09 Junho 2021
"Um dos maiores erros que a igreja pode cometer, e talvez esteja cometendo na questão dos abusos, é considerá-lo um problema exclusivamente prático e relativo ao comportamento impróprio de uma minoria muito clara a ser condenada. É a história da maçã podre a ser isolada para salvar a grande cesta de belas e saborosas maçãs", escreve Gennaro Pagano, presbítero diocesano de Pozzuoli, psicólogo e psicoterapeuta, em artigo publicado por Settimana News, 08-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Viajando de carro para dar uma conferência sobre os abusos na igreja e sobre a proteção de menores e pessoas vulneráveis aos alunos de um curso de relações de ajuda, recebo a mensagem de um amigo com a carta de demissão de Reinhard Marx. Um gesto forte, dramático, de alto valor simbólico e, para além de qualquer conspiração motivacional, sintomático de um mal-estar que já não pode ser gerido com paliativos, mas requer um cuidado profundo capaz de incidir sobre a integridade do corpo eclesial.
No material preparado para a aula, tinha anotado uma expressão muito próxima aos termos usados pelo purpurado bávaro, que depois chamou a atenção dos alunos: “O sistema eclesial, tal como está configurado atualmente, é um fator de risco para comportamentos abusivos”.
Percebo que é uma afirmação dura e que poderia suscitar perplexidade se dita casualmente por um simples padre, mas o conhecimento da temática e as considerações éticas e científicas que possuo por ser psicólogo e psicoterapeuta levam-me a pronunciá-la sem hesitação. E é por isso que não me surpreende em nada que Marx fale de “fracasso institucional e de sistema "(...) que exige mudanças e reforma da Igreja".
Um dos maiores erros que a igreja pode cometer, e talvez esteja cometendo na questão dos abusos, é considerá-lo um problema exclusivamente prático e relativo ao comportamento impróprio de uma minoria muito clara a ser condenada. É a história da maçã podre a ser isolada para salvar a grande cesta de belas e saborosas maçãs. Mas essa atitude em uma visão sistêmica (e não por acaso que o Cardeal Marx fala de sistema!) não tem razão de ser porque a maçã podre é expressão e sintoma de uma cesta inteira de maçãs mal conservadas e, portanto, em risco de se tornar podre por inteiro. Por isso, para realmente evitar outras decomposições, não basta jogar fora a maçã estragada, mas intervir nas regras de conservação, alterando-as, adaptando-as, reformando-as.
Esta parece-me a mensagem mais importante - e absolutamente compartilhável - contida na carta ao Papa divulgada ontem. Sem uma reforma séria da igreja, não é possível dizer que o problema dos abusos sexuais está realmente sendo enfrentado e o problema dos abusos sexuais é simplesmente a ponta de um enorme iceberg que envolve diferentes questões que correm o risco de afetar o motivo pelo qual a igreja nasce e a grande beleza que contém: anunciar o Evangelho e contribuir para a construção do Reino.
Seriam numerosas as questões a serem tratadas, mas acredito que pelo menos três carecem de uma explicação clara, capaz de propor perguntas honestas e inevitáveis: o clericalismo, a sinodalidade, a autorreferencialidade.
O Papa Francisco desde o início de seu serviço petrino denunciou a doença do clericalismo de todas as formas possíveis, indicando suas características, explicando sua falta de fundamento evangélica, mostrando os corretos caminhos espirituais para sair dela e preveni-la. Mas tudo isso é suficiente? É realmente concebível que a orientação e a práxis subjetiva – das quais obviamente não se pode prescindir e que é o coração de todo caminho de conversão - sejam suficientes para deter a doença?
Em minha opinião, a Igreja está correndo o risco de enquadrar bem a doença, mas de ignorar (talvez por temor) o contexto ambiental que a produziu, os pressupostos que lhe permitiram criar raízes. Neste sentido, não é necessário compreender e aprofundar a atual teologia do sacramento da ordem para eliminar na sua raiz os pressupostos doutrinais e canônicos que correm o risco de continuar a fazer crer aos presbíteros que pertencem a uma classe "escolhida", "separada", a quem funções e poderes são conferidos não para os outros, mas sobre os outros? O sentido do poder sagrado é e sempre será um húmus fértil para os abusos de poder, de consciência, econômicos e sexuais.
Uma maneira saudável de superar toda forma de clericalismo poderia, sem dúvida, ser a sinodalidade que, ao levar todo o povo de Deus a caminhar junto, tem em si o potencial de evitar qualquer forma de degeneração dos poderes e dos ministérios.
Mas, com franqueza, é preciso constatar que a palavra sinodalidade, apesar de estar entre as mais utilizadas nas últimas décadas eclesiais, tornou-se uma vitrine vazia em que esta joia foi reduzida a pura orientação espiritual ou a uma marca por trás da qual escondem-se as costumeiras lógicas de poder, para as quais quem se senta numa cadeira sagrada pré-embala caminhos e metas pedindo só depois ao resto do rebanho para chegar juntos, tornando-o - como dizem na minha terra - “tolo e feliz”.
A sinodalidade entre bispos e presbíteros, assim como entre presbíteros e leigos, é, de fato, deixada à discricionariedade, à fé e à inteligência dos ministros, porque o sistema canônico torna todo confronto meramente consultivo e nunca vinculante em relação às escolhas concretas. Um bispo pode convocar mil reuniões, consultas, workshops e depois fazer exatamente o contrário. O pároco de uma paróquia também. Sem uma reforma das leis canônicas que regulam a práxis eclesial, a sinodalidade está destinada a permanecer uma palavra vazia nas mãos do clero e a se tornar em práxis concreta somente quando for pronunciada por homens honestos e em sintonia com o Evangelho.
Precisamente o Evangelho, turvado pela autorreferencialidade eclesial, parece ser o grande ausente quando se fala de reforma e também aqui partilho a motivação do gesto clamoroso que, segundo o interessado, visa “demonstrar que em primeiro lugar não está o cargo (a instituição? ndr), mas a missão do Evangelho”.
Rios de tinta dão vida a milhares de documentos e comunicações que se traduzem num falar contínuo sem alterar a práxis nem um milímetro. A sensação é que as resistências dentro da comunidade eclesial surgem cada vez mais do temor de perder seguranças seculares, paradigmas certeiros e, não raramente, privilégios narcísicos cada vez menos em sintonia com a compreensão do Evangelho e o serviço integral ao homem integral.
A Igreja deveria pensar-se como uma realidade frágil e sempre precária, capaz de se deixar questionar com parrésia e lealdade sempre que as exigências históricas do Evangelho o exigirem. Mas quando a conservação do existente e a preservação do sistema institucional estão na base de suas escolhas, seu caminho será sempre idólatra e não a serviço do Deus vivente do homem vivente.
Será uma religião perfeita, mas sem fé. Uma instituição firme, mas sem Espírito. E os abusos continuarão a se repetir sob várias formas, porque a febre, quando a doença não é tratada, está destinada a subir novamente.
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Três palavras sobre a carta do Cardeal Marx - Instituto Humanitas Unisinos - IHU