07 Novembro 2019
"Estamos em uma situação realmente de bloqueio total do país e onde o movimento popular demonstrou uma força, uma continuidade, uma determinação admirável e que não se rendeu frente à propaganda oficial massiva, nem frente à repressão", explica o economista haitiano Camille Chalmers, que é secretário da Plataforma Haitiana pela Defesa de um Desenvolvimento Alternativo.
A entrevista é de María Torrellas, publicada por Resumen Latinoamericano, 05-11-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
No Encontro Anti-Imperialista, em Cuba, nos encontramos com Camille Chalmers, dirigente haitiano, que nos ajudou a compreender a situação que vive o Haiti em uma insurreição permanente desde o mês de junho, exigindo a renúncia do seu presidente corrupto, e que vá para sempre.
Nos últimos dias, como está avançando essa nova frente, essa alternativa política, de esquerda, à situação?
A mobilização se mantém muito forte no Haiti, pode se dizer que está se intensificando. Essas últimas seis semanas tivemos manifestações impressionantes, milhões de pessoas nas ruas. Pela primeira vez essas marchas ganharam também as províncias, porque antes a força era mais concentrada em Porto Príncipe e Cabo Haitiano, porém agora em quase todas as grandes cidades do país houve manifestações amplas, multitudinárias e com a participação de muitíssimos setores. Assim, pode-se dizer, que neste momento temos um governo totalmente isolado politicamente, um governo que não governa, que não tem Primeiro-Ministro legal, não tem governo legal, não tem orçamento, não pode arrecadar impostos.
É um país ingovernável.
Sim, estamos em uma situação realmente de bloqueio total do país e onde o movimento popular demonstrou uma força, uma continuidade, uma determinação admirável e que não se rendeu frente à propaganda oficial massiva, nem frente à repressão. Porque uma das respostas do governo de Moïse é a repressão contra o povo, por exemplo, nestas últimas semanas estamos falando de 51 pessoas mortas por balas. Uma repressão sobretudo direcionada contra os bairros populares, por exemplo, em novembro passado, massacraram, em um só dia, 78 pessoas, em um bairro popular, La Saline. Então, a resposta do governo é repressão e mais repressão.
É um governo que tem o apoio de algumas famílias da oligarquia e dos Estados Unidos, o governo Trump quer manter esse governo que já não tem nenhum sentido, nem sequer para os setores dominantes, porque a economia já está toda paralisada, o que explica que alguns setores, como o empresariado, tenham se juntado ao movimento. Porém, Trump quer mantê-lo porque, antes de tudo, há uma aliança ideológica, é um governo de extrema direita, que está posto ali para frear o movimento popular e seu projeto de mudança do Estado, como se diz no Haiti.
Trump está recompensando Jovenel Moïse por sua traição a Maduro. Haiti votou três vezes contra o governo de Maduro e o escândalo de votar o TIAR, que abre a possibilidade de uma intervenção militar na Venezuela. Isso é uma coisa que somou mais raiva e indignação à população, que não aceita isso, nem do ponto de vista moral, nem do político, pois é uma traição totalmente inaceitável.
Me chamava muito a atenção como além da esfera política, que nunca se vê, senadores e senadoras, que cada vez que quiseram colocar outra autoridade ou passar o poder a um próximo, o povo e os senadores e senadoras destruíram a Câmara. Isso é uma coisa inédita.
Sim, realmente, porque a legislatura está aliada totalmente com Jovenel Moïse, é uma Legislatura controlada em 95% pelo governo e que foi eleita em condições inaceitáveis, com uma participação ridícula. O presidente atual, por exemplo, foi eleito com 7% do eleitorado, assim não tem nenhuma legitimidade. Nesse sentido, o Parlamento também, a maioria dos deputados e senadores se comportaram de maneira totalmente inaceitável, participando em todos os processos de roubo dos bens públicos, de desvio de fundos do petrocaribe, e a população quer que saiam junto com Jovenel Moïse.
Porém, temos alguns legisladores, senadores e deputados, que se mantiveram firmes com a resistência, inclusive desataram todo um processo de impeachment, que não se concluiu, porque Jovenel Moïse tem a maioria no Parlamento. Porém, pelo menos fizeram uma tribuna, onde sistematizaram todos os crimes de Moïse, toda a traição à Constituição, todos os roubos dos quais participou e foi um elemento muito forte na conscientização popular e que radicalizou muito a população frente a esse governo.
As mobilizações multitudinárias são autoconvocadas?
Nesse sentido, desde julho de 2018 temos uma recomposição da mobilização, que começou com o mecanismo de autoconvocação, isto é, que não há nenhum setor que possa dizer que são os pais dessa mobilização, que lhes pertence. É uma autoconvocação onde o povo se levanta sobre um governo corrupto, ilegal, ilegítimo, lacaio dos Estados Unidos. Esse levante é realmente um elemento ético muito importante. Também está relacionado com a deterioração das condições de vida da população, porque temos uma desvalorização da moeda nacional, que perdeu 60% de seu valor em dois anos, temos uma inflação importante, e este governo se recusa a aumentar o salário mínimo. O que quer dizer que temos uma situação de massificação da miséria e da fome. A FAO calcula que 49% da população não consegue se alimentar. É uma situação trágica, extrema. Nesse sentido, a população também rechaça isso e exige a saída dos programas de neoliberalismo, das políticas econômicas antipovo, antinacionais, que criaram a situação atual.
No início falavas dos setores populares, essa aliança que está se armando, há meses, em que consiste?
Desde o final de 2018, cinco partidos de esquerda decidiram fazer uma plataforma de trabalho comum com duas perspectivas. Primeiro, uma perspectiva de construção de uma frente de esquerda revolucionária, e uma perspectiva de ter incidência direta sobre a conjuntura política que estamos vivendo. Nesse sentido, federações campesinas convocaram a Frente Patriótica, de 27 a 30 de agosto, e é impressionante ver que houve uma resposta entusiasmada da população, foram mais de 70 organizações presentes, fizemos um trabalho de três dias, de análise de conjuntura internacional e local.
A plataforma desembocou em acordos muito importantes, que são basicamente a saída de Jovenel Moïse, do Parlamento, do PHTK, que é esse partido de extrema direita, e um período de transição que permite fazer trabalhos de mudança profunda nas estruturas políticas do país e três aspectos importantes no mandato desse governo de transição.
Primeiro, realizar os julgamentos contra os ladrões que roubaram o dinheiro do povo; segundo, convocar uma Constituinte; e terceiro, realizar mudanças substanciais no sistema eleitoral porque agora está totalmente controlado pelos Estados Unidos.
Queremos que seja uma transição soberana, é necessário ter garantias de que não seja controlada pelos Estados Unidos e que seja uma transição de ruptura, que abra uma perspectiva realmente de mudanças radicais a nível da economia e do sistema político. Nesse sentido, o Fórum Patriótico desembocou em um comitê de seguimento formado por 11 organizações, aí estão representados dois membros do movimento sindical, uma pessoa do movimento feminista, que agrupa todos os movimentos feministas progressistas, uma representante do movimento de jovens de bairros, que participam muito nas mobilizações, e quatro partidos políticos, dois de esquerda revolucionária e dois social-democratas. Assim, é um comitê que representa um ventilador grande, de sensibilidades políticas, e que tem a capacidade de influenciar diretamente no jogo que está sendo feito agora, e que permite que a esquerda tenha a possibilidade de influenciar a orientação que será definida para o governo de transição.
Nessa semana há um processo de encontro, discussão, elaboração, da arquitetura institucional dessa transição onde participa o Fórum Patriótico, com outros setores, como o Democrático e Popular, e outros.
Então há três Frentes que estão totalmente de acordo com essa plataforma mínima que adotou o Fórum Patriótico, em agosto, e é muito interessante que seja uma iniciativa desde o movimento popular, desde as forças da esquerda. O Fórum Patriótico resultou em um discurso, uma análise, totalmente com uma visão de esquerda, muito crítica, inclusive tivemos a participação de redes internacionais solidárias muito interessantes. Isso realmente é uma novidade, porque desde a repressão que se desatou contra o movimento popular em 1986, haviam praticamente eliminado as forças de esquerda do jogo político eleitoral, a mesma dinâmica de exclusão do povo também eliminou os partidos políticos de esquerda.
Estamos em um novo momento, de acumulação, de redefinição, e essa crise é importante porque o imperialismo não tem reposição.
Como é possível que um povo que leva milhões às ruas, sem medo de ninguém, não tenha derrubado Moïse?
A explicação básica é que o povo haitiano não tem poder, porque se tivesse, certamente, esse governo teria caído há muito tempo. O segundo, é que os Estados Unidos mantêm controle estratégico sobre a polícia, alguns elementos do sistema financeiro, e agora não tem uma solução viável para repor, porque as personalidades de direita que poderiam exercer esse papel estão implicadas nos escândalos do petrocaribe. Estão todos ameaçados pelo julgamento petrocaribe e não têm legitimidade alguma para realmente dar a cara e apresentar solução. Por isso, os Estados Unidos estão tardando tanto para aceitar uma mudança de regime.
Porém, estamos em uma situação na qual, nas próximas semanas, teremos a renúncia de Jovenel Moïse, porque é uma situação extrema, em que o país não funciona, inclusive os empresários começam a protestar porque seus lucros estão ameaçados.
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Haiti. Rumo a uma plataforma mínima para um governo de transição. Entrevista com Camille Chalmers - Instituto Humanitas Unisinos - IHU