17 Agosto 2020
"Somente à luz do Redentor conseguiremos enxergar o caminho indicado pelas mulheres que exercem a prostituição e nos deixar inquietar pelas injustiças apresentadas e vividas. Missão Oblata no mundo é anunciar a vida plena, denunciando todas as estruturas que geram ‘violências’, opressão e morte", escreve Lucinete dos Santos, Assistente Social, da Rede Oblata Brasil e da Unidade Diálogos Pela Liberdade, em artigo publicado por Rede Oblata Brasil e reproduzido por Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC, 13-08-2020.
“Se todas as portas se fecham, eu lhes abrirei uma” (Pe. Serra)
Diante da frase do Pe. José Maria Benito Serra, fundador do Instituto das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, iniciamos a nossa reflexão sobre “o novo normal” – realidade de pandemia que chegou de mansinho e tem afetado todas as estruturas humanas, sociais e ecológicas do planeta. Contudo, não podemos deixar de mencionar que a natureza tem conseguido ‘respirar’, o que foi possível graças ao nosso distanciamento. Se vivêssemos numa “Ecologia Integral = família humana + casa comum”, onde existisse equilíbrio, respeito e sustentabilidade provavelmente estaríamos vivendo melhor, sendo inclusive sinal de maturidade. Acredito que a natureza tem muito a nos ensinar nesse momento histórico para a Humanidade.
Que o Brasil é um dos países mais desigual do mundo, todas/os o sabemos. Provavelmente a interpretação de tanta desigualdade seja compreendida de formas diferentes. Atualmente tem se tornado cada vez mais comum no Brasil, e porque não dizer em tantos outros países, a justificação da desigualdade através de um “senso comum” raso, fundamentado em assombrosos desatinos políticos, que não tem feito outra coisa senão reforçar a negação de direitos humanos, políticos e sociais, por meio do autoritarismo/fascista e do ideal de onipotência que direta ou indiretamente seleciona as vidas que devem morrer ou viver (necropolítica).
Diante desse cenário o conceito de “meritocracia”– justificativa do “sucesso” ou “fracasso” do indivíduo medido exclusivamente pelo “esforço” pessoal sem levar em conta as dificuldades de acesso aos direitos fundamentais e as violências estruturais – se alastra. Quando se fala em violações de direitos fundamentais, o provimento de necessidades básicas, alimentação, por exemplo, pode soar como assistencialismo. Visto por outro ângulo, na realidade que vivemos, pode ser o necessário naquele momento para que a mulher consiga continuar vivendo, o que não desassocia do nosso objetivo de promoção da vida, ao contrário, nos leva a compreender a complexidade da vida e encontrar medidas eficazes para a resolução dos problemas demandados.
Há mais ou menos quatro meses, a realidade tem nos surpreendido ao impor o isolamento social como medida de prevenção contra a proliferação do coronavírus e pressuposto de ‘continuar vivendo’. A partir daí nossos projetos tiveram as portas (físicas) fechadas e de nossas casas continuamos trabalhando ‘Home Office’, virtualmente, mas com os nossos sentidos aguçados nos “gritos” de tantas mulheres desesperadas, desamparadas e desesperançadas que nos pedem socorro.
Em Belo Horizonte, atuamos no Hipercentro da capital mineira, onde está situada a sede da Unidade Oblata Diálogos pela Liberdade. Nessa região, também conhecida como “Sobe e Desce”, mais de 3 mil mulheres exercem a prostituição nos hotéis da Rua Guaicurus e arredores. Encontramos mulheres de toda parte do país. É comum atendermos mulheres que são acompanhadas pelas unidades da Rede Oblata Brasil nos estados da Bahia e São Paulo. A prostituição na região é marcada por uma alta rotatividade.
Ao traçarmos o perfil geral do público atendido, temos:
Mulheres cisgênero;
– Faixa etária: 18 a 73 anos; Raça/cor/etnia: negras (grande maioria);
– Escolaridade: de analfabetas ao ensino superior completo (no geral a grande maioria não terminou o ensino fundamental);
– São mães (primeira gestação ainda na adolescência);
– São as principais responsáveis pelo sustento da família (monoparental feminina).
Segue um trecho de uma entrevista de Leandro Karnal que resume o que temos vivenciado no atendimento às mulheres nesse período de pandemia:
“Sempre fomos uma sociedade desigual. A epidemia revelou de forma quase violenta a realidade. Não há como fazer isolamento social em espaços reduzidos. Não há reservas financeiras ou de comida que permite a uma família de uma comunidade ficar fechada. As classes média e alta enfrentam o tédio, tensão familiar e administração das neuroses cotidianas. Classes baixas enfrentam fome, perda de emprego e sensação de fim de vida. Se a gente conseguir transformar essa constatação em um projeto político, teremos avançado um pouco em meio à dor”.
Com o fechamento dos hotéis, os problemas vivenciados pelas mulheres se desvelou de forma assombrosa, o que nos fez compreender a crueldade do sistema capitalista, que fundamentado em alicerces patriarcais/machistas, classistas, racistas, podem tornar a realidade ainda pior do que a que presenciamos cotidianamente nos atendimentos em nossos projetos.
No Brasil, o governo ampliou as ações de Assistência Social a nível Federal, com o Auxílio Emergencial, aonde as mulheres podem receber uma renda de R$ 600,00 ou R$ 1.200,00 (se mães solo). Em Minas Gerais, o governo Estadual disponibilizou a Bolsa Merenda (R$ 50,00) para cada aluno matriculado em escolas estaduais, enquanto no município de Belo Horizonte as famílias cadastradas no CadÚnico recebem uma cesta básica mensal, com duração de 4 meses podendo se estender a mais dois meses, o que tem acontecido.
Como percebemos, para ter acesso aos benefícios sociais precisa-se estar dentro dos critérios estipulados. Muitas mulheres se enquadravam nos critérios, porém não tinham os instrumentos legais para acessar o benefício. As dificuldades são diversas, desde não estarem cadastradas no CadÚnico (ou cadastro desatualizado, não receberem o Benefício Bolsa Família), à falta de documentos (erros, documentos desatualizados/cancelados, etc.). Sem contar os problemas apresentados no manuseio de aparelhos tecnológicos (celular) o que tem sido fundamental para acesso aos programas virtuais do governo, como é o caso do aplicativo “Caixa Tem” da Caixa Econômica Federal. O que não é de se estranhar são as demoras e problemas nesse sistema que não suportando a sobrecarga tende a dar erros constantes, o que continua acontecendo.
Percebemos que as mulheres têm sido bem assistidas no acesso a cestas básicas de várias organizações da sociedade. Atualmente temos conseguido cadastrar mulheres que trabalham na prostituição para ter direito as cestas básicas pela Prefeitura de Belo Horizonte, o que tem sido de grande ajuda, pois a grande maioria reside na região metropolitana, o que é um dificultador para o acesso. Entre as várias organizações que se mobilizaram para auxiliar as mulheres desassistidas, destacamos os coletivos (Clã das Lobas e Rebú), e a APROSMIG (Associação de Prostitutas de Minas Gerais). Essas organizações são lideradas por mulheres (cis e trans) que trabalham na prostituição e reivindicam direitos na atividade prostitucional.
As parcerias se fazem necessárias no desenvolvimento do nosso trabalho. Como o Estado não consegue embarcar todas as mazelas da sociedade, o que reconhecemos ser na maioria das vezes por falta de uma gestão eficaz e eficiente, ou simplesmente por comodismo dos gestores, nós, Missão Oblata, não conseguimos responder a todas as necessidades que demandam as mulheres, nosso público prioritário, mas podemos formar e fortalecer parcerias com instituições governamentais e não governamentais. Aqui entra um dos nossos objetivos que é a Sensibilização Social e o Advocacy. Compreendemos hoje a necessidade de refletirmos com os diversos setores sociais sobre a realidade das mulheres que exercem a prostituição. A Rede Oblata tem crescido nessa compreensão. Se não formamos as nossas parcerias para atendimento das mulheres encaminhadas significa que elas sofrerão mais uma vez com o estigma e o preconceito, inclusive de setores governamentais. O estigma tende a marcar a subjetividade das mulheres de forma tão cruel que a mesma acaba introjetando e vivendo da forma como foi ‘reconhecida’, o que chamamos de auto-estigma.
A grande maioria das mulheres que atendemos não possuem casa própria. Essa é mais uma grande lacuna em suas vidas. Muitos foram os casos de mulheres que tinham alimentação, mas precisavam do Auxílio Emergencial para pagar o aluguel, com ameaças de serem despejadas. Com os problemas para acessar o benefício do governo muitas continuam trabalhando em plena pandemia. Como não se é de estranhar a forma de atuação e cooptação do sistema, não faltaram iniciativas de proprietários/as de hotéis oferecendo a oportunidade de “ganhar um dinheirinho rápido” e resolver o problema: “…. Então vocês têm que vir, senão não tenho como abrir. Porque o homem está entrando aqui no hotel, procurando mulher, mas não tem. Então vocês têm que dar um jeito de vir. Senão não tenho como abrir o hotel. ” (dona de hotel).
A realidade das mulheres que trabalhamos é marcada pelo sofrimento social. Como bem conceitua a socióloga Carla Bronzo, dialogando com o pensamento de Amartya Sen e outros pesquisadores da área, precisamos ampliar nossa compreensão de pobreza para além da falta de renda (pobreza objetiva), o que é um grande problema, sem dúvida, mas compreender também a pobreza como a falta de dignidade, capacidades e privação de liberdade (pobreza subjetiva). Contudo, falar de pobreza é falar de um problema “multidimensional, heterogêneo e psicossocial”, o que podemos constatar nas entrelinhas da frase da dona do hotel.
Em Belo Horizonte, a maioria dos estabelecimentos ainda se encontram fechados, mantém-se abertos os considerados essenciais (farmácias, supermercados…). Muitos hotéis de prostituição do Hipercentro estão abertos, o que por sinal não é de se estranhar, uma vez que persistiram e persistem mesmo quando a situação pandêmica na cidade está em alerta com o aumento dos casos de contaminação e óbitos. Sei que as mulheres precisam trabalhar, como muitas delas defendem, até mesmo porque a situação de privação é extrema (pobreza objetiva e subjetiva).
A crítica aqui é sobre a audácia dos estabelecimentos, além de não serem ‘regulamentados’ (de acordo com o código penal brasileiro), são considerados espaços “essenciais” que devem permanecer abertos para atendimento da população. Que população? Eu me pergunto: Essenciais a quem? O número de desempregados tem crescido consideravelmente. Muitas pessoas de outros estabelecimentos comerciais têm perdido o emprego, e ainda assim esses espaços continuam fechados por ordem governamental. Percebe-se que os hotéis de prostituição funcionam como que num “Estado de Exceção”. Ainda mais quando as vidas colocadas em risco são as de mulheres que são vítimas de um sistema complexo de desigualdades múltiplas como as relatadas anteriormente.
Recordo da ligação de uma mulher desesperada ao saber que suas colegas estavam trabalhando no auge da proliferação do vírus. Ela dizia: “se muitas pessoas estão morrendo por causa dessa pandemia sem o atendimento que devia ter, imagine nós que somos prostitutas. Ai que eles vão deixar morrer mesmo! ”. Faço minhas, as perguntas de Judith Butler: “…em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida? De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em absoluto uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam consideradas choráveis e outras não?”.
Enfim… “Se todas as portas se fecham, eu lhes abrirei uma”. E realmente uma porta foi aberta e a partir dessa muitas outras se abriram. Em tempos de Pandemia as portas abertas são as do coração. A profecia do Pe. Serra se fundamenta no ideal evangélico de Cristo. Essa é a Missão Oblata no mundo, atuando como “Corpo Congregacional” nas “fronteiras geográficas, existenciais e virtuais” e para além delas, pois acreditamos na “utopia” de uma vida plena. É a própria audácia do Espírito que nos impulsiona na caminhada e na luta de “Viver e deixar viver”. Somente à luz do Redentor conseguiremos enxergar o caminho indicado pelas mulheres que exercem a prostituição e nos deixar inquietar pelas injustiças apresentadas e vividas. Missão Oblata no mundo é anunciar a vida plena, denunciando todas as estruturas que geram ‘violências’, opressão e morte.
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Rede Oblata: atendimento às mulheres em tempos de pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU