05 Junho 2020
“As estruturas injustas não mudarão enquanto você não puder sentir a dor daquele joelho sobre o seu próprio pescoço e, de repente, achar difícil respirar; até lá, nada vai mudar.”
A reflexão é do jesuíta estadunidense Mario Powell, SJ, diretor da Brooklyn Jesuit Prep, escola de Ensino Fundamental em Nova York, nos EUA.
O artigo foi publicado em America, 03-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Até quando, Senhor?” Até a injustiça prevalecer, e os pobres forem levados ao desespero?
George Floyd.
Ahmaud Arbery.
Breonna Taylor.
Oscar Grant.
“Até quando, Senhor, me esquecerás para sempre? Até quando me ocultarás o teu rosto?”
Eric Garner.
Trayvon Martin.
Tamir Rice.
Emmett Till.
Esses são nomes que conhecemos. E essas são palavras do Salmo 13. Depois da morte de mais um homem negro, elas também são as minhas palavras. O salmista está zangado, questionando por que Deus não agiu. No entanto, nos dias passados, o cheiro do pecado enchia as narinas de Deus. Deus cheirava, sentia. Assim como na antiguidade, novamente hoje.
Como um padre jesuíta negro de 38 anos, esse é um cheiro familiar para mim. Ele fede. É impossível de evitar o cheiro e as reações que ele provoca nos negros estadunidenses. É uma fruta estranha e amarga.
O vídeo que permitiu que o mundo testemunhasse o assassinato de George Floyd também fede. Eu passei por períodos de paralisia, descrença, raiva, dormência, medo e desespero desde que assisti àqueles nove minutos agonizantes.
Sinto-me paralisado, porque estou longe da comunidade em que eu normalmente confio para processar essa imundície. Estou incrédulo que a morte de George Floyd seja mais um corpo negro que foi brutalizado e assassinado na frente dos meus olhos. Estou com raiva das declarações banais e adocicadas apresentadas por muitos, incluindo muitas lideranças católicas. Fiquei entorpecido pelo grande número desses eventos.
Mas há algo novo para mim nessa experiência. É o medo que eu sinto não só por mim ou pelos negros estadunidenses em geral, mas também pelas 80 crianças negras que são estudantes do Ensino Fundamental e que me pediram para liderar: a Brooklyn Jesuit Prep.
Tenho medo do que este verão [no hemisfério Norte] reserva para elas e para outras crianças negras do centro do Brooklyn. Tenho medo de que, sem empregos ou acampamentos de verão, e diante do policiamento excessivo, mais jovens negros terão encontros com a polícia – encontros que muitas vezes não terminam bem para as pessoas que se parecem com eles.
Devo admitir que houve momentos em que achei difícil conter o desespero. Diante daqueles nove minutos, as palavras que dizem a essas crianças negras e pardas o quanto eu as amo, o quanto elas são valorizadas, parecem não adiantar. Mas não é só que elas parecem não adiantar; é que essas crianças já são amadas; elas já sabem que são amadas como filhas de Deus.
Sim, todos precisamos nos lembrar disso, mas, diante daqueles nove minutos, elas não precisam apenas saber que são amadas. Elas não estão vazias de amor. Elas não são vítimas. Não são elas que precisam de uma mensagem, mas sim o nosso mundo, o nosso país e os nossos colaboradores. Talvez você também precise.
Como jesuíta negro e padre, eu vivo principalmente em um mundo branco. O que significa que o meu fardo, a minha responsabilidade e a minha tarefa são conversar sobre eventos como esse com os meus irmãos e irmãs brancos.
Essas conversas acontecem após cada morte negra sensacionalizada. Às vezes, meus amigos e colaboradores querem apenas conversar. Às vezes, eles ligam para escutar. Geralmente, essas conversas incluem um desejo de entender melhor ou de participar de alguma forma.
Mas devo admitir que muitas vezes eu evito essas conversas – e não porque essas pessoas não são importantes para mim ou porque essas questões não precisem ser discutidas. Eu as evito porque são desgastantes. E são desgastantes porque eu descobri que, enquanto os brancos podem se envolver com essas questões à vontade, discuti-las pessoalmente ou nas mídias sociais e depois se retirar novamente para suas preocupações diárias, eu não posso fazer isso.
Os estudantes que eu amo e pelos quais sou responsável não podem fazer isso. Os EUA negros não podem fazer isso. Estou exausto porque não podemos nos afastar desse ciclo doloroso.
E estou cansado disso. A mudança requer mudança.
É claro, isso significa fazer mudanças no nosso sistema injusto: temos de mudar as estruturas que impedem que os negros votem. A educação abaixo do padrão deve ser melhorada. Precisamos mudar leis injustas que produzem desigualdade econômica. O sistema de justiça criminal deve ser reformado. Tudo isso continua sendo verdade.
Mas como essa mudança ocorre? Simplificando, essas estruturas não mudarão enquanto os EUA brancos – ou seja, os estadunidenses brancos individuais – não se aproximarem das pessoas negras e pardas. Enquanto você não sentir o fedor do pecado que nós sentimos, enquanto o cheiro daquela fruta estranha encha as suas narinas e não permita que você inspire as doces fragrâncias do mundo; enquanto você não puder ver naqueles nove minutos um homem negro como irmão e não se afastar do seu sofrimento; enquanto você não puder sentir a dor daquele joelho sobre o seu próprio pescoço e, de repente, achar difícil respirar na frente da sua tela do computador; até lá, nada vai mudar.
Essas estruturas não mudarão enquanto aquele corpo não tiver um nome e uma relação com você.
E deixe-me ser claro: isso é o cristianismo. Essa partilha da experiência dos outros é o que significa ser um corpo em Cristo. Eu não estou inventando isso. Aqui estão as palavras do Papa Francisco: “A doutrina cristã é viva”, insiste ele. Ela “sabe inquietar, sabe animar”. Isso significa que o cristianismo tem carne, respiração, um rosto. Nas palavras do papa, o cristianismo “tem um corpo que se move e se desenvolve, tem a carne macia: a doutrina cristã se chama Jesus Cristo”.
Também se chama George Floyd e Sandra Bland e Trayvon Martin.
É da carne macia desses corpos negros que os EUA devem se aproximar. É Jesus na carne macia das crianças negras e pardas da Brooklyn Jesuit Prep e das escolas de todo o país que este país deve conhecer.
“Até quando, Senhor? Até quando na minha alma experimentarei aflições, tristeza no coração a toda hora? Até quando sobre mim triunfará o inimigo?”
O Salmo 13 é o clamor dos negros estadunidenses. Temos gritado essa pergunta há séculos. Mas não podemos mais gritar sozinhos. Enquanto você não se aproximar do nosso sofrimento, enquanto você não encher os seus olhos e ouvidos, as suas mentes e corações, enquanto você não subir na cruz com os negros estadunidenses, não haverá nenhuma Páscoa para os EUA.
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“Até quando, Senhor?” O clamor das pessoas negras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU