Por: André | 11 Novembro 2015
“O tema da misericórdia não é novo. A novidade consiste em que Francisco o converteu na chave do seu pontificado, no ponto álgido da hierarquia das verdades cristãs, no centro do anúncio evangélico.”
A reflexão é de Víctor Codina e publicada por Vida Pastoral e reproduzida por Religión Digital, 06-11-2015. A tradução é de André Langer.
Víctor Codina é padre jesuíta espanhol radicado desde 1982 na Bolívia. Estudou Filosofia e Teologia em Sant Cugat e em Innsbruck. Fez o doutorado em Teologia na Universidade Gregoriana de Roma e de Teologia Ortodoxa em Paris. Participou como teólogo da Conferência Episcopal Boliviana e na IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Santo Domingo (1992). Atualmente é professor emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Boliviana de Cochabamba. Seu trabalho pastoral centra-se nas comunidades de base e setores populares. Seus livros mais recentes são: ‘Não extingais o Espírito’ (1Ts 5,19). Iniciação à Pneumatologia. São Paulo: Paulinas, 2010; Una Iglesia Nazarena. Santander: Sal Terrae, 2010; Diario de un teólogo del posconcilio. Bogotá: San Pablo, 2013.
Eis o artigo.
Um livro recomendável
Curiosa e estranhamente, Francisco, em uma das suas primeiras aparições para o Angelus dominical, recomendou o livro do cardeal Walter Kasper sobre a misericórdia. Poucos dias depois, o livro se esgotou em todas as livrarias. Mais tarde, soube-se que o cardeal Bergoglio, durante o conclave que precedeu a sua eleição papal, lia este livro de Kasper, com quem tem uma grande sintonia, como reconheceu o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi.
Como jesuíta, Bergoglio estava familiarizado com o colóquio da misericórdia diante do Cristo crucificado que “de Criador veio a fazer-se homem e de vida eterna a morte temporal e assim a morrer por meus pecados”, como Inácio de Loyola propõe no final da meditação dos pecados nos Exercícios Espirituais (EE 53). Quando Bergoglio foi eleito bispo escolheu como lema em seu escudo a frase Miserando et eligendo – Olhando-me com misericórdia, escolheu-me –, uma paráfrase de Beda o Venerável ao Evangelho de Mateus sobre a vocação de Mateus-Levi, o arrecadador de impostos (Mt 9,9-13). Francisco sempre pede que rezem por ele e ele se apresenta como um homem perdoando. No dia 11 de abril de 2015, Francisco convocou o Jubileu extraordinário da misericórdia que começará no dia 08 de dezembro de 2015, aos 50 anos do encerramento do Concílio Vaticano II.
O que podemos deduzir desta convergência de dados? Que existe, certamente, uma especial sensibilidade de Francisco com o tema da misericórdia.
Uma novidade revolucionária
Já João XXIII, na abertura do Concílio Vaticano II, disse que a Igreja preferia usar o remédio da misericórdia mais que a severidade e a condenação. Paulo VI, no encerramento do Concílio, afirmou que a espiritualidade do Vaticano II era a dom bom samaritano. João Paulo II, em 1980, escreveu uma bela encíclica sobre a misericórdia (Dives in misericordia, Rico em misericórdia), inspirada em parte pela mística polonesa Faustina Kowalska. Bento XVI, em Deus é amor (2005), também aprofundou este tema.
O tema não é, portanto, novo. A novidade consiste em que Francisco o converteu na chave do seu pontificado, no ponto álgido da hierarquia das verdades cristãs, no centro do anúncio evangélico. Francisco não faz parte de um método dedutivo, de cima para baixo, mas de uma realidade que é superior à ideia (EG 231-233), uma realidade dolorosa, carregada de pecado e injustiça, de vítimas e pobres que clamam. Diante desta realidade, Francisco não responde com dogmas e doutrinas teológicas abstratas, mas com ternura e misericórdia, com a pastoral do abraço. Não é o doutor que ensina da sua cátedra magisterial, mas o pastor que vai em busca da ovelha desgarrada, que cheira a ovelha.
Seus sinais simbólicos de abraçar crianças, doentes, deficientes, anciãos, pessoas privadas de liberdade, emigrantes africanos, sua viagem a Lampedusa, sua afirmação de que o sacramento da Reconciliação deve ser uma experiência da misericórdia do Pai e não um castigo e que o pedido dos sacramentos não pode converter-se em uma alfândega... sua exortação A Alegria do Evangelho, a encíclica Laudato si’, a proclamação do Júbilo da misericórdia (Misericordiae vultus)... são manifestações desta revolução da misericórdia, da sua ternura e compaixão diante do sofrimento do povo e das ameaças à nossa casa comum.
Da revolução à revelação
Esta revolução de Francisco não é uma inovação ou uma invenção sua, mas que nasce da revelação bíblica.
O Deus do Antigo Testamento não é simplesmente o Deus iracundo e vingativo, mas que progressivamente se revela como um Deus que ouve o clamor do seu povo e desce para libertá-lo (Ex 3,7), um Deus clemente e misericordioso (Ex 34,6), o Deus que caminha e está junto com o povo (Ex 3,14), que perdoa culpas, liberta os cativos e cura os corações aflitos. O coração de Deus se contorce diante do sofrimento de seu povo, suas entranhas se comovem (Os 11,8). É uma misericórdia que, como aparece nos profetas, está ligada à opção pelos pobres e pela vida.
Não é uma graça barata; é a expressão da justiça divina que condena o pecado, mas salva o pecador, é uma justiça criadora, que ultrapassa o castigo. Os Salmos expressam a confiança de Israel neste Deus clemente e misericordioso (Sl 103,8; 111,4; 145,8; 86,15...).
Este Javé do Antigo Testamento é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que Jesus nos revela com sua vida e ensinamento. Jesus é o rosto misericordioso do Pai: come com os pecadores (Mc 2,13-17), sente que as entranhas se comovem diante dos doentes (Mt 14,14; Mc 1,41), diante da viúva de Naim (Lc 7,13), diante do povo com fome (Mt 25,32) que vaga errante como ovelhas sem pastor (Mc 6,34). Suas parábolas do bom samaritano (Lc 10,25-31) e do filho pródigo (Lc 15,11-32) mostram a centralidade da misericórdia no Evangelho do Reino. Devemos ser compassivos e misericordiosos como o Pai (Lc 6,36). Jesus se identifica com os marginalizados e os últimos e os constitui em juízes escatológicos da história (Mt 25,31-46).
Esta teologia narrativa da misericórdia, própria dos Evangelhos sinóticos, aprofunda-se nos escritos paulinos e joânicos. A misericórdia é o maior atributo divino (Ef 2,4; 2Cor 1,3; 1Jo 4,8), é sua essência que se manifesta em relação ao mundo, é a palavra chave do agir de Deus conosco.
Diante da imperturbabilidade e impassibilidade dos deuses gregos do Olimpo, as entranhas do Deus trinitário se comovem diante da dor do povo, compadece-se de seu pecado, está sempre disposto a perdoar e curar. Nós nos cansamos de pedir perdão, mas não Deus de nos perdoar (EG 3). A justiça de Deus é sua misericórdia. A misericórdia é o atributo fundamental de Deus e a maior das virtudes, a razão da alegria que o Evangelho suscita em nós (EG 37). Esta revelação existencial da misericórdia do pai foi, em última instância, o que levou Jesus à morte. Seu coração aberto nos revela seu amor misericordioso até o final (Jo 13,1; 19,31-34).
Infelizmente, o tema da misericórdia até há pouco tempo teve um lugar marginal na teologia dos manuais, no catecismo e na pregação. Na própria liturgia invoca-se ordinariamente o Deus onipotente e eterno. Parece que a mentalidade helênica, essencialista, metafísica e abstrata prevaleceu sobre o realismo dinâmico, histórico e existencial semítico, como se Atenas tivesse triunfado sobre Jerusalém. Felizmente, agora se começa a reverter esta situação e se coloca a misericórdia como o núcleo fundamental da essência divina e da revelação cristã.
O escândalo dos fariseus
Os fariseus se escandalizaram com o fato de que Jesus comesse com pecadores e perdoasse seus pecados. As parábolas da misericórdia (Lc 15) e a resposta de Jesus mostram que Deus quer misericórdia e não sacrifícios (Mt 9,13; 12,7; cf. Os 6,6).
Também em nossos dias há aqueles que se escandalizam com esta chave pastoral de Francisco, consideram-na perigosa, contrária aos dogmas, propensa à relaxação, a um laissez-faire, a um cristianismo light... Tudo isso é visto como fruto de um Papa que não é teólogo profissional.
Um exemplo desta atitude é a reação de alguns setores da Igreja que, encabeçados por cardeais, bispos e teólogos, pediram por escrito para que no Sínodo sobre a Família não se concedesse a comunhão aos divorciados recasados, pois isso atentaria contra o dogma da indissolubilidade do matrimônio e da santidade da Igreja.
Diante desta postura farisaica, outras vozes teológicas desfizeram estes falsos argumentos: a indissolubilidade do matrimônio não é um dogma sem exceções, mas o ideal utópico para o qual deve tender gradualmente todo matrimônio cristão; não se parte do acima doutrinal, mas de baixo, da dolorosa realidade de matrimônios fracassados irremediavelmente e de pessoas que desejam refazer suas vidas e para isso necessitam do perdão de Deus e da força da Eucaristia. Deus não é o guardião da lei, mas o Pai misericordioso que vai ao encontro do filho pródigo, abraço-o e prepara-lhe um banquete.
Diante da acusação de que Francisco não é teólogo profissional devemos responder que, como disse Santo Tomás, existem na Igreja duas formas de magistério ou de cátedra: a cátedra ou o magistério pastoral dos bispos (e, portanto, também do Papa) e a cátedra ou o magistério teologal dos teólogos. Ambos os magistérios convergem, mas são diferentes. O Papa não necessita ser um teólogo profissional, mas cabe a ele ser pastor, fiel testemunha da Palavra e da Tradição, e deixar em liberdade os teólogos profissionais para que aprofundem e discutam sobre a fé. Se o Papa é um teólogo profissional existe o risco de querer impor sua teologia a toda a Igreja e de desqualificar como dissidentes os teólogos que defendem pontos de vista diferentes dos seus. Assim, o restauracionismo pré-conciliar que houve (e há) é, no fundo, uma nova forma de farisaísmo...
Uma Igreja misericordiosa
Se a misericórdia é a essência de Deus revelada por Jesus, então a Igreja, formada por todos os batizados, deve seguir as pegadas do Senhor, deve ser clemente, misericordiosa e perdoadora; as entranhas da Igreja devem se comover diante do sofrimento do povo, deve ser uma Igreja pobre e dos pobres, que sai para as periferias em busca da ovelha perdida, que se preocupa com a nossa casa comum. O Espírito do Senhor que preparou e acompanhou a vida e a obra de Jesus é quem agora guia a Igreja para o Reino, um Espírito que age debaixo para cima, do clamor dos últimos (famintos, sedentos, desnudos, doentes, encarcerados, marginalizados...) e nos impulsiona a ser misericordiosos como Jesus e nosso Pai.
As consequências práticas desta revolução da misericórdia são imensas: devemos situar o amor e a misericórdia como central na vida cristã, como o mandamento central do cristianismo que nos leva a amar e perdoar os outros, a optar pelos pobres e por nossa casa comum a Mãe Terra, a lutar pela justiça, a mudar o sistema atual que já não dá mais de si, que exclui grande parte da humanidade e destrói a natureza, a buscar estilos de vida alternativos ao atual paradigma tecnocrático patriarcal e consumista, a mudar a imagem do Deus terrível e juiz policial e converter-nos a um Deus Pai-Mãe cheio de ternura e misericórdia, a abandonar a pastoral do medo, a nos aproximar do sacramento da Reconciliação como um espaço de misericórdia e não de tortura, a atualizar as obras de misericórdia descritas em Mateus 25,31-46 com reformas estruturais, a nos aproximar dos lugares de sofrimento e dor: migrantes e refugiados, indígenas, camponeses, bairros periféricos, mulheres abandonadas, doentes, idosos, prostitutas, crianças de rua, drogados, inválidos, creches, cárceres...
Maria, Mãe da misericórdia
Se Maria é figura e ícone da Igreja (LG VIII), se tudo o que se afirma biblicamente da Igreja puder ser afirmado de Maria (EG 285), o ícone e arquétipo da Igreja misericórdia é Maria, rainha e mãe de misericórdia, como rezamos na Salve Rainha, uma mãe cujos olhos misericordiosos nos mostram Jesus, bendito fruto de seu ventre.
Mais ainda, A alegria do Evangelho nos fala de um estilo mariano de evangelização, centrado na revolução da misericórdia, da ternura e do carinho (EG 288). Maria (na invocação de Guadalupe), disse a Juan Diego para que não se perturbe, que ela é sua mãe que está com ele (EG 287), Maria é a mãe que está junto dos seus filhos, é a Mãe que, nas diversas invocações marianas ligadas aos santuários, compartilha a história de cada povo e passa a fazer parte da sua identidade histórica, caminha conosco, luta conosco, derrama incessantemente a proximidade do amor de Deus (EG 286). Na Laudato si’ Maria é a rainha da Criação, a que cuidou de Jesus e que agora cuida com amor e afeto deste mundo ferido e se compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo arrasadas pelo poder humano (LS 241).
A modo de síntese
Em síntese, a revolução da misericórdia do Papa Francisco é fruto pastoral da ação do Espírito que age de baixo para cima e que nos revela em Jesus o rosto misericordioso do Pai e em Maria o rosto materno de Deus. Deste modo, torna-se possível que a Igreja não seja uma simples instituição ou uma ONG piedosa, mas se converta em um lar, em uma casa para muitos, em uma mãe para todos os povos, onde possa nascer um mundo novo (EG 288).
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O Papa Francisco, uma revolução da misericórdia. Artigo de Víctor Codina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU