22 Setembro 2020
Patentes e desigualdade tornam incerta imunização de bilhões de pessoas. Farmacêuticas bloqueiam acesso à tecnologia para “fazer preço”. E mais: envolvimento de Damares nos ataques à menina estuprada foi mais grave que se pensava.
A reportagem é de Maíra Mathias, publicada por Outras Palavras, 21-09-2020.
Depois de muita hesitação, o Brasil decidiu integrar a Covax, principal iniciativa internacional para garantir o fornecimento equitativo de vacinas. O país submeteu o pedido oficial para fazer parte desse esforço em julho, mas o martelo foi batido a poucas horas do prazo final para adesões se esgotar, na sexta-feira. Parece mais um exemplo de incompetência, mas, neste caso, as coisas são um pouco mais complicadas.
A Covax é o principal pilar de um plano de aceleração do desenvolvimento, produção e distribuição de tecnologias necessárias ao combate à pandemia lançado em abril, que além de vacinas, inclui testes, tratamentos e até o fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde. Apesar de contar com a participação de organismos das Nações Unidas, como a OMS e o Banco Mundial, há certo protagonismo dos parceiros privados envolvidos na iniciativa, como a Aliança Global de Vacinação (Gavi). A Covax acabou se tornando a única resposta coletiva ao problema depois que uma proposta da Costa Rica naufragou.
O país latino-americano tentou aprovar na Assembleia Mundial da Saúde uma ferramental global de compartilhamento de tecnologias que visava impedir que tudo quanto fosse desenvolvido com recursos públicos pudesse ser patenteado. Para ficar em um exemplo, isso impediria que a vacina de Oxford tivesse de ser negociada com a AstraZeneca através de um mecanismo conhecido como licença voluntária, que suspende os direitos de patentes por razões de interesse público. O mecanismo existe no direito internacional e pode ser usado por qualquer país, mas mesmo durante essa crise sanitária os governos têm preferido não ferir os interesses da indústria farmacêutica. A Covax, ao contrário, se baseia na compra das vacinas. Nove candidatas fazem parte do rol atualmente.
A ideia é que países ricos paguem pelos produtos, de modo que nações pobres obtenham os imunizantes de graça ou a preços subsidiados. Mas a linha de corte que define quem paga e quem é beneficiado foi desde sempre questionada. O Brasil, por exemplo, paga. Além disso, a Covax prevê que os países ofereçam vacinas para 20% da sua população. No caso brasileiro, o governo teria de comprar uma ou duas doses (no caso das vacinas que precisam de reforço) para 42 milhões de habitantes.
A certa altura das negociações para a Covax, Seth Berkley, CEO da Gavi, teve de vir a público rebater críticas da União Europeia, segundo as quais a Covax teria estabelecido um preço de US$ 40 por pessoa como base. Ele disse que esse valor era o montante máximo que países de alta renda poderiam ter que desembolsar, não um custo tabelado. Mas só para efeito ilustrativo, esse per capita significaria para o Brasil um investimento de US$ 1,6 bilhão (ou R$ 8,9 bi na cotação de hoje). O acordo com a AstraZeneca, por exemplo, saiu por R$ 1,3 bilhão para cem milhões de doses – e envolve transferência de tecnologia para o Brasil, coisa que a Covax não prevê.
Além do problema do financiamento, a Covax enfrenta outro grande desafio: o nacionalismo da vacina. Isso porque vários países já fecharam acordos com farmacêuticas garantindo doses das candidatas para suas populações. O Nexo destaca números de um levantamento da Oxfam divulgado na última quinta-feira, que aponta que 51% das doses já prometidas pelas empresas vão beneficiar países que detém apenas 13% da população mundial. Enquanto o Reino Unido já garantiu cinco doses para cada habitante, há muitos países que não tem acordo algum.
O objetivo da Covax é fornecer, até o fim de 2021, dois bilhões de doses aos 172 países participantes, sendo um bilhão para distribuição gratuita. Mas uma projeção da empresa Airfinity, feita com base no histórico de produção das farmacêuticas, aponta que um bilhão é o número total de doses que as empresas têm capacidade de entregar até o fim do ano que vem. Mais otimista, a Coalizão para Inovações de Preparação para Epidemias (Cepi), que faz parte da Covax, estima que entre dois e quatro bilhões de doses possam ser fabricadas até o fim de 2021.
Mas a conta não fecha a favor da Covax. Na sexta, a União Europeia assinou um acordo com a Sanofi e a GSK, garantindo 300 milhões de doses da candidata para o bloco. As empresas já fecharam acordo semelhante com os EUA para fornecer cem milhões de doses, com opção de o governo norte-americano comprar mais 500 milhões. Só aí temos 900 milhões de doses de uma mesma candidata já comprometidas. Com a vacina de Oxford acontece a mesma coisa: a UE garantiu 400 milhões de doses, o Reino Unido 340 milhões, os EUA 300 milhões, o Brasil cem milhões…
A mesma reportagem do Nexo dá outro exemplo que faz pensar: a Moderna tem capacidade de suprir a demanda para 6% da população mundial, mas não busca acordos de transferência de tecnologia que aumentem sua capacidade de produção. Por quê? A resposta provável é que a empresa quer controlar o preço a partir da restrição da oferta. A farmacêutica tem negociado doses da sua candidata a US$ 35 com vários países. O mesmo movimento seria repetido pelas concorrentes, deixando o mundo em uma situação em que há tecnologia, mas não acesso a ela. O que convenhamos, não é uma hipótese fantasiosa e já acontece com diversas outras doenças.
Em entrevista ao Globo, o diretor-presidente da Anvisa afirmou que não gosta de trabalhar com previsões da vacina, mas deu a sua. “Qualquer pessoa que hoje diga que vai ter uma resposta vacinal no mês tal, vai correr risco seríssimo de ter que se desdizer, porque as coisas são muito dinâmicas. Um pensamento pessoal meu de tudo que tenho visto colocaria minha expectativa para os primeiros meses de 2021. Não é por exemplo o que a OMS tem dito. A OMS tem dito mais para frente um pouco. Não há um consenso”, disse o almirante Antonio Barra Torres. Em relação à vacina russa, ele afirmou que a agência reguladora ainda não recebeu “nenhuma página de dossiê” sobre o imunizante aprovado pelo governo Vladimir Putin e negociado por aqui com os estados do Paraná e da Bahia.
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou ontem que receberá em outubro cinco milhões de doses da Coronavac, vacina produzida pela chinesa Sinovac. Segundo ele, até dezembro, o estado terá à disposição 46 milhões de doses. Lembramos que os testes da fase 3 ainda estão em andamento.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, Donald Trump prometeu ter doses suficientes para vacinar todos os habitantes do país até abril do ano que vem… A declaração vem na esteira das tentativas do presidente de contradizer autoridades científicas, particularmente o diretor do CDC que disse ao Senado que uma vacina só estaria disponível em meados do ano que vem.
A gestão Eduardo Pazuello removeu mais quadros técnicos que defendiam posição divergente dos interesses do governo Bolsonaro no Ministério da Saúde. Na sexta, foi publicada no Diário Oficial a exoneração de Karla Baêta e Marcus Vinícius Quito. Ela era coordenadora-geral da Saúde do Trabalhador, ele assessor da mesma área. Ao Estadão, Baêta confirmou que sua saída está ligada ao caso envolvendo a lista de doenças relacionadas ao trabalho que caiu 24 horas depois da sua divulgação por pressão de “confederações patronais”. A atualização da lista era discutida há anos e, em meio à pandemia, acabou incluindo a covid-19 no rol de doenças relacionadas ao trabalho.
Entidades da saúde divulgaram no sábado uma carta de agradecimento à Karla pelos serviços prestados e criticaram a exoneração.
Falando nisso, nunca se investiu tão pouco em fiscalizações trabalhistas quanto no atual governo. Eram destinados, em média, R$ 55 milhões por ano para operações de inspeção de segurança e saúde no ambiente laboral, combate ao trabalho escravo, dentre outros. Em 2020, o valor ficou em R$ 24,6 milhões. No projeto orçamentário enviado ao Congresso, o governo cortou mais um pouco, propondo gastos de R$ 24,1 para o ano que vem.
Mesmo dando mostras de autoritarismo na condução da pasta, Pazuello tem a aprovação de 14 secretários estaduais. Os responsáveis pela saúde em Amapá, Pernambuco, DF, Maranhão, Paraíba, Pará, Mato Grosso do Sul, Minas, Rio Grande do Sul, Goiás, Espírito Santo, São Paulo, Rio Grande do Norte e Bahia ratificaram a escolha do general quando questionados pela colunista Camila Mattoso. “Dizem que a estabilidade ajuda o SUS e que Pazuello tem sido solícito e organizado no combate à pandemia”, escreveu ela.
Uma reportagem da Folha apurou que partiu do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos o vazamento do nome da criança de dez anos que ficou grávida após sofrer sistemática violência sexual na família – o que é crime. Segundo o jornal, a informação foi repassada por representantes de Damares Alves aos bolsonaristas Sara Giromini e Pedro Teodoro, que a divulgaram nas redes sociais. A matéria também detalha os bastidores de como a ministra teria atuado para impedir que a menina tivesse acesso ao direito de interromper a gestação.
Já se sabia que Damares havia enviado assessores para a cidade de São Mateus (ES), onde a criança morava. A repórter Carolina Vila-Nova conta que Alinne Duarte de Andrade Santana, da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Wendel Benevides Matos, coordenador da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, e mais dois assessores “tentaram retardar a interrupção da gravidez e, em uma série de reuniões, pressionaram os responsáveis por conduzir os procedimentos, inclusive oferecendo benfeitorias ao conselho tutelar local”. Foi prometido um Jeep Renegade, equipamentos como ar-condicionado e até a instalação de um segundo conselho para atender a região. O jornal obteve provas de que Damares participou de uma dessas reuniões, por videoconferência.
Ainda de acordo com a matéria, o plano do Ministério era que a criança fosse transferida para o Hospital São Francisco de Assis, na cidade de Jacareí (SP), onde ficaria internada para que a gestação fosse concluída. Detalhe: entre os parceiros da unidade de saúde consta a Igreja Quadrangular, da qual Damares era pastora. Quando essa proposta foi recusada, o grupo teria partido para “uma estratégia de intimidação”, com direito à tentativa de retardar a transferência da menina para o hospital que realizou o aborto, em Recife. Depois que isso também falhou, aconteceu o vazamento da identidade da criança. O Ministério respondeu que apenas acompanhava a atuação da rede de proteção à vítima.
Em tempo: como o colega de governo Ricardo Salles, a ministra atua contra a missão da pasta que comanda por meio da negligência orçamentária. O Ministério empenhou apenas R$ 63 milhões dos R$ 121 milhões destinados à Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres esse ano. No caso do enfrentamento à violência contra a mulher, a coisa é pior: de R$ 24,6 milhões disponíveis, só R$ 1,6 milhão foi usado. Isso num ano em que os casos se multiplicaram devido ao confinamento gerado pela pandemia.
Na sexta, o Ministério da Saúde divulgou um guia com orientações para a volta às aulas presenciais na educação básica. Não há indicativos sobre quais critérios epidemiológicos devem ser observados para que as atividades sejam retomadas, nem orientações sobre o número máximo de estudantes por sala. Também não há nada sobre o rastreamento de contatos dos alunos e funcionários que tiverem diagnóstico da covid-19 confirmado, tampouco orientação clara sobre se as aulas devem ser interrompidas nesses casos. O documento, que estava sendo preparado desde julho, fala no monitoramento da temperatura de quem chega à escola, mas não menciona a realização de testes PCR, capazes de captar quem é assintomático.
Uma reportagem da revista Poli traz o panorama da volta às aulas em diversos estados. Sem parâmetros nacionais, a questão está bastante judicializada e impera o particularismo: de um lado, os empresários da educação, que querem voltar de qualquer jeito; de outro, os sindicatos de professores, que defendem a continuidade da modalidade virtual. Há locais, como Natal, em que a autorização da volta às atividades isenta o poder público e os estabelecimentos de ensino de qualquer responsabilidade sobre eventuais contaminações. “Eu não vejo hoje em lugar nenhum uma estratégia coordenada para que se dê esse passo tão fundamental em uma pandemia que é a volta às aulas”, resume o pesquisador Diego Xavier, da Fiocruz.
Segundo a coluna Painel, da Folha, o Ministério da Saúde avisou os secretários estaduais que fará um novo inquérito sorológico nacional. O objetivo é atingir 600 mil pessoas, mas não se sabe quando começam os testes. O projeto está sendo elaborado com o IBGE e terá participação da Opas e da Fiocruz. Em julho, a pasta decidiu não renovar o financiamento do Epicovid-19, realizado pela Universidade Federal de Pelotas. O estudo chegou a testar 90 mil pessoas em 133 cidades, concluindo que havia seis vezes mais casos do que os dados oficiais mostravam. Com isso, o país – que testa pouquíssimo – ficou sem qualquer dimensionamento do real tamanho da epidemia.
Na sexta, chegamos à marca das 135 mil mortes. Nesse dia, Jair Bolsonaro estava em um evento do agronegócio na cidade de Sorriso, no Mato Grosso. “Vocês não pararam durante a pandemia. Vocês não entraram na conversinha mole de ‘fica em casa’. Isso é para os fracos“, disse a uma plateia de produtores rurais e apoiadores. Como de praxe, nenhuma palavra de solidariedade às vítimas da pandemia – e também nada sobre os incêndios criminosos que já queimaram 20% do Pantanal e destruíram quase metade das terras indígenas existentes no bioma. No sábado, o Brasil ultrapassou as 4,5 milhões de infecções registradas oficialmente.
No sábado, a Lei Orgânica da Saúde (8.080) completou 30 anos. Ela foi a responsável por consolidar as diretrizes constitucionais do SUS, detalhando como se daria o funcionamento e a organização do sistema universal público brasileiro. Dá pra ouvir análises sobre o significado desse marco legal aqui.
Lembramos também que, em dezembro, outra importante lei completa três décadas. A 8.142 prevê algo bastante combatido atualmente: a participação social na decisão dos rumos da política pública de saúde.
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Vacinas: a lógica da vida ou a dos lucros? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU