16 Dezembro 2020
"Bitcoin reproduz as lógicas neoliberais. Mas tecnologia que o sustenta, não. Cresce interesse em usá-la para superar a dinâmica alienante dos mercados, em processos cruciais como a criação de moeda ou geração descentralizada de energia", escreve Thomas Redshaw, em artigo publicado por Red Pepper e reproduzido por Outras Palavras, 14-12-2020. A tradução é de Simone Paz.
O Bitcoin e a sua tecnologia de blockchain tornaram-se sinônimo de hype entre os entusiastas da tecnologia. Portanto, não foi tão surpreendente ler em um livro publicado recentemente pela Polity Press que “o Bitcoin é o sonho de Marx tornado realidade”. No entanto, há algo de incomum nessa afirmação
Desde seu surgimento, há mais de uma década, o Bitcoin tem sido amplamente ignorado pela esquerda. Ao permitir que usuários da Internet fizessem transações fora do alcance dos órgãos reguladores, o Bitcoin rapidamente se estabeleceu como um ícone para os liberais de direita, já que, para eles, a moeda representa a base tecnológica que possibilita a existência de mercados verdadeiramente “livres”.
Além disso, a maioria dos experimentos com a tecnologia blockchain deu-se no setor financeiro, onde inovações como “contratos inteligentes” são concebidas com o objetivo de automatizar vários processos administrativos. Consequentemente, tem havido uma tendência a rejeitar o blockchain entre acadêmicos e ativistas de esquerda.
Entretanto, nos últimos dois anos, o interesse na tecnologia vem crescendo entre grupos de socialistas que pedem que a esquerda a leve mais a sério. Uma publicação recente que busca ampliar esse apelo é o Criptocomunismo, de Mark Alizart.
Para dar uma definição básica, a tecnologia de Blockchain é algo como um banco de dados compartilhado, onde a responsabilidade de registrar e verificar os dados é dividida por uma rede de nós independentes. Isso o diferencia dos bancos de dados regulares que geralmente são executados em um servidor central e ou por uma autoridade central.
No entanto, para que isso funcione deve-se alcançar um consenso entre esses nós independentes. Eles precisam ter a capacidade de concordar sobre quais bits de dados são válidos e quais não. É essa parte da tecnologia que torna o blockchain político, argumenta Alizart. Ao oferecer uma maneira nova e segura de os dados serem revisados e aceitos por cada nó participante, a tecnologia é inerentemente democrática.
Com base nisso, Alizart faz duas afirmações em seu livro. Primeiro, enquanto ele concorda com os liberais sobre o blockchain fornecer um meio para minar e contornar a autoridade, ele argumenta que a tecnologia também fornece uma base para a construção de novos tipos de instituições fora do capitalismo: plataformas de propriedade coletiva que facilitam as necessidades administrativas das comunidades
Em segundo lugar, Alizart descreve como as experiências feitas até agora com o socialismo — e também com capitalismo — geraram organizações que governam a economia sem participação democrática e com responsabilização limitada. Alizart afirma que o blockchain apresenta uma saída para esse déficit democrático, permitindo que as comunidades construam suas próprias instituições monetárias emissoras de moeda, administradas coletivamente. Portanto, ele convida a esquerda a usar o blockchain com o intuito de “apreender os meios de produção monetária”.
Os argumentos de Alizart são convincentes e repletos de ideias sobre como seria uma sociedade pós-capitalista com poder digital. No entanto, para ser essencialmente um manifesto comunista do século XXI, há uma surpreendente falta de análise materialista. Isso é significativo porque, na realidade, a tecnologia de blockchain é construída sobre competição destrutiva, e com fins lucrativos
Na maioria das redes de blockchain, incluindo o Bitcoin, ao invés de termos informações sendo processadas em um servidor central, milhares de operadores de hardware chamados de “mineradores” competem entre si para processar informações. Eles fazem isso na esperança de serem recompensados em unidades de criptomoeda como o Bitcoin. Para maximizar suas chances de receber essa recompensa e obter lucro, eles devem colocar o máximo de energia computacional possível na rede
Esta é a razão pela qual o Bitcoin, sozinho, usa a mesma quantidade de energia ao ano que países inteiros. Além disso, esse recurso competitivo na rede do Bitcoin levou a grandes concentrações de poder entre os grupos que possuem os hardwares mais eficientes. Esses aspectos do blockchain, bem como o trabalho envolvido em sua mineração, não são abordados por Alizart e deveríamos frisar que os socialistas precisam pensar com cuidado antes de abraçar o Bitcoin. Da mesma forma, há uma carência de exemplos do mundo real que demonstrem o potencial do blockchain que Alizart defende com tanta veemência. Mas essas críticas não necessariamente refutam os seus argumentos sobre blockchain de forma geral; e além disso, alguns exemplos reais existem.
Um relatório publicado recentemente pelo EU Science Hub reúne vários projetos que buscam aproveitar o potencial da tecnologia de blockchain para o bem público. Blockchains, aqui articulados como “tecnologias de contabilidade digital”, estão sendo desenvolvidos em toda a Europa como infraestruturas administradas pela comunidade, que abordam questões em torno da privacidade, descentralização, propriedade de dados e moeda local. Os exemplos incluem uma plataforma de código aberto que permite aos usuários controlar seus próprios dados, chamada Holochain; uma infraestrutura para facilitar cadeias de suprimentos globais mais transparentes, justas e confiáveis chamada Origintrail; e uma plataforma descentralizada para armazenamento e compartilhamento de dados de energia relacionados ao consumo e à produção, chamada Pylon. Em cada um desses casos, a tecnologia de blockchain é reinventada e reprojetada para servir ao bem público, de maneiras que enfrentem o consumo de energia e os demais problemas de propriedade que hoje afetam o Bitcoin.
Em face de tudo isso, será que a esquerda deveria se preocupar com o blockchain? Yanis Varoufakis abordou essa questão recentemente, com um texto em seu blog: “Por que o Bitcoin não é um aliado socialista”. Varoufakis defende que, nas condições atuais, o Bitcoin não pode ser usado como ferramenta para transcender o capitalismo, mas afirma que “algo como o Bitcoin caracterizará os sistemas monetários em um mundo futuro, livre de bancos privados e de mercados de ações”. Como essa inovação será e quão significativa ela irá se provar, são questões que só podem ser respondidas por meio de experimentos em design e desenvolvimento. Se o desenvolvimento do blockchain for deixado para liberais e capitalistas financeiros, é claro que ele continuará o curso de seus caminhos atuais. Mas esses não são os únicos caminhos possíveis. Para garantir que esses caminhos alternativos prosperem, a esquerda precisa levar o blockchain a sério.
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Poderia o blockchain servir ao Pós-Capitalismo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU