29 Setembro 2011
Texto lido pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano na biblioteca Nacional na mesa-debate intitulada "Haiti e a resposta latinoamericana" da qual participaram além de Galeano, Camille Chalmers e Jorge Coscia. O texto foi publicado pelo Página/12, 28-09-11. A tradução é do Cepat.
Eis o texto.
Consulte você qualquer enciclopédia. Pergunte qual foi o primeiro país livre na América. Receberá sempre a mesma resposta: Os Estados Unidos. Mas os Estados Unidos declararam sua independência quando eram uma nação com seiscentos e cinquenta mil escravos que continuaram sendo escravos durante um século e, em sua primeira Constituição, estabeleceram que um negro equivalia a três quintos de uma pessoa.
E se a qualquer enciclopédia perguntasse você qual foi o primeiro país que aboliu a escravidão, receberá sempre a mesma resposta: Inglaterra. Mas o primeiro país que aboliu a escravidão não foi a Inglaterra, mas sim o Haiti que continua, entretanto, expiando o pecado de sua dignidade.
Os negros escravos do Haiti derrotaram o glorioso exército de Napoleão Bonaparte e a Europa nunca perdou essa humilhação. Haiti pagou a França, durante um século e meio, uma indenização gigantesca pela culpa de sua liberdade, mas nem isso conseguiu. Aquela insolência negra continua doendo aos brancos amos do mundo.
De tudo isso, sabemos pouco ou nada.
Haiti é um país invisível.
Apenas se cobriu de fama quando o terremoto do ano 2010 matou mais de duzentos mil haitianos.
A tragédia fez que o país ocupasse, fugazmente, o primeiro plano dos meios de comunicação.
Haiti não é conhecido pelo talento de seus artistas, magos do ferro-velho capazes de transformar lixo em beleza, nem por suas razões históricas na guerra contra escravidão e opressão colonial.
Vale a pena repertir uma vez mais, para que os surdos escutem: Haiti foi o país fundador da independência da América e o primeiro que derrotou a escravidão no mundo.
Merece muito mais do que a notoriedade de suas desgraças.
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Atualmente, os exércitos de vários países, incluindo o meu, continuam ocupando o Haiti. Como se justifica essa invasão militar? Alegando que o Haiti põe em perigo a segurança internacional.
Nada de novo.
Ao longo de todo o século dezenove, o exemplo do Haiti constituiu uma ameaça para a segurança dos países que continuavam praticando a escravidão. E já havia dito Thomas Jefferson: do Hati vem a peste da rebelião. Em Carolina do Sul, por exemplo, a lei permitia prender a qualquer marinheiro negro, enquanto seu barco estivésse ancorado no porto, pelo risco de que pudésse contagiar com a peste antiescravista. E no Brasil, essa peste se chamava haitianismo.
Já no século vinte, Haiti foi invadido pelos marines por ser um país inseguro para os credores estrangeiros. Os invasores começaram a se apoderar das aduanas e entregaram o Banco Nacional ao City Bank de Nova Yok. E já que lá estavam, ficaram por lá dezenove anos.
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A divisa da fronteira entre a República Dominicana e o Haiti se chama "el mal paso".
Quem sabe o nome seja um sinal de alarme: está você entrando no mundo negro, a magia negra, a bruxaria...
O vudú, a religião que os escravos trouxeram da África e se nacionalizou no Haiti, não merece ser chamada de religião.
Do ponto de vista dos proprietários da Civilização, o vudú é coisa de negros, ignorância, atraso, pura superstição. A Igreja Católica, onde não faltam fiéis capazes de vender unhas de santos e penas do arcanjo Gabriel, conseguiu que essa superstição fosse oficialmente proibida em 1845, 1860, 1896, 1915 e 1942, sem que o povo se desse por convencido.
Mas faz alguns anos, as seitas evangélicas se encarregaram da guerra contra a superstição no Haiti. Essas seitas vêm dos Estados Unidos, um país que não tem o 13º andar em seus edifícios e nem a fila nº 13 em seus aviões, habitados por civilizados cristãos que crêem que Deus fez o mundo em uma semana.
Nesse país, o pregador evangélico Pat Robertson explicou na televisão o terremoto do ano de 2010. Esse pastor de almas revelou que os negros haitianos haviam conquistado a independência da França a partir de uma cerimônia vudú, invocando a ajuda do Diabo desde o fundo da selva haitiana. O Diabo, que lhes deu a liberdade, enviou o terremoto para cobrar a conta.
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Até quando continuarão os soldados estrangeiros no Haiti? Eles chegaram para estabilizar e ajudar, mas já levam sete anos (des)ajudando e des(estabilizando) esse país que não lhes quer.
A ocupação militar do Haiti está custando às Nações Unidas mais de oitocentos milhões de dólares por ano.
Se as Nações Unidas destinassem esses fundos para a cooperação técnica e a solidariedade social, o Haiti poderia receber um bom impulso para o desenvolvimento de sua energia criadora. E assim se salvaria de seus salvadores armados, que têm certa para violar, matar e presentear doenças fatais.
Haiti não precisa que ninguém venha multiplicar suas tragédias. Tampouco precisa da caridade de ninguém. Como bem diz um antigo provérbio africano, a mão que dá está sempre acima da mão que recebe.
Mas, o Haiti necessita sim de solidariedade, médicos, escolas, hospitais e uma colaboração verdadeira que torne possível o renascimento de sua soberania alimentar, assassinada pelo Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e outras sociedades filantrópicas.
Para nós, latinoamericanos, essa solidariedade é um dever de gratuidade: será a melhor maneira de dar graças a esta pequena grande nação que em 1804 nos abriu, com seu contagioso exemplo, as portas da liberdade.
(Esse artigo é dedicado à Guillermo Chifflet, que foi obrigado a renunciar à Câmara dos Deputados do Uruguai quando votou contra o envio de soldados para o Haiti).
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Haiti. Um país ocupado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU