28 Setembro 2020
“Francisco é bem conhecido por sua antipatia a muitos aspectos do capitalismo e da cultura estadunidense, nascida em parte da história decididamente conflituosa do envolvimento dos Estados Unidos com sua América Latina natal. Provando mais uma vez que Deus tem um agudo senso de ironia, quem teria previsto que seria esse Papa, entre todas as pessoas, quem carregaria a accountability ao estilo norte-americano, atravessaria o rio Tibre e o levaria para Roma?”, pergunta John Allen Jr., em artigo publicado por Crux, 27-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Embora o drama desencadeado pela súbita queda do cardeal italiano Angelo Becciu esteja longe de terminar, no entanto se chegou a um estágio em que também é “possível” recuar e refletir sobre o quadro geral.
Eu digo “possível”, não necessariamente provável, porque, francamente, a história é muito fascinante no nível micro. Becciu, justamente ou não, surge como um personagem saído diretamente do elenco central de Hollywood como um vilão suave e charmoso, e é terrivelmente tentador imaginar uma versão do Vaticano da série de televisão “Blacklist”, com Becciu no papel de Raymond Reddington.
Deixando de lado essas diversões, há pelo menos uma visão geral confirmada pelo caso Becciu: “accountability”, no sentido totalmente estadunidense da palavra, está finalmente atravessando o Tibre no pontificado do papa Francisco.
Recapitulando, de 2011 a 2018, Becciu, agora com 72 anos, ocupou sem dúvida o cargo mais poderoso do Vaticano depois do papado, que é o papel de “sostituto”, ou substituto, na Secretaria de Estado, tornando-o mais ou menos o Chefe de Gabinete do Papa. Foi então elevado ao Colégio Cardinalício e nomeado Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Na quinta-feira, o papa Francisco “levou-o até a porta”, pedindo sua renúncia não apenas de seu cargo no Vaticano, mas de seus direitos como cardeal. As razões têm a ver com várias irregularidades financeiras com as quais Becciu tem sido associado ao longo dos anos, embora ele insista vigorosamente que não fez nada de errado.
Em maio, o pontífice demitiu sumariamente cinco funcionários do Vaticano envolvidos em um polêmico negócio imobiliário em Londres, antes mesmo de qualquer um deles ter sido condenado ou mesmo acusado de atividade criminosa – não passou despercebido aqui que as demissões ocorreram em 1° de maio, que celebrado na Itália como o “Dia do Trabalho”, em parte para consagrar os direitos dos trabalhadores. No início deste ano, o Papa basicamente despediu o arcebispo alemão Georg Gänswein de suas responsabilidades como prefeito da casa papal (embora ele mantenha o título), pois estaria supostamente chateado com o papel de Gänswein em um escândalo envolvendo um livro inicialmente apresentado como coautoria do papa emérito Bento XVI que alimentou percepções de um conflito entre Bento e Francisco.
Em 2018, é claro, Francisco também exigiu que Theodore McCarrick renunciasse do Colégio Cardinalício devido às acusações de abuso sexual e má conduta, ordenando-lhe a uma vida de “oração e penitência em reclusão” e, posteriormente, removeu McCarrick do sacerdócio.
Para os estadunidenses, parece óbvio que alguém pego em um escândalo ou o responsável por um fracasso seja demitido. Isso é o que queremos dizer com ‘accountability’ – treinadores cujas equipes perdem são demitidos, CEOs cujas empresas têm desempenho inferior são demitidos, políticos pegos “com as mãos na lata de cookies” são demitidos, estrelas de TV cujas avaliações caem são demitidas, e assim por diante... É o coração da psicologia capitalista, na verdade – o sucesso traz recompensas, os fracassos trazem punição.
No entanto, a cultura italiana, que é a matriz na qual o Vaticano está situado, nem sempre foi assim. Na verdade, não há nem mesmo uma tradução italiana exata para a palavra em inglês “accountability”. Coloque no Google Tradutor e você obterá ‘responsabilità’, “responsabilidade”, mas dificilmente será a mesma coisa. Em geral, as leis trabalhistas italianas tornam extremamente difícil demitir alguém por suposta falta de desempenho. Subjacente a isso, pelo menos em parte, está uma cultura mais comunitária, o que implica que o sucesso ou o fracasso raramente dependem de um único indivíduo.
Além disso, o Vaticano ao longo dos anos tem tido uma visão obscura da “accountability” ao estilo norte-americano, considerando-a, na melhor das hipóteses, mais adequada a uma corporação do que a uma família e, na pior, como uma reação excessiva tipicamente imatura americana, sangue, luxúria e histeria.
No entendimento tradicional do Vaticano, a accountability de um líder da Igreja não é para com os acionistas ou o povo, mas para com Deus e o Papa. Além disso, a Igreja é entendida como uma família e o bispo como um pai dessa família. Este não é um trabalho, mas um vínculo sacramental entre um bispo e as pessoas confiadas aos seus cuidados, semelhante a um casamento. Assim como o catolicismo não tolera o divórcio, os bispos historicamente também não foram “divorciados de seus cônjuges eclesiásticos”, mas sim encorajados a cumprir suas responsabilidades.
Por uma questão prática, aceitar a renúncia de um bispo quando as coisas desmoronam tradicionalmente tem sido visto como uma forma de deixá-los escapar do julgamento. Um bispo aposentado, especialmente em Roma, goza de todos os privilégios da posição, mas nenhum dos fardos.
Um caso clássico é apresentado pelo falecido cardeal Michele Giordano, de Nápoles, que morreu em 2010. Em 1997, ele foi alvo de uma investigação policial por dar dinheiro da arquidiocese a uma operação de agiotagem dirigida por seu irmão, e Giordano acabou sendo indiciado e julgado (no fim, ele foi absolvido porque o juiz acreditou que ele havia sido enganado, tornando-o culpado de ingenuidade, mas não de fraude.) Por causa disso – quando a investigação foi anunciada, quando Giordano foi indiciado, quando o julgamento começou, e todo o caminho até ao veredicto – havia especulações de que Giordano pudesse ser demitido, mas isso nunca aconteceu. Ele continuou a servir como arcebispo de Nápoles até sua renúncia por motivos de idade em 2005.
Na realidade, o papa Francisco nunca sustentou totalmente essa tradição, ocasionalmente descartando pessoas em quem não confiava. Em 2017, por exemplo, ele demitiu pessoalmente o leigo suíço Eugenio Hassler, filho de um guarda suíço que ocupava um cargo sênior no Governo do Estado da Cidade do Vaticano, por supostamente criar um ambiente de trabalho negativo, e assinou a demissão do italiano o leigo Libero Milone, o primeiro auditor-geral do Vaticano, acusado de irregularidades financeiras e espionagem de autoridades do Vaticano (mas ao fim, essas acusações foram retiradas por um promotor do Vaticano.)
Entretanto, não há dúvida de que a disposição de Francisco em puxar o gatilho acelerou recentemente. Então, o que fazer com isso?
Isso pode significar apenas que Francisco está perdendo a paciência com o progresso de sua reforma no Vaticano. Talvez ele sinta que tentou a persuasão moral, o exemplo pessoal, a exortação e até mesmo a repreensão, e não está funcionando, então ele está mais inclinado a fazer cabeças rolarem.
Seja qual for a explicação, vamos fazer uma pausa por um momento e aproveitar um aspecto de tudo isso que não deve ser perdido.
Francisco é bem conhecido por sua antipatia a muitos aspectos do capitalismo e da cultura estadunidense, nascida em parte da história decididamente conflituosa do envolvimento dos Estados Unidos com sua América Latina natal. Provando mais uma vez que Deus tem um agudo senso de ironia, quem teria previsto que seria esse Papa, entre todas as pessoas, quem carregaria a accountability ao estilo norte-americano, atravessaria o rio Tibre e o levaria para Roma?
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Com o papa Francisco, accountability finalmente cruza o Tibre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU