para responder eu vou fazer referência ao trabalho da Deisy Ventura e de sua equipe, publicado pela Conectas, em que analisaram vasto material mostrando que, no caso do Brasil, tivemos um projeto intencional de contar com o maior número possível de pessoas contaminadas na população. Nesse caso, o projeto era de que, acreditando na chamada imunidade de rebanho por contágio, a pandemia iria acabar porque se iria adquirir essa imunidade coletivamente. Ou seja, isso não foi um descuido, foi algo deliberado.

Considero que foi mesmo um projeto para colocar toda a população em risco porque, se considerarmos que, a essa altura do campeonato, já se sabia o percentual de pessoas que poderiam morrer nesse processo, significa que o cálculo de mortes era o esperado. Assim, é importante perceber isso como projeto; não foi acaso e nem falta de gestão, mas intencional. Às vezes, as pessoas tendem a ver que o que aconteceu foi apenas uma inaptidão por parte do governo Bolsonaro, mas quando se vê um trabalho como o da Deisy Ventura, percebemos que esse foi um projeto que foi colocado em processo na tentativa de ser implementado.

Recentemente, vi no noticiário que o Brasil, mesmo entrando no consórcio Covax Facility, pediu um número mínimo de vacinas. Ou seja, não queria as vacinas. Não foi uma questão de descuido ou falta de investimento público, de falta de estratégia ou logística, foi uma escolha deliberada.

 

IHU On-Line – Muitas vezes a própria imprensa coloca a figura do ex-ministro Eduardo Pazuello como o de um grande incompetente. Mas, pelo que a senhora coloca, seria o contrário. Talvez, ele fosse realmente muito competente em seu projeto. Correto?

Isabela Kalil – Tanto que Pazuello, quando saiu do Ministério da Saúde, disse: “missão cumprida”. Então, foi lá e cumpriu a sua missão da maneira como se esperava. Esse é o ponto.

 

 

IHU On-Line – Voltando à sua pesquisa. Nela, a senhora trabalha a categoria de medo social. Gostaria que detalhasse esse conceito e explicasse por que, nesses tempos que temos vivido, o medo social parece ter fácil adesão.

Isabela Kalil – Pensar o medo como um tipo de afeto político, em que a resposta para diminuir o medo social não estaria apenas em levar informação para a população e, pela via da racionalidade, explicar que as vacinas são seguras, pois isso tudo é uma parte do processo. Do ponto de vista da literatura que estamos abordando e mobilizando para discutir o mundo social, o que gera o medo social é a situação de insegurança que está ligada a questões econômicas, conectando diretamente com o neoliberalismo. Trata-se da ideia de que é preciso a redução de investimentos por parte do Estado nas áreas de educação, de saúde, de campanhas de vacinação (que está sendo praticamente nula no Brasil). Há uma lógica em que a palavra final mais forte está ligada a um lobby do privado versus a Anvisa. Portanto, cria-se uma situação de desemprego, em que o Auxílio Emergencial surgiu por muita pressão popular, muita luta, mas, se fosse pelo governo, não haveria esse auxílio. Então, o Estado não teria adotado uma política pública para conseguir amparar esta situação. Quando estamos diante de cenários como este, em que as pessoas têm medo de perder o emprego, não têm seguridade social, em que há uma situação de insegurança política e econômica, isso faz com que as pessoas tenham medo e passem a ser mais suscetíveis a teorias conspiratórias, ficando mais expostas a essas situações.

Existe uma linha da psicologia nos estudos de teorias conspiratórias em que se questiona sobre as razões do porquê algumas pessoas estão mais propensas que outras a acreditar nesses discursos. As respostas estão muito ligadas a questões pessoais e individuais – e isso é importante e relevante –, mas o tipo de literatura que estamos mobilizando fala mais de fenômenos sociais e de quando são colocadas em prática políticas de austeridade e como isso gera uma situação de insegurança, medo social, fazendo com que as pessoas fiquem mais suscetíveis a estas teorias. Umas das formas, não a única, de combater a desinformação passa por ter mais transparência na informação, e no nosso caso teria sido bom se tivéssemos mais peças publicitárias informativas para falar sobre a pandemia, os riscos, como já fizemos em outros momentos da história do Brasil, com a epidemia de HIV/aids. Além disso, é importante pensarmos como combater essa situação de insegurança social a partir de políticas públicas, de investimentos por parte do Estado em áreas de atendimento à população que são estratégicas. Não é só no campo da racionalidade que vamos convencer as pessoas, pois muitas estão sem trabalhar, não têm como sustentar suas famílias e, pelo sim pelo não, vão se submeter a tomar medicamentos sem eficácia comprovada para poderem ir trabalhar e fazer suas coisas.

O Brasil não distribui máscaras, não fez campanha de informação e o Auxílio Emergencial foi agora reduzido a valores inadequados às necessidades das pessoas: esses são aspectos que nos ajudam a entender por que as teorias conspiratórias estão em circulação. Antes de falarmos que é estranho as pessoas não entenderem esses discursos fantasiosos, é preciso compreender que parte da população vai ficando em uma situação de insegurança social.

 

 

IHU On-Line – Tudo isso tem a ver com o elo que vocês fazem do neoliberalismo, porque vai tirando o Estado e as pessoas ficam cada vez mais fragilizadas...

Isabela Kalil – Bolsonaro foi se desresponsabilizando pela pandemia e responsabilizando cada vez mais as famílias. A frase de Bolsonaro “cada família que cuide do seu idoso” diz, no fundo, que nós, o Estado, não estamos nos responsabilizando com uma rede de segurança para as pessoas idosas, as pessoas doentes, as crianças, as famílias, as mulheres, os vulneráveis. Isso recai muito fortemente sobre essa população vulnerabilizada que precisa dar conta de sobreviver e de cuidar dos doentes, passando por uma série de marcadores de desigualdade, dentre eles a questão da raça.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Isabela Kalil – Para o estudo que fizemos utilizamos uma autora chamada Ruth Wodak, que explica que essas teorias conspiratórias acabam ganhando “credibilidade” a partir de alguns elementos, dentre eles o uso da autoridade, quando, por exemplo, um médico vai no WhatsApp e diz que trabalha em um hospital e que, por isso, sabe o que está falando. Há o elemento da “moral” que está ligada a todas essas coisas que falei, isto é, os pânicos morais, quando levamos em conta a fala da Mayra Pinheiro na CPI [da Pandemia], que comenta que tinha um pênis na frente do prédio da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz, discurso que está ligado à moralidade. O outro elemento está ligado à racionalização, a supostos estudos relacionados a determinadas teorias conspiratórias. O último elemento é o que a autora chama de “mitopoiesis”, em que a teoria conspiratória e as narrativas relacionadas ao medo vão se juntando e criando grandes estruturas narrativas. Por exemplo, as muitas narrativas sobre as vacinas vão se colando umas às outras e criam uma estrutura. O que analisamos em nossa pesquisa mais detalhadamente é esse quarto elemento.

 

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