04 Mai 2021
“Embora a dinâmica possa ser familiar, as marcas de 100 dias de Biden e Draghi capturam a ironia bastante nítida de que enquanto os bispos nos EUA continuam a desafiar um presidente católico aparentemente obediente sobre o aborto, a liderança da Igreja no próprio quintal do papa é basicamente muda em relação às políticas de aborto, ou a falta dela, do igualmente obediente primeiro-ministro católico deste país”, escreve John Allen Jr., jornalista estadunidense, em artigo publicado por Crux, 30-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ontem o presidente dos EUA Joe Biden cruzou a marca de 100 dias no cargo com uma mensagem para a sessão de inauguração do Congresso, em meio a uma enxurrada de análises e avaliações na data que Frank D. Roosevelt tornou mítica.
Enquanto isso na Itália, o novo primeiro-ministro do país, Mario Draghi, chegará também a sua marca de 100 dias em duas semanas, e os colegas jornalistas já oferecem avaliações e relatórios de sua performance.
Para registro, a comparação não inteiramente entre maçãs e laranjas. Uma análise recente do Huffington Post descreve Draghi, que outrora já salvara a Europa como chefe do Banco Central, durante a crise de 2008, como novo “top player” da Europa, substituindo Angela Merkel da Alemanha, que se prepara para se retirar em setembro, como o líder de facto da coalizão europeia. Então nós estamos falando sobre as duas mais decisivas figuras da atual aliança Atlântica.
Em ambos os casos, a torrente de comentários apresenta contribuições abundantes de vozes católicas. A dinâmica é surpreendentemente semelhante, no sentido de que tanto nos Estados Unidos quanto na Itália, a política partidária parece condicionar a reação católica em um grau significativo.
Aqui está a principal diferença: nos EUA, a reação católica a Biden inevitavelmente começa e termina com o aborto; na Itália, não apenas o aborto não é proeminente, para todos os efeitos ele é invisível.
Na verdade, não apenas a maioria dos católicos italianos passam pouco tempo discutindo sobre a posição de Draghi sobre o aborto, eu me arrisco a dizer que a maioria nem sabe se o primeiro-ministro de 73 anos tem alguma.
Claro, dificilmente é uma observação nova que a cultura católica nos dois lados do Atlântico é altamente distinta em relação ao aborto e à causa pró-vida. No catolicismo estadunidense, o aborto é o teste político da fidelidade católica por excelência. Como disse o arcebispo Jose Gomez, de Los Angeles, no comunicado que divulgou para a posse de Biden, o aborto para os bispos dos Estados Unidos é a “prioridade preeminente” (embora enfatize que “preeminente” não significa “apenas”).
No momento, relatos sugerem que a Comissão de Doutrina dos bispos dos Estados Unidos está preparando um documento conclamando Biden e outros políticos católicos apoiadores da livre-escolha a não se apresentarem para a comunhão quando participarem da missa.
No catolicismo da Europa Ocidental, essa abordagem linha-dura nunca prevaleceu. Mesmo entre os prelados e eruditos europeus mais conservadores, outras questões servem como marcadores mais fortes dos valores católicos tradicionais, especialmente a imigração e a preservação das raízes cristãs do continente (a Polônia é uma exceção a esse respeito, uma nação membro da UE travada em debates ferozes sobre o aborto, mas a Polônia é diferente da Europa Ocidental em muitos sentidos).
Embora a dinâmica possa ser familiar, as marcas de 100 dias de Biden e Draghi capturam a ironia bastante nítida de que enquanto os bispos nos EUA continuam a desafiar um presidente católico aparentemente obediente sobre o aborto, a liderança da Igreja no próprio quintal do papa é basicamente muda em relação às políticas de aborto, ou a falta dela, do igualmente obediente primeiro-ministro católico deste país.
Por que isso?
Por um lado, basicamente não há instância de apresentação aqui na Itália. Não havia política da Cidade do México para Draghi sustentar ou rescindir, nenhuma dúvida sobre se os planos de seguro deveriam cobrir abortos, e nenhum movimento político com amplo apoio para expandir ou restringir os direitos ao aborto ao qual um primeiro-ministro seria obrigado a responder.
É revelador que, quando o cardeal Gualtiero Bassetti de Perugia, presidente da conferência episcopal italiana, divulgou sua declaração para o juramento de Draghi em fevereiro, a palavra “aborto” nunca apareceu.
Não é que os bispos italianos não sejam pró-vida – uma semana antes de Draghi assumir, eles emitiram uma declaração para marcar o “Dia Nacional pela Vida”, uma comemoração que remonta a 1978, quando o aborto se tornou legal aqui, insistindo que uma compreensão apropriada da liberdade não inclui o aborto e a eutanásia.
Acontece que, em 1981, os italianos votaram em dois referendos altamente controversos sobre o aborto – um buscando proibi-lo totalmente, o outro para eliminar quaisquer restrições. Ambos perderam esmagadoramente e, desde então, o aborto foi considerado uma questão basicamente resolvida.
Além desses detalhes, há também uma diferença cultural básica em ação. Em geral, os italianos não ficam tão preocupados com a lei quanto os estadunidenses, porque eles não presumem que as leis necessariamente descrevem o que todos têm que fazer o tempo todo. Eles veem as leis como diretrizes, descrições de um ideal social, que pode ou não se aplicar a um determinado conjunto de circunstâncias, e presumem que um certo grau de flexibilidade é (ou, pelo menos, deveria ser) embutido no sistema.
Como resultado, os estadunidenses recebem propostas para adotar ou revogar leis com frenesi; enquanto os italianos são mais inclinados a dar de ombros. Eles tendem a se concentrar mais em ações concretas, não em legislação.
Seja qual for a explicação, o contraste é notável e pode levar à incompreensão mútua. Alguns católicos estadunidenses presumem que o toque suave europeu é o resultado da acomodação ao secularismo e de um senso enfraquecido de identidade católica; alguns católicos europeus veem o rigor católico americano como o produto de uma cultura puritana e calvinista, que pensa em preto e branco em vez de tons complexos de cinza.
Além disso, ativistas de ambos os lados do debate católico exploram a diferença. Os católicos progressistas nos Estados Unidos frequentemente apelam à Europa para fazer os prelados americanos parecerem míopes ou simplistas, enquanto os católicos culturalmente conservadores na Europa citam os Estados para fazer seus próprios líderes parecerem irresponsáveis ou covardes. Ambos são caricaturas injustas, mas persistem mesmo assim.
Eu não tenho certeza sobre isso... mas talvez seja um fato culturalmente determinado, como a diferença entre a comida italiana nos EUA e a que se come na Itália.
Mas, como eu por meio das reações contrastantes para a nova liderança em duas nações onde o catolicismo teve uma pegada significativa, ambas as quais eu considero minha casa, é difícil não desejar que nós possamos pelo menos chegar ao estágio de conversa respeitosa sobre isso. Talvez, como os anciões diriam, a virtude neste caso está em qualquer lugar no meio.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Biden e Draghi: primeiros 100 dias, dois diferentes diálogos católicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU