01 Junho 2021
"O de que estamos necessitados, uma e outra vez, é o retorno impetuoso das línguas de fogo, do o vento forte e do grande barulho – um choque de realidade que venha nos alertar para o que está ocorrendo ao nosso redor e na frente do nariz, coisas que, míopes, vesgos ou cegos como vimos parecendo, nem sempre conseguimos enxergar", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM.
Um voo de pássaro pelas páginas bíblicas demonstra que a presença de Deus, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, quase sempre está associada à luz, à brisa suave e ao silêncio. Por que então, na narrativa do Pentecostes, extraída do livro dos Atos dos Apóstolos (2, 1-11), o Espírito de Deus desce em forma de línguas de fogo, em meio a um vento forte e com grande barulho? Talvez os membros do núcleo central daquilo que viria a se tornar a Igreja primitiva, com receio dos judeus e hermeticamente fechados, como diz o quarto evangelista (Jo 20, 19), precisassem ser sacudidos e despertados da letargia! Se assim for, mais do que nunca a Igreja Católica (e quem sabe pudéssemos falar também daquelas ligadas ao CONIC) está novamente necessitada de um novo Pentecostes: fogo ventania e barulho para sacudir o torpor e a apatia, despertar do comodismo e do desencanto.
A verdade é que, após as vozes proféticas sob a ditadura militar e as atividades febris entre as décadas de 1980-2000, os diversos setores da Igreja passam hoje por uma espécie de estranha sonolência. Certo, esta última deve ser entendida no contexto mais amplo da lentidão que marca o passo de numerosos movimentos sociais, entidades, iniciativas populares e organizações não governamentais. Tampouco podem ser esquecidas as insistentes recomendações de isolamento social e quarentena, por parte das autoridades sanitárias, devido ao risco de contágio pelo novo coronavírus. A pandemia da Covid-19, efetivamente, nos últimos 15 meses, imprimiu um selo trágico e indelével na história da humanidade, de cada país e de cada pessoa. Descontadas tais motivações, entretanto, nem tudo fica explicado.
O que fez silenciar boa parte da Igreja Católica? Ou melhor, o que a fez falar mais baixo, tíbia e tímida, num sopro sussurrado ao pé de ouvido? Praticamente silenciosa ou silenciada, sua voz, documentos ou declarações mal conseguem romper a bolha eclesiástica e/ou eclesial e, somente com enormes dificuldades, se fazer ouvir por algumas fatias minguadas da população. Não fosse a voz macia e ao mesmo tempo portentosa do Papa Francisco, poder-se-ia afirmar que a Igreja pouco ou nada tem a dizer aos milhões de fiéis que se estendem por todo planeta. Evidente que o contexto geral da secularização, esta também globalizada, contribui poderosamente para a inibição dos representantes religiosos de todos os credos.
Restringindo-nos ao caso brasileiro, o que mais intriga é o distanciamento da Igreja atual quanto ao movimento profético do Antigo Testamento, por um lado, e, por outro, quanto às conclusões das Assembleias do Episcopado da América Latina e do Caribe, de maneira particular aquela de Medellín, Colômbia (1968), e aquela de Puebla, México (1979). Vejamos mais de perto, porém, dois documentos de nosso país: “Eu ouvi o clamor do meu povo” e “Y-Juca-Pirama – o índio: aquele que deve morrer”, ambos proféticos e ambos lançados em 1973, sob o mandato do então presidente Emilio Garrastazu Médici, um dos piores momentos da ditadura militar. O primeiro documento, foi endossado pelos bispos de todo Nordeste; o segundo, teve como signatários um grupo de bispos e de missionários. Neles, não é difícil respirar o oxigênio vivo da “santa ira de Deus” frente às injustiças cometidas contra o pobre, o indefeso e o excluído. Faz-nos falta hoje esse fermento bíblico e evangélico: a indignação sagrada e destemida diante dos opressores, ao lado do amor e da misericórdia para com os oprimidos.
A “opção preferencial pelos pobres”, verdadeira coluna vertebral de toda a ação missionária; as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), lugar e prática sócio-transformadora em meio a uma sociedade cada vez mais complexa conflituosa; a Teologia da Libertação (TdL), análise teórica hermenêutico-reflexiva, orientadora dessa mesma práxis de incisão sócio-política; os Institutos e Congregações Religiosas, de caráter marcadamente apostólicos, presentes e inseridos nos porões e periferias mais longínquas; e as Pastorais Sociais voltadas especificamente para determinadas situações e/ou categorias onde a vida se encontrava mais ameaçada – toda essa visão parece ter hibernado a partir do novo milênio.
