08 Agosto 2019
"Em um momento de crescente balcanização católica sobre as questões LGBT, o livro é mais do que uma lufada de ar fresco. É um manual que todos os cristãos LGBTQ progressistas podem usar para redefinir as conversas rompidas com os tradicionalistas em suas próprias comunhões", escreve Cristina Traina, teóloga, professora da Northwestern University, em artigo publicado por New Ways Ministry, 07-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Capa do livro "Scripture, Ethics, and the Possibility of
Same-Sex Relationships" (Eerdmans), de Karen R. Keen
Imagine que você possa se reunir com a comissão episcopal da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos que projetou o site “Marriage: Unique for a Reason” [Casamento: único por uma razão]. Mesmo que, para se certificar, você indicasse algumas falsas declarações e ações dolorosas dos bispos dos EUA em relação às pessoas LGBT, imagine que você também tenha podido alcançar um nível de diálogo profundo que foi além do “não!” e do “sim, mas…” até chegar ao “sim e…”, afirmando muitas das crenças profundamente arraigadas dos bispos sem comprometer as suas próprias. Você poderia elogiar e celebrar o milagre da majoritária atração masculino-feminina e da união no casamento procriativo e a minoritária variação da atração e da parceria entre pessoas do mesmo sexo.
A autora evangélica Karen R. Keen realiza isso e muito mais em seu livro muito bom de ler intitulado “Scripture, Ethics, and the Possibility of Same-Sex Relationships” [Escritura, ética e a possibilidade de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo]. Em um momento de crescente balcanização católica sobre as questões LGBT, o livro é mais do que uma lufada de ar fresco. É um manual que todos os cristãos LGBTQ progressistas podem usar para redefinir as conversas rompidas com os tradicionalistas em suas próprias comunhões. E nós, católicos, podemos fazer isso usando métodos testados e verificados que se encontram (surpresa!) na própria Bíblia.
Para se ter uma ideia de todo o argumento de Keen, leia a resenha entusiasmada de Michael Sean Winters publicada no National Catholic Reporter. Neste espaço, eu quero destacar a possibilidade de que a prática de Keen de ler e discernir os textos bíblicos – que estão no centro dos debates evangélicos sobre a sexualidade – forneça um modelo para ler e discernir a lei natural e a teologia sacramental – que estão no centro dos debates católicos sobre a sexualidade.
Em primeiro lugar, Keen insiste que não devemos “ignorar certos textos das Escrituras simplesmente como arcaicos, sem verdades teológicas importantes”, nem “atribuir maior importância às particularidades do que ao propósito das leis”. E esse propósito, ela argumenta vigorosamente, foi “promover um mundo bom e justo” no tempo e lugar em que elas foram escritas. Por exemplo, a demanda de muito tempo atrás de que os estupradores se casassem com suas vítimas promovia a justiça ao assegurar o apoio de mulheres “arruinadas” que, de outro modo, não se casariam e ficariam destituídas. No nosso mundo, promover a justiça e a bondade envolveria uma sentença de prisão.
Do lado da lei natural, a condenação do sexo fora do casamento por Tomás de Aquino era semelhantemente contextual: ele repetidamente insistia que era um pecado contra a criança (que poderia ser) concebida, que – em uma época que legalmente não reconhecia os “bastardos” como herdeiros – ficariam privados do apoio de um pai.
Em segundo lugar, Keen emprega modelos de interpretação escriturística que ela encontra nos próprios textos das Escrituras. O Deuteronômio estende para as mulheres as regras do Êxodo sobre a libertação de escravos homens, expandindo o alcance da justiça. Marcos, Mateus e Paulo fazem importantes exceções às regras contra o divórcio e um novo casamento, reconhecendo que a infidelidade ou a deserção de um dos parceiros não deveria privar o outro de se casar novamente – o que era essencial não apenas para o florescimento emocional, mas também social e econômico. Jesus é retratado como alguém que rompe a observância do Sábado não para diminuí-lo, mas para enfatizar que curar os doentes e feridos era uma obrigação extremamente urgente. Em cada caso, os autores discerniram a interpretação da lei que promoveria a justiça e a bondade naquele lugar e naquela época.
Da mesma forma, durante séculos, os pensadores da lei natural católica romana condenaram a cobrança de juros sobre os empréstimos, para proteger os tomadores de empréstimos e evitar a ganância. Mas, com o advento do capitalismo, eles aceitaram os juros justos, reconhecendo o papel essencial (e o risco) dos investidores em uma economia monetária. Aqui também as interpretações se ajustaram para preservar a justiça, em vez de manter a antiga regra.
Finalmente, Keen usa o próprio Paulo para qualificar uma afirmação tradicionalista comum baseada na Carta aos Efésios 5. O argumento é o seguinte: o casamento deve se limitar aos casais do sexo oposto porque eles prefiguram a união de Cristo, o Noivo, com a Igreja, sua noiva, no fim dos tempos. Ao contrário, aponta Keen, o próprio Paulo diz em Colossenses 2 que as festas, os dias de jejum e outras observâncias perdem importância diante de Cristo, que é o coração da fé. Paulo acrescenta:
“‘Não pegue, não prove, não toque’? Todas essas coisas se desgastam pelo uso. E essas proibições são preceitos e doutrinas de homens. Tais regras de piedade, humildade e severidade com o corpo têm ares de sabedoria, mas na verdade não têm nenhum valor, a não ser a satisfação da carne” [trad. Bíblia Pastoral; Cl 2,21-23].
Em essência, Paulo argumenta: não adore o regulamento. Adore a Deus, que é misericordioso e está preocupado com a necessidade humana.
É claro, a teologia do matrimônio católica romana erige uma barreira para as uniões entre pessoas do mesmo sexo que os evangélicos não erguem: o sacramento do matrimônio. Mesmo assim, Keen nos ajuda a ver que os elementos do simbolismo do matrimônio estão enraizados em uma teologia problemática. Se a Igreja é para Cristo como a noiva é para o noivo, isso não coloca os maridos no poder acima de suas esposas? Esse simbolismo é apropriado para o casamento como uma união entre iguais?
O livro de Keen é revolucionário da maneira mais tradicional possível: ela usa os próprios textos e práticas do cristianismo para honrar e afirmar as intuições em interpretações de longo alcance e para abrir espaço para novas interpretações. Ela encerra com um convite:
“Eu o convido a dialogar comigo. À medida que continuamos a conversa, que Deus nos conceda sabedoria, graça e caridade.”
Alerta de spoiler: Karen Keen é uma diretora espiritual evangélica formada em discernimento espiritual inaciano e com estudos em Escrituras pela Marquette University, entre outras instituições. Então, talvez não seja surpreendente que a abordagem dela ao assunto ressoe com a desta blogueira católica! Mas essa é apenas mais uma razão para parabenizá-la. Se a abordagem de Keen for sentida como confortável tanto pelos evangélicos quanto pelos católicos, isso contribuirá para o esforço de superar as divisões entre as Igrejas, assim como dentro delas – um duplo êxito impressionante.
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Um manual LGBT para superar a divisão entre conservadores e progressistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU