15 Outubro 2020
“É tempo para Francisco colocar-se em solidariedade com os haitianos. Quando o papa nomeou o primeiro cardeal haitiano, em 2014, Chibly Langlois, foi proclamado como um marco dos ideais reformistas do pontífice para o país. O Haiti precisa de mais. Os haitianos precisam ouvir o Papa abordar a violência e a insegurança de frente”, escreve Valerie Jean-Charles, estrategista de comunicação e editora da revista Woy em Washington D.C., em artigo publicado por National Catholic Reporter, 13-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Alguma coisa precisa mudar aqui”.
Se a Igreja Católica Haitiana fosse escolher um grito de guerra, certamente seria esse acima. Proclamado por João Paulo II em 1983 em visita ao país, o sentimento permanece como um mantra e um chamado à ação para o clero haitiano.
No tempo daquela visita, uma longa ditadura há décadas destruía o país, graças à família Duvalier (Papa Doc e Baby Doc). Campanhas de terror criaram um ambiente de medo, instabilidade e insegurança. Quando o pontífice pousou em Porto Príncipe, é seguro dizer que ele encontrou um país que em breve colapsaria pelo peso do totalitarismo ou a ascensão de uma revolta para reivindicar alguma liberdade ilusória.
Décadas depois, o país está, mais uma vez, tentando se libertar de si, do forte controle de outro governo com aspirações autoritárias. Uma força policial militarizada, gangues agindo em conspiração com o governo, um crescente aumento no número de massacres nas comunidades de trabalhadores, um sistema escolar caótico e um alto número de morte de jornalistas e acadêmicos constitucionais de respeito mais uma vez ameaçam levar o Haiti ao abismo.
É a vez do papa Francisco dar atenção para o sofrimento que está acontecendo no Haiti.
Uma coisa fascinante sobre aspirantes a ditadores é que eles raramente, se não sempre, comportam-se da mesma forma que outros de sua classe. Desde a ascensão à presidência, em 2017, Jovenel Moïse tem se comportado similarmente ao presidente dos EUA Donald Trump. Enquanto fecha os olhos para os massacres liderados por gangues no bairro de Bel-Air, ignorando os limites postos pela constituição haitiana ou expandindo os limites do mandato presidencial, Moïse demonstrou que não deseja ver o Haiti atravessando um processo democratizante.
No entanto, em sua violenta busca pela ampliação do poder executivo, Moïse não consegue enfrentar um movimento de resistência liderado por ativistas, líderes de organizações civis e clérigos.
No início deste mês, Pierre-André Dumas, Haiti, o presidente da conferência dos bispos, revelou que um funcionário do governo o abordou com um suborno bastante perturbador: designar rapidamente um funcionário da Igreja para o conselho eleitoral do presidente haitiano e, em troca, o governo permitiria aos bispos nomear uma pessoa de sua escolha para a Santa Sé.
Essa revelação veio poucas semanas antes de Moïse, curvando-se à pressão do governo dos Estados Unidos, montou uma comissão eleitoral composta principalmente de desconhecidos que agora têm a tarefa de organizar eleições legislativas e presidenciais e preparar um referendo constitucional – uma ação que muitos juristas e humanos ativistas de direitos humanos consideram inconstitucionais.
Várias instituições que normalmente estariam representadas na comissão se recusaram a participar desta rodada por acreditarem, com razão, que um governo vinculado a fundos governamentais roubados, brutalidade policial e gangues fortalecidas não pode supervisionar eleições legítimas.
No mesmo sermão em que revelou esse suborno, dom Pierre-André Dumas afirmou: “Muita pressão está sendo exercida sobre bispos, padres e freiras... para que não falem a verdade. É como se todos quisessem usar a igreja para se banhar em... mentiras”.
E o bispo não é o único a se sentir assim.
O governo continua reprimindo os dissidentes, usando uma força policial militarizada para atacar protestos pacíficos e enviando funcionários do governo com homens armados ao Tribunal de Contas, uma das últimas instituições independentes do país.
E no mês passado, o chefe da Ordem dos Advogados de Porto Príncipe e notável estudioso constitucional Monferrier Dorval foi assassinado em frente de sua própria casa, poucas horas depois de ter chamado a atenção para a necessidade de uma reforma constitucional. O assassinato sem sentido galvanizou não apenas os haitianos no país e no exterior, mas também a comunidade jurídica internacional, pois as ordens de advogados em todo o mundo exigiram uma investigação completa sobre o assunto.
Essa abominável tentativa de silenciar os críticos mostra justamente o quão precária e dramática a situação se tornou. Mesmo se o resto da comunidade internacional continuar sustentando essa administração, o Vaticano deveria não se alinhar a eles. Esse seria um completo desprezo da exibição destemida da Igreja haitiana e o legado da franqueza posto por João Paulo II.
Em uma entrevista de 2018, Francisco argumento que, “o Senhor promete descanso e libertação para todos os oprimidos no mundo, mas ele necessita fazer-nos sua promessa efetiva”. Essa promessa não pode ser cumprida por quem está olhando para um barril sozinho. Aqueles que são privilegiados o suficiente para não ter que passar pelas turbulências diárias provocadas por um homem forte também devem fazer sua parte.
Bispos, padres, freiras e a federação protestante não devem deixar de se cuidaram diante do crescimento da tirania. Clérigos como Dumas precisam mostrar coragem em um tempo em que o medo está ameaçando estrangular muitos outros.
É tempo para Francisco colocar-se em solidariedade com eles. Quando o papa nomeou o primeiro cardeal haitiano, em 2014, Chibly Langlois, foi proclamado como um marco dos ideais reformistas do pontífice para o país. O Haiti precisa de mais. Os haitianos precisam ouvir o Papa abordar a violência e a insegurança de frente. Devemos ouvi-lo denunciar a corrupção, o massacre de inocentes, a negligência de crianças. Devemos ouvi-lo clamar por reformas, por um governo com consciência. Qualquer coisa menos seria uma falha completa de responsabilidade para com os milhões de haitianos que chamam a Igreja Católica de seu lar espiritual.
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O papa João Paulo II foi um aliado dos haitianos, Francisco também deveria ser - Instituto Humanitas Unisinos - IHU