A sacristia revelou-se mais cômoda, menos perturbadora, ao mesmo tempo que o ritualismo litúrgico e formal passou a oferecer maior segurança. Além disso, o sopro do Espírito Santo, se de um lado despertou para um fervor místico inovador, de outro deslizou sub-repticiamente para formas de fanatismo insuspeitáveis, em que prevalece uma espiritualidade aérea, intimista, com mais asas do que pés. A renovação espiritual é necessária, não há dúvida, e em não poucos casos vivificou grupos e comunidades meio que adormecidos, porém, jamais podem ser ignorados os grandes desafios do contexto socioeconômico e político-cultural onde atuamos.
Daí a necessidade de um novo Pentecostes. Não um espiritualismo inócuo e estéril, que se limita em grande parte das vezes à esfera do privado, chegando quando muito ao ambiente familiar ou ao comunitarismo. O de que estamos necessitados, uma e outra vez, é o retorno impetuoso das línguas de fogo, do o vento forte e do grande barulho – um choque de realidade que venha nos alertar para o que está ocorrendo ao nosso redor e na frente do nariz, coisas que, míopes, vesgos ou cegos como vimos parecendo, nem sempre conseguimos enxergar. O organismo vivo da Igreja como um todo, bem como os demais organismos dela constitutivos e subsidiários, pedem sangue novo e quente injetado nas veias de membros anestesiados e debilitados por uma crise que parece não ter fim, agora agravada pela pandemia do coronavírus; oxigênio fresco, límpido e primaveril que possa reavivar entidades e instituições que caminham para o outono.
Frente à crise, ao caos e à insegurança, quantos se refugiam no berço da sacristia ou, pior ainda, nas fortalezas de instituições seculares! Por outro lado, quantas vezes a emissão dos votos de “pobreza, castidade e obediência” pouco mais representam do que um passaporte para um estilo de vida medianamente aburguesado! E então, com partes do corpo necrosadas pela falta de ar puro e cristalino, pessoas e organismos definham inexoravelmente. Temem avançar com força e teimosia para a encruzilhada, os olhos embaçados por um pranto infantil e que nada resolve. O ato de enxugar as lágrimas, levantar a cabeça e seguir adiante – ou como diz a canção popular, “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima” – se lhes apresenta como demasiado árduo e empenhativo. Pior, mantêm uma série de argumentos convincentes: melhor a inércia, melhor reservar as energias; os esforços por mudanças profundas costumam levar a becos sem saída! Permanecem, assim, atolados no saudosismo e na lamentação inconsequente.
Somente o impacto do fogo, do vento e do barulho será capaz de empurrar a Igreja e suas várias instâncias para a encruzilhada. Esta última representa um passo adiante para além do choro e do pântano. Uma superação dos doces embalos que nos acomodam no berço esplêndido de um tipo de bem-estar egoísta e egocêntrico. No espaço aberto da encruzilhada, os horizontes se bifurcam ou se trifurcam. Impõem-se escolhas novas, audazes e imperativas. Semelhante cruzamento das muitas “veredas” em meio ao “grande sertão” – para utilizar a linguagem poética de Guimarães Rosa – requer boa dose de maturidade para decidir e assumir as opções tomadas. Escolhas e opções que, a um só tempo, chamam e enviam para o terreno minado da fronteira. Nesta, quase sempre, a existência do pobre e excluído está por um fio. Porém, se a Boa Nova de Jesus Cristo mira a “vida em plenitude”, mais ainda, todas as formas de vida, a biodiversidade – o insistente apelo do Papa Francisco pela “Igreja em saída” constitui a única via possível.
Na narrativa do Pentecostes, vemos que os discípulos medrosos, pelo batismo do fogo, do vento e do barulho, acabam se convertendo em missionários ardorosos. Diferentemente do episódio da torre de Babel narrada pelo livro do Gênesis (11,1-9), e em contraste com ele, os seguidores de Jesus se fazem entender por toda a multidão, mesmo que esta seja formada por pessoas de diferentes povos e etnias. Dali o núcleo embrionário da Igreja primitiva se expande em círculos espirais, crescendo centrifugamente desde o Oriente Médio até as nações distantes da África e da Europa. Nos dias de hoje, mais do que um crescimento extensivo (direcionado a territórios novos) requer-se um crescimento intensivo (dirigido ao aprofundamento da fé e da esperança daqueles que, de alguma forma, conhecem já a Boa Nova do Evangelho).
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Pentecostes: fogo, vento e barulho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU