10 Outubro 2020
O papa Francisco irritou algumas pessoas com sua encíclica social recém-lançada, Fratelli Tutti, na qual ele é muito duro com o sistema “neoliberal”, o “populismo” e os excessos “individualistas” da globalização.
O longo texto "Sobre a fraternidade e amizade social" foi publicado no último domingo, dia 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis.
É o apelo do Papa de 83 anos contra os grandes males que ele acredita estar assolando o mundo de hoje.
Mas alguns acham que pode ser muito político para um líder espiritual.
La Croix perguntou a um especialista em ensino social católico e a um professor de geopolítica o que eles pensam. Aqui está o que eles nos disseram:
Os artigos são de Marcel Rémon, padre jesuíta e direto do Centro para Pesquisa e Ação Social, e de Jean-Baptiste Noé, professor de economia política e geopolítica, publicados por La Croix International, 08-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
E encíclica é muito política. O papa Francisco assume o lugar de um chefe de estado, traçando um “caminho comum” para a humanidade.
É um horizonte ainda mais necessário porque ele deplora repetidamente o fato de que o mundo não tem mais nenhum “sonho coletivo” pelo qual avançar.
Nesta encíclica, Francisco se insere na tradição dos grandes líderes espirituais e políticos.
Ele cita Martin Luther King, Gandhi, Desmond Tutu... Ele não hesita em confiar em situações concretas, que dão, em alguns lugares, uma visão bastante trágica e sombria do mundo.
Para construir sua visão, ele se baseia nas observações de muitas conferências episcopais nacionais, na África do Sul, Índia e Congo, que lhe informaram sobre os violentos conflitos e as guerras civis que sofrem.
Nesta encíclica, o Papa coloca-se assim, sem ingenuidade, a serviço da resolução do conflito.
É esse tom franco que às vezes pode ofender e contrariar o leitor, pois ele não tem medo do confronto. Isso faz com que aqueles que pensam que o papa deva permanecer confinado a uma esfera puramente espiritual se sintam desconfortáveis.
Mas Francisco mostra que só porque os oponentes da paz são líderes políticos, isso não significa que ele não possa empurrá-los em seu terreno e diagnosticar seus excessos, especialmente o populismo, sobre o qual faz longas declarações.
A “política do papa Francisco" não evita o conflito; aperta onde dói, atacando as várias lógicas que excluem os mais pobres.
Pois, esse é o seu fio condutor: expor os sistemas econômicos, sociais e culturais que produzem a “cultura do descarte”, a qual denuncia constantemente. Desse ponto de vista, é necessário que um Papa esteja envolvido com a política.
Mas há um aspecto fundamental a se enfatizar: enquanto Francisco faz uma observação extremamente dura da globalização, dos sistemas financeiros, da maneira como nossas sociedades costumam ver os migrantes, ele não fornece nenhuma receita partidária para pôr fim às feridas que denuncia.
O Papa não diz que a solução está nesta ou naquela opção partidária. Ele fala em colocar os mais pobres e, de maneira mais geral, a pessoa humana no centro de todas as prioridades e reflexões.
Como na questão da migração, ele intervém quando vê que os direitos fundamentais estão sendo violados. Quando Francisco insistiu sobre o direito de todos os seres humanos serem acolhidos, não é nada partidário sobre isso.
Mas ele ofende alguns porque seu estilo é menos diplomático, mais direto e talvez com menos sutilezas que seus predecessores. Esse é um sentimento reforçado pela anexação que a “extrema-esquerda” faz dele na Europa e Estados Unidos.
Do meu ponto de vista, ele renova a linguagem da Igreja, mas em uma forma radical que é totalmente fiel aos seus antecessores e ao Evangelho.
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Nós tentamos classificar as encíclicas de acordo com um teor mais político, social ou teológico.
Uma então chamada encíclica política, um termo que não pode ser confundido com política eleitoral, sempre se sustenta sobre bases teológicas e espirituais.
Da mesma forma uma chamada encíclica teológica sempre terá implicações políticas.
O Evangelho já é político porque ser Cristo têm implicações sobre a vida. Cristãos não estão retirados do mundo, eles estão no mundo.
Se olharmos para trás na história, as encíclicas são regularmente políticas, como a escrita por Leão XIII (Au milieu des sollicitudes, sobre a Igreja e o Estado na França em 1892), Pio XI sobre o comunismo e o nazismo, ou João Paulo II.
Isso não é uma novidade com Francisco. Cada Papa se expressa com seu estilo, seu pensamento e sua história.
Ainda que a encíclica Fratelli Tutti seja politicamente qualificada, é, a meu ver, um texto complexo e denso que deve ser lido na íntegra.
No entanto, é verdade que o papa Francisco às vezes assume posições muito diretas.
Por exemplo, quando afirma que o direito à propriedade privada é um direito de natureza secundária, não tem precedentes.
Não me recordo de uma opinião tão forte em nenhuma outra encíclica, mas ele afirma isso no início do texto. É seu estilo afirmar as coisas e então observar as reações.
Por outro lado, quando alguém intervém em assuntos políticos, eles entram no reino da opinião. Alguns concordarão, outros não. Estamos na linha de discussão e não no campo teológico da infalibilidade papal ou da aprovação de um elemento da fé.
Este não é um discurso dogmático. O Papa está desenvolvendo argumentos e a questão é que os católicos devem ser capazes de debatê-los sem entrar em discussões.
Francisco provoca reações porque fala sobre temas quentes, como o debate sobre o populismo. Ele usa o termo e o reivindica, explicando que é algo bom se estiver ligado ao povo, mas critica duramente os demagogos que usam o povo para tomar o poder.
Não há nada de ofensivo nos princípios enunciados na encíclica, mas sua aplicação concreta pode levar ao debate, como quando fala em cancelar a dívida dos países pobres: não é tão simples do ponto de vista econômico e não deixa de riscos.
O mesmo se aplica ao conceito de guerra justa. Embora todos concordem com os males da guerra, a intervenção da França no Mali em 2013, por exemplo, ajudou a proteger a população.
Todos devem poder exprimir o seu ponto de vista em fraternidade, se me é permitido utilizar o título da encíclica.
O Papa insiste muito na descentralização da Igreja e na cultura do diálogo. Ele aprecia, mesmo que os católicos nem sempre estejam acostumados, agitar as coisas para fazer as pessoas reagirem.
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Fratelli Tutti: A nova encíclica do papa Francisco é demasiado política? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU