06 Mai 2021
“A Eucaristia não deve nunca ser instrumentalizada para um fim político, não importa o quão relevante seja. Não obstante, é exatamente isso que está sendo feito nos esforços para excluir líderes políticos católicos que se opõem aos ensinos da Igreja sobre o aborto e a lei civil. A Eucaristia está sendo utilizada e implementada como uma ferramenta de guerra política. Isso não pode acontecer”, escreve Robert W. McElroy, bispo da Diocese de San Diego, EUA, em artigo publicado por America, 05-05-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Nos seis meses da eleição de 2020, um crescente movimento emergiu na Igreja dos EUA que convocava os bispos da nossa nação a excluir o presidente Joseph R. Biden e outros políticos católicos da Eucaristia. Aqueles que apoiam essa ação resumem o argumento em três partes: o presidente apoia posições sobre aborto que claramente se afastam do ensinamento da Igreja sobre a extrema gravidade moral da questão; a longa tradição da Igreja exige dignidade pessoal para receber a Eucaristia; e a clara rejeição persistente do ensino católico extingue esse valor.
É entendível como vários líderes católicos chegam a este momento. É assim nos quase 50 anos desde a decisão da Suprema Corte no caso “Roe v. Wade”. Embora o progresso na redução de abortos tenha ocorrido em algumas jurisdições e o número de abortos tenha se reduzido, os Estados Unidos ainda rejeitam as estruturas legais e políticas que podem dar proteção ao nascituro. A eleição do presidente Biden e o Congresso de maioria Democrata é sinal que, fora das cortes, o progresso federal sobre essa questão moral central do aborto não ocorrerá no futuro imediato. Essa é uma imensa tristeza para todos os bispos de nosso país e para a Igreja como um todo, e líderes da Igreja estão fervorosamente procurando uma forma para avançar na proteção dos nascituros.
A proposta de excluir os católicos favoráveis à liberdade de escolha (pró-escolha) da Eucaristia é um passo errado. Isso trará consequências tremendamente destrutivas – não pelo que se diz do aborto, mas pelo que se diz da Eucaristia.
O catecismo da Igreja Católica ensina: “A comunhão de vida com Deus e a unidade do povo de Deus, pelas quais a Igreja é o que é, são significados e realizados pela Eucaristia. Nela se encontra o cume, ao mesmo tempo, da ação pela qual Deus, em Cristo, santifica o mundo, e do culto que no Espírito Santo os homens prestam a Cristo e, por Ele, ao Pai”. Devido a essa natureza e identidade sagrada, a Eucaristia não deve nunca ser instrumentalizada para um fim político, não importa o quão relevante seja. Não obstante, é exatamente isso que está sendo feito nos esforços para excluir líderes políticos católicos que se opõem aos ensinos da Igreja sobre o aborto e a lei civil. A Eucaristia está sendo utilizada e implementada como uma ferramenta de guerra política. Isso não pode acontecer.
Os danos substanciais que ocorrerão na comunidade eucarística em decorrência dessa instrumentalização serão amplos e profundos. “Lumen Gentium” proclama:
“Na Última Ceia, na noite em que foi traído, nosso Salvador instituiu o sacrifício eucarístico de seu Corpo e Sangue. Fez isso para perpetuar o sacrifício da cruz através dos tempos até que ele voltasse, e assim confiar à sua amada Esposa, a Igreja, um memorial de sua morte e ressurreição: um sacramento de amor, um sinal de unidade, um vínculo de caridade, um banquete pascal” .
Uma política nacional de excluir da Eucaristia os líderes políticos pró-escolha constituirá um ataque a essa unidade, a essa caridade. Metade dos católicos nos Estados Unidos verá esta ação como partidária por natureza, e ela trará as terríveis divisões partidárias que atormentaram nossa nação no próprio ato de adoração que Deus pretende causar e expressar nossa unidade.
Os defensores da proposta de adotar uma política nacional de excluir da Eucaristia os líderes políticos pró-escolha precisam de uma justificativa para apoiar essa ação sem precedentes. Eles propuseram que está na teologia da dignidade receber a Eucaristia que existe desde o início da vida da Igreja. Enraizada na exortação de São Paulo de não comer ou beber indignamente à mesa do Senhor, a teologia tradicional da dignidade eucarística é simultaneamente uma exortação, um reconhecimento da fraqueza humana e uma disciplina. Esta teologia tradicional é uma exortação porque nos lembra que a Eucaristia constitui a recepção do próprio Senhor e, portanto, todos os crentes que se aproximam do altar devem em reverência tentar conformar suas vidas mais plenamente à pessoa de Jesus Cristo. Em segundo lugar, a teologia tradicional da dignidade incorpora em sua apresentação da Eucaristia o reconhecimento de que a falha humana é profunda e ampla e que a graça e a misericórdia de Deus abundam. Finalmente, a teologia do merecimento na Igreja ensina que os católicos conscientes do pecado grave devem receber o perdão no sacramento da penitência antes de receber a Eucaristia.
A teologia do mérito particular, que os proponentes de uma política nacional de exclusão eucarística aumentaram dramaticamente, diminui a ênfase nos primeiros dois elementos da teologia tradicional e concentra-se no terceiro elemento: disciplina. Assim, seria melhor ser rotulado de “uma teologia da indignidade”.
Duas dimensões específicas dessa teologia da indignidade merecem um exame particular.
O primeiro é a noção extremamente expansiva do que desencadeia a indignidade de receber a Eucaristia: qualquer católico que rejeita continuamente um ensino significativo da Igreja é automaticamente indigno de receber a Eucaristia. Os defensores propõem que, porque o presidente Biden rejeita a obrigação moral de buscar leis que protejam o nascituro, ele deve ser excluído da Eucaristia. Pois o valor requer união integral com todos os principais ensinamentos da fé católica.
É obrigação moral dos católicos abraçar todos os ensinamentos da Igreja em sua totalidade. Mas o fracasso em cumprir essa obrigação em sua plenitude não pode ser a medida de dignidade eucarística em uma Igreja de pecadores.
Quantos líderes políticos católicos de cada partido poderiam passar nesse teste? E por que qualquer noção de indignidade eucarística na teologia da Igreja deve se aplicar não apenas aos líderes políticos, mas a todos os católicos, quantos dos fiéis serão elegíveis para a Eucaristia por este critério? É obrigação moral dos católicos abraçar todos os ensinamentos da Igreja em sua totalidade. Mas o fracasso em cumprir essa obrigação em sua plenitude não pode ser a medida de dignidade eucarística em uma Igreja de pecadores e questionadores, que deve enfrentar intensas pressões e complexidades em suas vidas diárias.
Uma segunda dimensão problemática dessa teologia da indignidade é que, embora seja expansiva em sua noção de indignidade, ela aplica sanções de forma muito seletiva e inconsistente. As propostas para excluir da Eucaristia os líderes políticos católicos pró-escolha têm se concentrado no aborto, e às vezes na eutanásia, como questões imperativas para as quais os bispos devem adotar uma política nacional de exclusão eucarística. A lógica deles é que o aborto e a eutanásia são males particularmente graves, são intrinsecamente maus e envolvem ameaças à vida humana.
Mas por que o racismo não tem sido incluído no chamado para sanções eucarísticas contra líderes políticos? Racismo foi enumerado como um mal intrínseco por João Paulo II em “Veritatis Splendor” e pelo Concílio Vaticano II. Nossa própria conferência de bispos proclamou que “o racismo não é meramente um pecado entre muitos, é um mal radical que divide a família humana e nega a nova criação de um mundo redimido”. Sobre o racismo ser um pecado que ameaça a vida humana, quem duvida disso deveria falar com as famílias de George Floyd, Breonna Taylor e Trayvon Martin.
O racismo está violentando o coração da nossa nação com intensa fúria neste momento, e mesmo assim o mal intrínseco do racismo não fundamenta a exclusão eucarística nas propostas que foram levadas este ano para nossa conferência dos bispos para ação. Será impossível convencer um largo número de católicos em nossa nação de que esta omissão não surge do desejo de limitar o impacto da exclusão aos líderes públicos democratas e do desejo de evitar desviar o foco do aborto.
O cardeal Joseph Ratzinger, em sua “Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política”, alertou os bispos contra esse caminho. “A fé cristã é uma unidade integral e, portanto, é incoerente isolar algum elemento particular em detrimento de toda a doutrina católica.” A Conferência dos Bispos Católicos dos EUA dará um grande golpe contra essa unidade integral se aprovar uma política nacional de exclusão eucarística voltada para o aborto, mas não contra o racismo.
O ensino católico tradicional sobre a dignidade de receber a Eucaristia é importante na vida da Igreja. Mas não é a peça central da compreensão da Igreja sobre o convite de Cristo para receber a Eucaristia. Como o Papa Francisco deixou bem claro na “Evangelii Gaudium”, a Eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos, mas um poderoso remédio e alimento para os fracos” (n. 47). A emergente teologia estadunidense da indignidade é um desafio direto a esse ensino e representa grandes perigos para a fé, espiritualidade e prática católica. Constitui um afastamento significativo da ênfase do Concílio Vaticano II.
Na decisão que a Conferência dos Bispos terá de enfrentar nos próximos meses está uma escolha monumental: A identidade central do convite de Cristo à Eucaristia é um sinal de dignidade pessoal ou um chamado abençoado do Deus misericordioso? Em um momento em que estamos emergindo de uma pandemia e buscando reconstruir a comunidade eucarística, seria particularmente doloroso abraçar e enfatizar uma teologia de indignidade e exclusão, em vez de uma teologia que enfatize o convite implacável de Cristo a todos. E isso prejudicaria o tremendo trabalho que nossos padres e líderes leigos estão fazendo ao enfatizar a importância de cada católico retornar à participação plena e ativa na liturgia de Deus.
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A Eucaristia está sendo utilizada para fins políticos. Artigo de dom Robert McElroy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU