27 Agosto 2020
Contágios, fechamentos, eleições e política, o que está acontecendo nos Estados Unidos hoje? As agências de notícias e os jornais falam de um país de extremos, entre otimismos e pessimismos, mas qual é a verdade?
Contatamos o professor Massimo Faggioli, historiador e teólogo, professor do Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Villanova University. Desde 2008, ele mora nos Estados Unidos com a sua família.
A reportagem é de Alessandro Massacesi, publicada na revista Aristotele, 19-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Professor Faggioli, onde você se encontra neste momento?
Eu moro perto da Filadélfia, na Pensilvânia, entre Nova York e Washington. Na Villanova University, uma universidade católica, eu leciono história do cristianismo e teologia para o Departamento de Teologia e Ciências Religiosas da universidade. Além disso, sou um historiador por formação.
Que ar se respira nos Estados Unidos neste momento?
A minha percepção é a de uma crise em vários níveis e dimensões que não diz respeito apenas à política ou ao governo Trump, mas também a uma verdadeira crise do sistema. O Congresso estadunidense não legisla mais, e a legislação mais importante, neste momento, é fruto dos tribunais e da Suprema Corte que revoga ou interpreta as leis. Soma-se a isso uma profunda crise econômica que não depende apenas da pandemia, mas também porque, nos últimos 20 anos, pelo menos, os Estados Unidos viveram um aumento dos desequilíbrios sociais e um aumento das desigualdades muito significativo. O empobrecimento da classe média se deve ao fato de que uma grandíssima parte dos trabalhos realizados pela classe média estadunidense hoje não existem mais ou foram deslocados para o exterior, na China ou na América Latina.
Finalmente, há um problema de crise moral, cultural e civilizacional que é muito evidente. Basta olhar para uma das colunas da cultura estadunidense, que são as Igrejas (tanto a católica quanto as protestantes e, de certo modo, também as Igrejas orientais ortodoxas nos Estados Unidos). Se você olhar para esses âmbitos, perceberá que os Estados Unidos estão vivendo uma crise da cultura democrática. Há uma teoria levantada por alguns intelectuais católicos, com cátedras em universidades de primeiro plano como Harvard ou Notre Dame, que acreditam que a democracia não é mais funcional e que é preciso se confiar a mecanismos não democráticos para a proteção dos valores morais.
Mas a crise mais importante, de magnitude mais impressionante, diz respeito à perda do papel dos Estados Unidos no mundo. Nos últimos anos, progressivamente, o mundo se deslocou cada vez mais para a Ásia: a China obviamente, mas também Índia, Coreia... Substancialmente, os Estados Unidos, neste momento, são um país que perdeu o seu papel no mundo. Os Estados Unidos estão entendendo que não são mais o líder global, e isso é um choque. O século XX foi o século estadunidense, porque era o modelo a que os outros países olhavam, mas agora, se você olhar para os rankings de nível de vida, expectativa de vida, educação, você se dá conta de que os Estados Unidos não são mais um modelo. Essa consciência está na base da relação ambígua com a Rússia e do distanciamento político e cultural da Europa. É algo que atinge tanto a cultura conservadora quanto a liberal, e que vê a Ásia emergir como o verdadeiro líder econômico e também político/constitucional com a ascensão do modelo dos “civilizational states” como a Índia de Narendra Modi.
Existe uma espécie de encastelamento geopolítico e cultural.
Sim, mas isso já havia começado há muito tempo. Os não estadunidenses sempre conheceram melhor os Estados Unidos do que os estadunidenses em relação à cultura europeia, oriental, árabe ou asiática. Sempre houve esse desequilíbrio, de conhecimento recíproco, mas hoje isso é evidente também do ponto de vista econômico. Essa mudança nas relações pode ser vista em todos os níveis: diplomático, cultural... Há sempre uma vontade de penetração do Ocidente por parte das instituições culturais asiáticas que os estadunidenses não têm mais com o restante do mundo. De fato, há um limite de capacidade de penetração e de relação com o novo centro do mundo, mas também com a Europa, até mesmo por parte das classes intelectuais (já é raro encontrar um acadêmico estadunidense e nascido nos Estados Unidos que saiba ler ou falar uma língua que não seja o inglês).
Como esse cenário é abordado pelos dois campos políticos estadunidenses, republicanos e democratas? Existe uma clara diferença, do modo como ela é representada na Itália, ou eles são mais ou menos semelhantes na abordagem?
Eu diria que são quase semelhantes na substância do estado de negação da nova realidade global, mas diferentes na forma. A cultura conservadora se ilude de que pode viver em uma condição de isolacionismo, que foi interpretado pelo presidente Trump. Os impostos, as tarifas alfandegárias, o fechamento à imigração são todos mecanismos desse modo de pensar e foram um fracasso. Os democratas fazem diferente: Joe Biden disse várias vezes que a China, segundo ele, nunca poderá ser capaz de competir com os Estados Unidos, o que é fantasia ou propaganda.
Portanto, há também essa dificuldade na esquerda de se relacionar com a mudança nas relações globais, e a minha impressão é de que a esquerda estadunidense não tem uma ideia de país, de economia adequada, senão o antitrumpismo como antinacionalismo. Biden certamente é preferível a um personagem como Trump, mas há uma profunda ilusão de fundo. O modelo neoliberal que prevê a ausência de fronteiras não funcionou para os Estados Unidos, assim como o isolacionismo de Trump. A verdadeira questão nos Estados Unidos neste momento é se livrar de Trump, mas, neste momento, me parece que ninguém elaborou uma estratégia para o depois.
Os Estados Unidos estão vivendo atualmente dois fenômenos muito importantes: a Covid-19, que ainda perdura, e as numerosas revoltas contra a polícia. A sua impressão é de que esses dois eventos desencadearam uma mudança? Se sim, um dos dois prevaleceu sobre o outro?
O recente fenômeno dos protestos contra a brutalidade da polícia começou há anos, pelo menos em 2014, em pleno governo Obama. O fato é que, com o governo Trump, ficou evidente o gosto desse governo pelo uso da força policial para reafirmar uma supremacia branca, mas, mesmo assim, estamos falando de um elemento constante que retorna periodicamente. Los Angeles, em 1992, é o exemplo de que um certo tipo de relação entre a polícia e os não brancos é uma constante. Agora, isso explodiu porque é mais visível graças aos celulares com câmeras, mas continua sendo um tema profundo dos Estados Unidos, que nunca superaram verdadeiramente aquele sistema legal que cimentou a superioridade de uma comunidade (a branca) sobre todas as outras.
A Covid-19 é algo diferente, porque afeta a todos (embora de modos diferentes) e, na minha opinião, abriu os olhos de muitos estadunidenses para o fato de que este país não é capaz de se defender sozinho. Os Estados Unidos geriram essa crise de um modo pior do que qualquer outro país desenvolvido. Aqui, estamos no sexto mês da emergência, e ainda não há uma política nacional. Tudo foi confiado aos Estados ou aos condados, e dentro deles existem inúmeras isenções que tornam a ação das autoridades públicas uma situação desigual. Eu acho que isso abalou os estadunidenses. Este é um 2020 interminável para muitos, para quem perdeu o emprego e para quem se sentiu traído pela classe política, local em alguns casos, mas especialmente nacional.
Cada vez mais, vimos os Estados Unidos sendo influenciados pelas decisões e pelas estratégias das indústrias privadas, a ponto de o Twitter hoje ser capaz de censurar Trump. Que papel as multinacionais têm agora no país?
Do meu ponto de vista, as grandes empresas estadunidenses são o verdadeiro Estado. São elas que fazem as leis, que compram os legisladores, de modo legal ou não, mas são elas que, em essência, fazem as leis. É um sistema baseado principalmente na defesa de interesses que só se cruza casualmente com certos comportamentos morais e éticos, e se adapta ao politicamente correto (especialmente sobre raça e gênero), mas de forma instrumental.
Certamente, há um certo ativismo em nível “corporativo” sobre algumas questões, pelo menos nas mensagens públicas, sobre questões de raça, de gênero, de homossexualidade, temas que servem para proteger a reputação de quem deve permanecer no seu mercado. Mas, assim que a agenda toca na questão dos salários, ou da sindicalização, ou da segurança no trabalho, deparamo-nos com um fechamento total.
Vejo isso muito bem também no mundo universitário e também nas escolas e universidades católicas. As universidades católicas agora estão agora na vanguarda com os grupos do Black Lives Matter e LGBT, mas houve e ainda há uma guerra implacável contra a tentativa dos professores de meio turno e mal pagos de formar um sindicato. Os advogados contratados pelos administradores das universidades católicas travaram uma guerra total contra as tentativas de sindicalização dos trabalhadores que não têm salários que lhes permitam viver. Há uma hipocrisia muito forte entre as formas e a substância que, de fato, exigiria uma séria intervenção antimonopólio no mercado e a restauração da capacidade de legislar aos legisladores que não estão vendidos ao mercado. Não é como os escândalos italianos, nos quais, em determinado momento, surge algo que antes não se sabia. Aqui é tudo preto no branco, não é um segredo: a corrupção se tornou legal.
Na Itália e na Europa, recebemos muitas informações sobre os Estados Unidos, mas quanto dessa narrativa está ligada à realidade e quanto é fruto do período eleitoral que está se aproximando?
Raramente eu leio a imprensa italiana sobre os Estados Unidos, porque muitas vezes é evidente que o correspondente italiano dos Estados Unidos lê a imprensa estadunidense do dia anterior e adapta a reportagem para o público italiano. Não se faz muita reportagem original: os jornalistas italianos tendem a sair muito pouco de Nova York, de Washington ou do Vale do Silício para fazer investigações no sul dos Estados Unidos ou no Meio Oeste. Seria preciso ir um pouco mais par as férias desindustrializadas ou para a fronteira com o México.
Eu acho que, na Itália, assim como na Europa, há uma ansiedade justificada de se livrar de Trump, então há uma tendência a dar a ideia de que é urgente se livrar de Trump para sair dessa crise, o que é verdade, mas é só parte do problema. A verdadeira questão é que a crise começou há muito tempo. O empobrecimento da classe média, a questão da pobreza galopante e a distância entre os centros urbanos e os centros habitados não surgiram e não morrerão com Trump.
O que você quer dizer?
O trumpismo é fruto de paranoias ideológicas do conservadorismo estadunidense, mas é também a resposta ao fracasso de um modelo econômico e político neoliberal que não deve ser negado. O país está nessas condições há muito tempo. Não acho que haverá uma implosão armada ou uma guerra civil, mas está claro que os Estados Unidos não estão mais juntos como comunidade política e civil. A vida de cada um está compartimentada de modo muito claro de acordo com a renda, a identidade racial, étnica, social ou de acordo com as opiniões políticas. É muito raro encontrar ou compartilhar um espaço, um momento, um evento com alguém que não pertence à sua classe social ou nicho ideológico e religioso. Este não é mais um país unido. Existe uma crise de legitimidade muito forte. Quando a população não branca tem medo físico de não sobreviver a um controle rodoviário casual por parte da polícia, isso significa que há um problema muito sério. Para ficar claro, eu também tenho medo do que poderia acontecer se a polícia me parasse enquanto eu dirijo: há 20 anos, quando eu estava na Síria, eu não tinha medo da polícia síria como tenho medo da polícia estadunidense hoje.
O que aconteceu com o “sonho americano”?
Sempre foi um sonho. A minha vida profissional recebeu um impulso importante do mundo acadêmico estadunidense, mas vim morar nos Estados Unidos aos 37 anos, bem tarde, por sorte: nunca acreditei no “sonho americano” do modo como acreditam as pessoas, tanto de direita quanto de esquerda, que crescem aqui. Os Estados Unidos modernos são um país onde as pessoas morrem por doenças banais, onde a mortalidade infantil é muito maior do que em muitíssimos outros países, onde uma em cada cinco crianças vive na pobreza, e esse são dados de mais de 20 anos atrás que não mudaram. Além disso, hoje, há um ataque contra as próprias formas do sistema democrático, formas que são essenciais para o conteúdo da democracia.
Em que sentido?
Até Trump, havia a ideia de que o sistema econômico é injusto, mas existe uma Constituição, um sistema que podia ser usado para resolver os problemas. Agora, muitos não acreditam mais na reformabilidade do sistema, e se, por um lado, há os trumpistas, por outro há os antitrumpianos, com propostas utópicas, mas também infantis no seu desespero. O fato de intelectuais – pessoas que lecionam em universidades importantes – fazerem propostas tão irrealistas, tanto em sentido iliberal quanto ultraliberal (abolir totalmente a prisão, a polícia, a família tradicional etc...) é o sinal de que este país está em uma crise profunda. Temo que seja um processo difícil de frear.
O ataque a Trump e ao sistema estadunidense parece semelhante à Itália do passado, quando se atacava Berlusconi, como se um único homem fosse responsável por todos os males e, se ele fosse removido, o sistema poderia florescer novamente.
A diferença é que a Itália é um país periférico, não como os Estados Unidos, e que o berlusconismo era a tentativa de preencher o vazio deixado pela Democracia Cristã. Trump não quer preencher um vazio, mas voltar a um período em que os Estados Unidos eram um país de supremacia branca e cristã, a um país de 70 anos atrás ou do século XIX. O nível de ideologia reacionária do trumpismo é maior do que o do berlusconismo. Eu nunca tive nenhuma simpatia política pelo berlusconismo, Berlusconi era promotor de um projeto social e econômico de marca conservadora, mas não subversivo na mesma medida que Trump. Pode-se entender isso também a partir dos modos e da comunicação política. Berlusconi era o grande sedutor, o homem que queria agradar a todos dele. Trump não quer ser amado, quer ser temido, porque ele e uma certa parte da sociedade estadunidense têm essa ideia de que os não brancos devem ficar no seu lugar, assim como os não cristãos, é uma tentativa de rejeitar o processo de composição social, étnica e religiosa do país agora em andamento. Dito isso, temo que, se a cabeça de Trump for cortada, o problema estadunidense vai permanecer.
O seu relato retrata um país completamente diferente daquele que nos é descrito há anos.
Porque não se aprofunda mais como se fazia antigamente, quando os enviados imergiam nos Estados Unidos de verdade. Americanismo e antiamericanismo, ambos, se fundamentavam sobre uma base de mitologia, mas hoje acredito que falte ainda mais uma base de conhecimento deste país para além daquilo que se vê nos filmes ou na televisão das duas costas, a Costa Leste ou a Califórnia. A minha impressão é de que hoje a mídia italiana está muito ligada a lugares como Nova York, Washington ou o Vale do Silício, talvez a Califórnia e de vez em quando Miami, mas é no resto dos Estados Unidos onde se ganham ou se perdem as eleições. Eu passei sete anos no Meio Oeste e conheci uma parte dos Estados Unidos profundos, visível apenas lá, onde nasceram os nossos filhos.
Mas que percepção os estadunidense em geral têm de Trump? É um inimigo ou uma oportunidade de revanche?
Não acho que se possa fazer uma distinção precisa. É preciso levar em conta que os Estados Unidos médios não existem mais. Existem dois Estados Unidos, um democrático e um republicano com duas ideologias que se tornaram quase religiosas; não existe mais uma capacidade de juízo que esteja desvinculada desse sistema binário. Talvez haja uma zona cinzenta, na qual os democratas esperam muito derrotar Trump, mas é uma questão de comportamento eleitoral. É difícil encontrar um Estados Unidos que esteja desvinculado desse bipartidarismo.
Então, muitos voltarão a votar em Trump?
Acho que muitos vão votar nele, embora não gostem do personagem. O sistema dos dois partidos é o problema original: este é um mundo maniqueísta. Nesse sistema político, ou você vota em um candidato ou vota contra. É um mecanismo que permeia todo o sistema, da escola à religião, por toda a parte. O fechamento não é só social, mas precisamente antropológico. Existe o homo republicanus e o homo democraticus que têm coisas em comum, mas tendem a viver em mundos diferentes.
Eu gostaria de encerrar com uma impressão pessoal minha sobre a possível reeleição de Trump. Embora o presidente tenha sofrido uma queda acentuada de apoio, eu tenho a sensação de que, apesar de tudo, do lado democrata, não se conseguiu realmente perfurar a bolha do consenso e atacar na base o poder de Trump. O que você acha dessa consideração, por estar mais envolvido nos eventos?
Acho que a eleição de Trump ou não depende mais dele. Se nenhum evento externo traumático intervir, acredito que ele vai perder. Se ele ganhar, porém, acredito que, mesmo assim, isso não vai depender diretamente dele, mas sim de algum evento externo ligado à pandemia ou à segurança nacional. Trump é um personagem irredimível, e a campanha eleitoral é um jogo que escapou das suas mãos.
No entanto, isso também vale para Biden. Como eu disse no início, o Partido Democrata não tem uma ideia original adequada para este momento, não tem um candidato adequado, e aquele que eles têm foi escolhido com base na necessidade de unir o máximo possível após a derrota de quatro anos atrás. A eleição de novembro será entre dois passados, entre dois modelos com muitas incógnitas.
Trump poderia ser reeleito, mas acredito que a má gestão da emergência ou, melhor, a sua não gestão afetou fortemente até mesmo aqueles que votaram nele no passado. Aqui na Pensilvânia, onde ele ganhou, pouquíssimas escolas reabrirão em setembro e, se o fizerem, o farão online, com as crianças indo à escola dois ou três dias, ou apenas em meio turno durante a semana. Acredito que muitas mães conservadoras, “suburban moms”, que votaram nele em 2016, não votarão nele, e isso vai pesar. O problema das escolas que não reabrem será um problema para muitas mães que serão forçadas a deixar de trabalhar, e isso ajudará a levar a entender como foi falimentar a gestão Trump da emergência.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Estados Unidos, para além das bipolaridades. Entrevista com Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU