29 Setembro 2020
“Seria desejável prescindir das palavras ‘eutanásia’ e ‘suicídio’”, escreve Juan Masiá, teólogo jesuíta espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 28-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Duas instâncias midiáticas de cores opostas (a ultra-direita e a ultra-esquerda, respectivamente) pedem-me para comentar a carta da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), Samaritanus bonus (SB), talvez buscando apoios para louvá-la ou atacá-la. Não posso ser complacente com os extremos porque não tenho vocação para incensar, nem incendiar.
Mas Religión Digital perguntou-me sobre a “recepção” da SB por parte de quem se situa, como é o meu caso, na dupla perspectiva de uma teologia moral revisionista e uma ética cívica leiga.
(Agradeço ao amigo José Manuel Vidal, diretor de Religión Digital, pela familiaridade com o termo técnico “receptio”, que usamos para falar da acolhida intraeclesial religiosamente respeitosa e ao mesmo tempo honestamente crítica, de documentos relacionados com o magistério eclesiástico ordinário, não infalivelmente vinculante; portanto, com margem para a discordância, sobre o que frequentemente tive que tratar RD naqueles dias das tertúlias de bioético. Se compreende que faças a pergunta surpreendido pelo contraste entre a dureza da carta no tema doutrina – ainda que somente seja uma “Carta” e não uma “Declaração”, “oh sutileza vaticana!” – e, por outro lado, a amplitude de olhares e aberturas no tema do cuidado; parece-me muito razoável essa perplexidade, dado o contexto de abertura reformadora do atual pontificado).
Pois bem, às perguntas capciosas, respostas responsáveis. Responderia à pergunta expondo minha acolhida ou recepção positiva, porém muito crítica, da carta SB ante o que sinceramente tenho que manifestar 60% do meu assentimento agradecido pelo tratamento do tema do cuidado e 40% de discordância, preocupado em torno dos aspectos controvertidos da eutanásia direta ativa e o suicídio assistido, livremente solicitados e legalmente controlados.
Usando a linguagem latina das votações conciliares, lhe daria um placet iuxta modum, isso é, uma acolhida favorável e respeitosa, acompanhada da proposta de importantes emendas. Digo isto desde a dupla perspectiva, que conhece e pressupõe RD ao me perguntar sobre a “recepção” da carta SB desde uma perspectiva teológica e bioética.
Tanto numa perspectiva de uma ética de inspiração cristã (“católica, atual e revisionista”), quanto numa perspectiva de uma ética laica, considero que é possível concordar com quatro pontos (três sim e um não) da Carta SB, nos quais a ética, em minha opinião, geralmente pode convergir; ao mesmo tempo, ambas as éticas poderiam coincidir na não concordância perante o “não” da Carta SB sobre um quinto ponto delicado e polêmico, que a Carta rejeita sem margem para exceções: a eutanásia direta e o suicídio assistido, com o correspondente controle e acompanhamento médico, jurídico, social e espiritual.
As duas perspectivas citadas, religiosa e secular, podem convergir em:
1) o “sim” enfático ao cuidado das pessoas e situações críticas e terminais: um cuidado humano e espiritual, compassivo e respeitoso, misericordioso, familiar e profissional, pessoal e social.
2) o “sim” ao atendimento terapêutico adequado, sem discriminação alguma, mas prestado e regulado de acordo com a dignidade, direitos e consentimento do paciente (ver: a tradicional e ambiguamente denominada “eutanásia indireta”; embora eu não goste do nome, que pode ser confundido com omissões ou ações homicidas).
3) o “sim” aos cuidados paliativos abrangentes (incluindo sedações terminais aplicadas de forma responsável). Esse cuidado também deve ser adequado, prestado e protocolizado de acordo com a dignidade, direitos e consentimento do paciente.
4) o “não” ao homicídio compassivo, indevidamente denominado “eutanásia involuntária”.
Em contraposição a esses quatro pontos de convergência, há uma quinta questão que sem dúvida será questionada e polêmica, tanto de dentro quanto de fora da reflexão moral cristã: é a delicada questão do “não” à chamada eutanásia voluntária direta, legalizada e medicamente assistida, assim como o chamado suicídio legal e medicamente assistido.
Seria preferível e desejável, em minha opinião, prescindir das palavras “eutanásia” e “suicídio”; em vez disso, a expressão “adianta responsável e dignamente para um fim inevitável, porém de modo legal e medicamente controlado, ao mesmo tempo em que se garanta as condições para evitar toda manipulação e discriminação, assim como qualquer violação dissimulada da defesa da vida” (o mesmo que aprendemos ao distinguir entre um aborto irresponsável e uma interrupção justa da gravidez).
Reconheço que o tema é muito delicado e a preocupação da SB em evitar as consequências da cultura de descarte e exclusão deve ser levada em consideração. Mas creio que os redatores da Carta, ao editá-la e apresentá-la ao cardeal Luis Ladaria para sua assinatura e ao Papa para sua aprovação, aprovaram mais de dois povos em retórica e estilo, porque identificam este quinto ponto com alegadas “leis injustas”, “ações homicidas”, etc., e por autodefinir o posicionamento eclesiástico da carta SB como “doutrina definitiva” ou rejeição do “mal intrínseco” etc., ou por pressionar incorretamente o parlamentar católico cujo voto das referidas leis seria, de acordo com a Carta SB , culpado de “cooperação injusta com o mal”, etc... (Esta forma de falar não é típica da excelente antropologia do teólogo cardeal Ladaria e está em contradição com a pastoral da misericórdia do papa Francisco, quero supor que ambos sofreram um gol contra, feito por algum de seus ajudantes curiais...).
Reitero que este quinto ponto terá que ser o objeto de questionar a dissidência tanto de fora quanto de dentro da igreja. Sobre isso que está meu não concordância preocupado, pois vejo nele um retorno ao modo de fazer teologia moral em muito da Veritatis splendor, de João Paulo II, e em grande parte do Catecismo de 92, em sua época objeto de crítica pela teologia moral renovada.
E, no que se refere à dissidência intraeclesial, não posso deixar de acrescentar que, como sacerdote e da prática pastoral, a teologia sacramental que me parece pressuposta pela Carta SB me é incompreensível ao impedir o acompanhamento espiritual e sacramental de quem opta pela eutanásia responsável mencionado no quinto ponto. Por toda aquela parte da Carta SB, que é totalmente inacessível à teologia, assim como em contradição com a pastoral da misericórdia, minha dissidência, ferida e lamentável, mas necessária.
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Concordâncias e discordâncias da “Samaritanus bonus”, a carta da Doutrina da Fé. Artigo de Juan Masiá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU