23 Agosto 2020
“A América está em uma encruzilhada. Em um momento de grandes perigos, mas também de possibilidades extraordinárias”, garantiu Joe Biden em seu primeiro discurso como candidato oficialmente investido para a corrida presidencial dos Estados Unidos em novembro. Com essas palavras, encerrou quatro dias de uma convenção democrata, realizada pela primeira vez por videoconferência, devido à crise sanitária provocada pela Covid-19. O programa de Joe Biden provavelmente mudará nas próximas semanas. Especialmente sob a influência de sua recém-nomeada vice-presidente Kamala Harris, considerada menos centrista. Mas a filosofia geral já está dada, bem como uma descrição das principais medidas para alcançá-la.
A reportagem é de Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 21-08-2020. A tradução é de André Langer.
Todo o programa econômico do ex-vice-presidente de Barack Obama parece estar voltado para um objetivo: reconstruir uma classe média estadunidense. De fato, “depois de ter estado um longo tempo no centro do modelo social americano, a classe média entrou em um processo de encolhimento ao longo das últimas décadas”, disse Anton Brender, economista-chefe da Candriam. Como apontou o Pew Research Center em 2018, a classe média agora representa apenas metade da população americana, contra pouco mais de 60% na década de 1970. Mas, acima de tudo, a diferença aumentou com os ricos ficando mais ricos e os pobres mais pobres.
Nessa lógica, o ponto mais saliente é o desejo do candidato de reintroduzir um pouco mais de progressividade no sistema tributário americano, deficiências que os autores Gabriel Zucman e Emmanuel Saez recentemente destacaram. Joseph Robinette Biden quer elevar novamente a alíquota das últimas faixas de IR de 37% para 39,6%. Pretende ainda introduzir um imposto sobre o rendimento do capital (dividendos, lucros) com a mesma taxa de 39,6% acima de um milhão de euros. “É uma medida menos ambiciosa que o imposto sobre a fortuna [proposto especialmente por Elizabeth Warren durante a campanha, nota do editor], mas que vai na direção certa para lutar contra a extrema concentração do capital”, admite o economista Emmanuel Saez.
Este objetivo moderado se explica especialmente, de acordo com Christophe Blot do OFCE, pelo fato de que “a pandemia levou Joe Biden a enfatizar mais a revitalização da economia por meio de despesas públicas do que através de uma reforma mais estrutural da tributação”. Ainda assim, “com as propostas de Joe Biden, o maior aumento de impostos recairá sobre os 1% mais ricos. (...) Este grupo enfrentará um aumento em seu valor tributário médio de 118.674 dólares”, observa o American Enterprise Institute em nota sobre a política tributária do candidato.
Pelo lado das empresas, o ex-senador por Delaware, onde reside, anunciou planos de aumentar a alíquota do imposto de renda das pessoas jurídicas de 21% para 28%. Era de 35% antes da eleição de Donald Trump. Aqui, novamente, a promessa pode parecer tímida, mas Joe Biden pelo menos inverte a tendência liderada pelo atual presidente republicano. “A administração Trump perseguiu políticas econômicas que recompensavam a riqueza mais do que o trabalho e as empresas mais do que os trabalhadores”, criticou o candidato em seu sítio de campanha. Concluindo, “as propostas fiscais de Biden eram as menos ambiciosas dos candidatos democratas nas primárias, mas ainda mais ambiciosas do que as de Clinton em 2016. Se Biden vier mesmo a aplicar o seu programa tributário por completo, a progressividade será maior do que a dos anos Obama e Clinton”, garante Emmanuel Saez… “mas ainda menor à progressividade anterior a Reagan”.
No total, esse programa de impostos arrecadaria quase 4 trilhões de dólares na próxima década, calcula a Tax Foundation. O suficiente para financiar o ambicioso plano de investimentos desejado por Joe Biden para a retomada dos Estados Unidos. Sua inspiração é esta: “Há um século, Franklin Roosevelt lançou seu New Deal em uma época de desemprego em massa, incerteza e medo. Atingido por uma doença, atacado por um vírus, ele garantiu que se recuperaria e triunfaria, e ele acreditava que a América também poderia. Ele conseguiu, e nós também podemos”, explicou.
Sob a influência da ala esquerda de seu partido, e em particular da deputada Alexandria Ocasio Cortez, o candidato democrata realmente se convenceu (talvez ajudado pela pandemia) de que um New Deal verde era fundamental. Ele planeja injetar 1,7 trilhão de dólares na transição energética em dez anos. “A importância dada à questão climática constitui a mais forte ruptura de Joe Biden em relação aos programas anteriores do Partido Democrata, seja no governo Clinton ou mesmo Obama”, estima Gilles Moëc, economista-chefe do grupo AXA IM, para quem este plano “recorda os grandes programas tecnológicos americanos implantados nos anos 1960, no contexto especialmente da conquista espacial”. Se Joe Biden provavelmente ainda dá muita importância a soluções técnicas cuja relevância está longe de ser certa, como o carro a hidrogênio, seu desejo de atingir a neutralidade de carbono em 2050 e de aderir novamente ao Acordo de Paris permitiria, se for eleito em novembro, colocar novamente os Estados Unidos na corrida face à luta contra o aquecimento global.
Além dos bilhões de dólares anunciados para a transição energética, Joe Biden planeja gastar para revitalizar o tecido industrial americano graças ao comando público. Os 400 bilhões de dólares de seu programa “buy American” visam, assim, fortalecer a demanda por produtos americanos, e prevê, entre outras coisas, o endurecimento dos critérios para que um produto seja considerado “made in America” (basta hoje que 51% dos componentes tenham sido produzidos no território). Outros 300 bilhões de dólares serão destinados à inovação. “Antes da crise da Covid, a desaceleração da inovação e da produtividade americanas já era um problema. Biden baseia-se nesta situação de estagnação secular teorizada por Larry Summers para justificar um esforço de investimento público sem precedentes”, explica Gilles Moëc.
O objetivo? Preencher o caderno de pedidos das empresas americanas (com foco nas pequenas e médias empresas) e criar novos empregos remunerados na indústria e nos setores de ponta para fortalecer uma classe média em declínio. Pelo menos 5 milhões, acredita o candidato. “Biden não aceita a visão derrotista que consiste em acreditar que as forças da automação e da globalização nos impedem de manter os empregos sindicalizados e bem remunerados, e inclusive de criar novos, nos Estados Unidos”, pode-se ler em seu sítio de campanha. “Este é um programa tipicamente socialdemocrata”, resume Anton Brender. Daí a importância também atribuída ao fortalecimento do poder dos sindicatos, particularmente fracos nos Estados Unidos.
O programa do candidato também prevê um aumento progressivo do salário mínimo federal para 15 dólares por hora, ou seja, mais que o dobro do seu valor atual (7,25 dólares). Esse aumento terá um impacto diferente de um Estado para o outro, já que a Califórnia, por exemplo, já introduziu um salário mínimo por hora muito mais alto do que o federal e planejava atingir o patamar de 15 dólares a partir de 2022. “Se for acompanhado de medidas de qualificação e de ajudas de reconversão, o programa de Joe Biden chegará na hora certa: a criação de empregos mais qualificados para aqueles que a pandemia acaba de condenar ao desemprego evitaria que a pressão sobre os empregos da base da escala não se fortalecesse mais e, com o aumento do salário mínimo ajudando, os salários da base da escala poderiam finalmente aumentar”, explica Anton Brender, antes de relativizar: “esta é a teoria. Agora será necessário ver como isso se traduz em fatos”.
“Aí onde Donald Trump tentava resgatar empregos por meio de uma política protecionista, Biden opta por um mecanismo mais positivo de geração de empregos por meio de uma ambiciosa política de investimentos públicos que visam estimular o desenvolvimento de atividades futuras”, compara também o economista. Indicou querer seguir uma “política externa para a classe média”, sem dar, por enquanto, mais detalhes sobre quais serão as modalidades concretas. O desejo de reduzir a dependência da China é, no entanto, claramente afirmado.
Na área da saúde, Joe Biden diz que quer “dar a todos os americanos o acesso a uma cobertura de saúde acessível”. Enquanto Bernie Sanders defendia a criação de um seguro saúde universal ao estilo do modelo europeu (ou seja, “Medicare for all”), Biden prefere manter o sistema atual adicionando um novo programa público. Este programa deve beneficiar especialmente as famílias residentes em Estados que ainda não aplicaram a extensão pretendida por Barack Obama dos critérios de acesso ao programa Medicaid, que permite aos mais precários ter acesso ao seguro a uma taxa preferencial.
Joe Biden também quer, por outro lado, reduzir o limite de acesso ao Medicare (o programa de seguro de saúde público para idosos) de 65 para 60 anos. Também pretende ampliar as condições de acesso ao crédito tributário para financiar seu seguro saúde, hoje reservado para famílias com renda inferior a 400% da linha de pobreza federal. E isso para que “nenhuma família gaste mais de 8,5% de sua renda com seguro saúde privado”. Em suma, o candidato democrata vai além do Obamacare, mas não é tão pró-ativo quanto a ala esquerda do Partido Democrata poderia esperar. “Joe e eu discordamos sobre como alcançar a cobertura universal, mas ele tem um plano que vai expandir muito a cobertura médica e reduzir os custos de prescrição”, admitiu Bernie Sanders em seu discurso na convenção democrata. É difícil esperar menos depois de sair de uma pandemia.
No curto prazo, para limitar o impacto do coronavírus na economia americana, Joe Biden prometeu tornar os testes gratuitos, bem como quaisquer tratamentos ou vacinas futuras, e estender a aplicação das modalidades mais favoráveis de compensação desemprego decidida no início da crise até pelo menos o início de 2021. “A continuação dessas medidas de ajuda é um consenso entre os democratas, mas ainda não há uma proposta para reformar o seguro-desemprego depois da Covid, pondera Ioana Elena Marinescu, economista, professora da Universidade da Pensilvânia. O que implicaria a atribuição de novos financiamentos de forma permanente aos Estados que administrarem o seguro-desemprego e que, obrigados por um imperativo de equilíbrio orçamentário, encontram-se agora em grandes dificuldades financeiras”.
Os republicanos, por sua vez, quiseram interromper essas medidas de apoio no final de julho, e, atualmente, opõem-se à sua retomada no âmbito das discussões no Congresso sobre a próxima parte do pacote de estímulos. Por fim, Joe Biden quer garantir que qualquer pessoa doente com Covid-19 possa se beneficiar da licença médica. Ele quer encorajar o uso do desemprego parcial. “O dispositivo já existe no país, mas é desconhecido pelas empresas e, por isso, pouco utilizado. Há esforços para torná-lo mais operacional”, explica Ioana Marinescu.
Ambicioso sem ser radical, “Sleepy Joe” [Joe, o dorminhoco], como Donald Trump o apelidou, mostrou sua determinação na convenção. Ele tem um programa econômico que acolheu algumas medidas da esquerda do Partido Democrata, mas que também visa seduzir os republicanos que relutam em votar novamente no atual inquilino do Salão Oval.
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Joe Biden quer recriar uma classe média nos Estados Unidos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU