A volatilidade de renda das famílias é muito grande e isso faz com que se perceba mal o tamanho da pobreza e da extrema pobreza no Brasil, diz o sociólogo
Os efeitos econômicos e sociais da pandemia de covid-19 indicam que o Brasil precisa de um novo modelo de proteção social e de um programa de transferência de renda mais amplo e generoso do que o Bolsa Família. Alguns, inclusive, defendem que a discussão política sobre o tema precisa considerar as transformações em curso no mundo de trabalho e é uma oportunidade para a criação de um programa de renda universal incondicional. O tema, contudo, divide os especialistas.
Enquanto não se chega a um consenso político sobre como será o desenho do novo programa de transferência de renda, o sociólogo Luis Henrique Paiva sugere a implantação de um modelo transitório que, segundo ele, vai permitir que as famílias recebam uma assistência. “Se quisermos debater e fazer um processo político de proteção social nesse nível [mais amplo e generoso], o ideal seria que tivéssemos alguma proteção social que nos levasse até lá. E quanto tempo vai demorar? A nossa avaliação sugere que será muito difícil vencer todos os obstáculos políticos para montar esse novo modelo de proteção social em menos de um ano. Então, a criação de um benefício temporário basicamente nos daria espaço para fazer essa discussão de forma adequada e não nos forçaria a tentar aprovar alterações no afogadilho”, argumenta.
Favorável a programas de transferência de renda para reduzir os índices de pobreza no país, Paiva diz que a proposta de uma renda universal sem condicionantes tem elementos “interessantes” e vai na linha de propostas que já estão sendo discutidas no país, como uma transferência universal para as crianças, mas adverte que é preciso olhar para as dificuldades em implementá-la. “Hoje, se quisermos pagar algo em torno de 200 reais para cada brasileiro, que não é nenhuma transferência excepcional, dependeria de gastar algo em torno de 7% do PIB por ano. Não adianta fazer conta mágica, é praticamente impossível; é basicamente como criar um novo regime geral de previdência social, que é caríssimo. Algo em torno de 2 ou 3% do PIB é factível, mas algo em torno de 7% não me parece factível. Quero ter uma discussão equilibrada a esse respeito e não estou fazendo uma crítica à renda básica incondicional”, menciona. E acrescenta: “É fácil apontar para um programa e ver problemas, mas na hora em que se tenta implementar um programa novo, os problemas aparecem. Enquanto isso, ficamos elogiando um conceito, porque a renda básica universal, hoje, é um conceito”.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Luis Henrique Paiva explica a importância dos programas de transferência de renda no Brasil, sua proposta de um programa transitório e descreve as particularidades da pobreza no país, que afeta principalmente crianças e seus pais, e negros. “A taxa de pobreza entre as crianças até 15 anos é duas vezes maior do que a média nacional e entre oito e dez vezes maior do que a taxa observada entre os mais velhos”, informa.
Luis Henrique Paiva (Foto: Anesp)
Luis Henrique Paiva é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e em Política Social pela Universidade de Southampton, no Reino Unido, e doutor Sociologia e Política pela UFMG. Atualmente é diretor do Cadastro Único para Programas Sociais, do Ministério do Desenvolvimento Social e professor do curso de mestrado em Administração Pública do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.
IHU On-Line - Qual é a origem dos programas de transferência condicionada de renda? Como e com qual objetivo foram implementados no Brasil?
Luis Henrique Paiva – Até onde se sabe, essas transferências condicionadas de renda – que são feitas para famílias e não para indivíduos, exigindo alguns comportamentos das famílias, como ir ao médico e levar os filhos à escola – surgiram em Brasília, Campinas e Ribeirão Preto, como experiências particularmente pequenas. Em Campinas, por exemplo, pouco mais de duas mil famílias recebiam o benefício. Mas esses programas surgiram com um motivo duplo: aliviar a pobreza e tentar evitar que as famílias pobres gerassem filhos com pouca escolaridade, os quais seriam pobres como os pais, com o objetivo de desarmar a armadilha da pobreza. Isso surgiu no Brasil na década de 1990 e passou a haver um debate grande desde que Eduardo Suplicy começou a pautar, dentro do Congresso, a questão de uma renda mínima. O Brasil sempre foi, historicamente, um país com muita pobreza, especialmente pobreza infantil. Assim, a pauta da renda mínima acabou sendo absorvida dessa forma.
O México foi o primeiro país que colocou em prática essa política em nível nacional, com o Progresa, em 1997. O Brasil só teve um programa condicionado de renda no final dos anos 2000, no governo Fernando Henrique Cardoso. Na metade do penúltimo ano do governo houve o acesso ao Bolsa Escola Nacional e, dali para frente, outros programas de transferência condicionada de renda, como o Bolsa Alimentação. Basicamente essa é uma parte da história que deu origem ao Bolsa Família.
IHU On-Line - Que percentual da população brasileira precisaria receber algum tipo de transferência de renda do Estado hoje e qual é o perfil desta população, considerando que especialistas têm chamado atenção para a instabilidade dos informais em relação à renda?
Luis Henrique Paiva – A população pobre é formada, em geral, de crianças e seus pais, ou seja, famílias pobres no Brasil são famílias jovens. Os idosos são razoavelmente bem amparados por uma rede de proteção que é bem desenvolvida: a previdência e os benefícios sociais conseguem impedir que os mais velhos mergulhem na pobreza. Então, o aspecto mais importante da pobreza é que ela é composta pelos mais jovens, especialmente por crianças. A taxa de pobreza entre as crianças até 15 anos é duas vezes maior do que a média nacional e entre oito e dez vezes maior do que a taxa observada entre os mais velhos. Então, este talvez seja o traço principal: a pobreza brasileira é uma pobreza infantil e também alcança os pais dessas crianças, que são relativamente jovens. A pobreza também é negra: pretos e pardos juntos, na classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, formam pouco mais da metade da população brasileira e são mais de 70% dos mais pobres.
Uma das características que pouco se fala sobre a pobreza é que nós que somos de classe média – falo por mim – costumamos entender que os mais pobres têm uma única diferença em relação a nós: o fato de eles terem menos dinheiro, e na verdade não é exatamente isso. O que ocorre é que eles vivem uma insegurança financeira e uma insegurança alimentar. Não é que eles sejam permanentemente pobres – há muitas pessoas que são permanentemente pobres, vivem numa pobreza crônica –, mas uma das características da pobreza brasileira é que ela é marcada por uma volatilidade de renda muito grande. Então, não é que algumas famílias sejam extremamente pobres o tempo todo, mas estão sujeitas a mergulhar na extrema pobreza o tempo todo. Geralmente, essas pessoas não têm segurança de trabalho, pois trabalham de modo informal. Por exemplo, quando chove, o lavador de carro não vai conseguir ganhar o suficiente para pegar um ônibus e voltar para casa, porque as pessoas não vão querer lavar o carro naquele dia, mas no dia seguinte ele pode ter um bom dia de trabalho. Ou seja, a situação é muito instável.
Tendemos a achar que os pobres são como nós, mas com muito menos dinheiro. Mas nós temos uma coisa que eles não têm: estabilidade. A maioria de nós que somos de classe média ou alta, tem uma vida bastante estável, com salário fixo, uma rede de proteção bem desenvolvida, pagamos previdência e seremos assistidos se perdermos o trabalho ou ficarmos doentes. Essas pessoas, não; elas estão sujeitas a uma volatilidade muito grande de renda e isso faz com que se perceba mal o tamanho da pobreza e da extrema pobreza no Brasil. Isso porque no momento em que se tira uma foto da pobreza, na pesquisa amostral, ela mostra a situação da pobreza naquela semana de realização da pesquisa; no entanto, quando se observa por meio de um painel mais amplo, se vê que a família que está na extrema pobreza numa semana, sai dessa situação na semana seguinte, porém outras famílias entram, mas mesmo assim aquela primeira família continua vulnerável e acabará voltando para a extrema pobreza.
Portanto, o número de famílias sujeitas à pobreza e à extrema pobreza no Brasil é bem maior do que o que vemos nas pesquisas amostrais. Em alguns estudos, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea estimou que o número real é aproximadamente o dobro, ou seja, duas vezes maior do que observamos. Cerca de 6% da população se encontra na linha de pobreza da classificação do Banco Mundial, ou seja, pessoas que vivem com 1,90 dólar por dia. Essa é a linha média nos 15 países mais pobres do mundo, que são países com baixa renda. Mas o Brasil não é um país de baixa renda; é um país de renda média, alta e, apesar disso, ainda tem um percentual tão grande de pessoas abaixo da linha que foi traçada para países muito pobres, como Serra Leoa, na África. É uma situação bastante vergonhosa para o Brasil.
IHU On-Line - Como avalia a discussão sobre a ampliação de programas de transferência de renda na sociedade brasileira daqui para frente, considerando que, de um lado, observamos os efeitos do gasto emergencial na vida das famílias que estão desempregadas ou não podem trabalhar e, de outro, manifestações de comerciantes que querem reabrir o comércio e dizem recusar a ajuda do governo? Programas de transferência de renda tendem a ter mais aceitação de agora em diante?
Luis Henrique Paiva – Gosto de lembrar de uma pesquisa do Ibope feita em 2014, no período eleitoral, sobre a opinião das pessoas acerca do Bolsa Família. Na ocasião, o programa teve uma aprovação de 3/4 dos eleitores, ou seja, é bem avaliado pela população. Do ponto de vista técnico, ele é extremamente bem avaliado, tem efeitos e impactos perceptíveis nos indicadores que se propõe a afetar e é uma referência internacional. Hoje, mais de 70 países têm algum programa desse tipo.
Eu tenho a impressão de que o auxílio emergencial apontou na direção de uma proteção social não contributiva mais ampla do ponto de vista horizontal, com uma cobertura maior e com benefícios mais generosos. O Bolsa Família tem uma cobertura razoavelmente ampla e alcança cerca de 20% da população brasileira, mas as transferências são muito modestas: em média, 190 reais por família. Esse valor mensal cumpre o papel de trazer alguma estabilidade para famílias muito vulneráveis, mas, de fato, isso não as sustenta e elas trabalham.
Em relação à resistência específica de grupos que querem reabrir o comércio, é muito difícil avaliar a situação, porque todos gostaríamos de voltar para as nossas vidas normais e ninguém quer viver no meio de uma anormalidade. Mas se tivéssemos levado mais a sério a questão do isolamento, provavelmente já teríamos voltado à vida normal. O que não dá é para ficarmos numa situação em que nem é feito um isolamento grande nem retomamos a economia, ou seja, estamos perdurando essa situação. Mas uma coisa que precisa ser levada em conta é que enquanto a crise pandêmica não estiver controlada não adianta reabrir o comércio, porque as próprias pessoas não se sentem seguras para sair e fazer grandes compras.
Estamos falando de percepções e percepções são falhas, então, falo da minha percepção, que pode estar enviesada, mas avalio que o auxílio emergencial acaba apontando na direção de uma proteção social que é mais ampla do ponto de vista da cobertura horizontal e paga benefícios menos modestos do que os pagos hoje pelo Bolsa Família. O auxílio emergencial é importante, veio num momento fundamental e não adianta acabar com ele de uma hora para a outra, porque ele está impedindo que o dano à economia seja muito maior do que já foi experimentado. Não adianta dizer que é preciso acabar com o programa emergencial; quem vai comprar se não tiver uma renda mínima? A ocupação caiu drasticamente e isso só não se refletiu na faixa de desemprego porque durante uma pandemia ninguém sai procurando emprego, mas as estimativas do Ipea sugerem uma queda de dez milhões de postos de trabalho desde o início da pandemia. É uma queda brutal, por isso o auxílio é muito importante para garantir as condições mínimas de sobrevivência das famílias e também para a economia não afundar num ciclo vicioso: se não existe transferência de renda, as pessoas não compram, a indústria e o comércio demitem, menos pessoas têm dinheiro, ou seja, podemos entrar num ciclo extremamente danoso para a economia.
IHU On-Line - Como avalia a proposta do governo federal de reunir todos os programas sociais existentes no Programa Renda Brasil? O senhor e outros pesquisadores do Ipea dizem que um novo modelo de renda básica precisa superar armadilhas do passado e alertam para a necessidade de não ficarmos reféns de dogmas que podem deixar milhões de pessoas na pobreza enquanto se reinaugura um debate de distribuição de renda que já está fadado ao fracasso. Que questões precisam ser consideradas e discutidas?
Luis Henrique Paiva – O ponto fundamental é que a discussão em políticas públicas raramente é linear, ou seja, se aprendemos alguma coisa, não vamos voltar a discuti-la, a não ser que exista uma nova evidência, mas nesse caso não existe evidência nenhuma. As pessoas retomam algumas discussões e às vezes temos a sensação de que estamos vivendo o mesmo dia novamente, ou seja, acordamos e estamos presos nas mesmas discussões. Algumas delas particularmente incomodam, como ficar falando sobre a necessidade de passar um pente-fino para verificar quem recebe os benefícios. O governo faz e tem a obrigação de fazer esses procedimentos e isso resulta, no caso do Bolsa Família, num dos programas mais bem-sucedidos da América Latina, então por que temos de ficar falando nisso o tempo todo? Isso é uma obrigação do governo.
Também ficam falando sobre fraudes nos programas sociais, mas os piores casos de fraudes, que na verdade são possíveis fraudes, não alcançam 1% do auxílio emergencial. Sempre vai acontecer algum tipo de problema em toda e qualquer política pública e temos que lidar com ele, mas não podemos ficar reféns de um discurso, como se a grande função dos programas de transferência de renda fosse fazer um pente-fino; a grande função desses programas é aliviar a situação de pobreza.
Existem outras questões que aparecem com frequência, como a de focalizar mais os programas ou usar preditores de renda, porque não se pode trabalhar com renda declarada; questões como essas são recorrentes e para as quais já existem evidências. Boa parte dos especialistas gostaria que essas discussões tivessem sido superadas porque, do ponto de vista técnico, elas já foram superadas, mas do ponto de vista político estamos sempre nas mesmas discussões. Uma delas, por exemplo, é a de que em vez de fazer transferência de renda, é preciso melhorar a condição de trabalho das pessoas. Ora, por que ninguém melhorou a condição de trabalho das pessoas? Porque a economia vai precisar crescer muito, durante muitos anos ou décadas, para que todos tenham acesso a um emprego decente. Enquanto isso, se quisermos ter uma vida minimamente decente, o Estado vai ter que tributar alguns e transferir dinheiro para outros. É assim que funciona. Aliás, é assim que funciona em todo o mundo.
As pessoas adoram viajar para a Europa porque lá não tem pobreza. Os países europeus reduziram a pobreza drasticamente e elevaram o nível de vida dos mais pobres a um patamar de dignidade. Mas como eles fizeram isso? Com transferência de renda. Nos países do mundo em que a pobreza é baixa, ela foi reduzida por meio de transferência de renda e tributação dos mais ricos. Enquanto vivermos em um mundo em que não se pode tributar os mais ricos e transferir para os mais pobres, viveremos num mundo de extrema desigualdade. Temos que lembrar que o Brasil é o sexto país com o índice de desigualdade mais alto do mundo. É ruim acordarmos e vermos que o debate está parado, que temos menos progresso do que gostaríamos. Mas temos algum progresso, não podemos negar isso. Se observarmos o que era a proteção social há trinta anos e o que é hoje, perceberemos que houve um progresso. Obviamente gostaríamos que o processo fosse mais rápido.
IHU On-Line – Em artigo recente, o senhor e outros pesquisadores afirmaram que realisticamente, com apoio da classe política, será possível chegar a um modelo de transferência de renda capaz de atender dignamente os 50% mais pobres da população. Por que realisticamente só parece ser possível atender esse percentual?
Luis Henrique Paiva – Das projeções que realizamos, se fosse feito um esforço fiscal, seria possível beneficiar os 50% mais pobres da população, ou seja, fazer uma transferência para metade da população. Para isso, seria preciso um esforço brutal muito grande e uma elevação da carga tributária, mas essa pode ser uma elevação que aumente a produtividade: se reduzíssemos o emaranhado que é a legislação brasileira de impostos sobre bens e serviços e fizéssemos com que esses impostos fossem unificados no Imposto sobre Valor Agregado - IVA, que dê os estímulos adequados para a produtividade, me parece que uma elevação modesta da carga tributária pode ter, num contexto como este, um impacto que é extremamente vantajoso para o crescimento econômico. Alguma coisa também se pode fazer aumentando as alíquotas marginais do imposto de renda, ou seja, fazendo com que os ricos paguem mais imposto de renda. Talvez por aí seja possível criar uma transferência de renda mais ampla.
IHU On-Line – Na discussão sobre a manutenção ou não do auxílio emergencial, o senhor e outros pesquisadores do Ipea defendem a adoção de um programa temporário de transferência de renda de 12 a 18 meses, como uma transição do auxílio emergencial para um formato permanente. Pode explicar essa proposta?
Luis Henrique Paiva – O ponto principal é o seguinte: até onde conseguimos ver, a criação de um novo modelo de proteção social não contributivo no Brasil não vai acontecer em dois meses. O auxílio emergencial acaba em dois meses, mas a criação de um novo modelo de proteção social horizontalmente mais amplo e um pouco mais generoso do que o atual, provavelmente vai exigir unificação de programas, alterações constitucionais, talvez alterações tributárias, ou seja, é uma discussão ampla que não vai ser resolvida em poucos meses. Então, se quisermos debater e fazer um processo político de proteção social nesse nível, o ideal seria que tivéssemos alguma proteção social que nos levasse até lá. E quanto tempo vai demorar? A nossa avaliação sugere que será muito difícil vencer todos os obstáculos políticos para montar esse novo modelo de proteção social em menos de um ano. Então, a criação de um benefício temporário basicamente daria espaço para fazer essa discussão de forma adequada e não nos forçaria a tentar aprovar alterações no afogadilho.
Nesse sentido, existem algumas opções. A primeira é, acabado o auxílio emergencial, voltar para o Bolsa Família – mas vamos lembrar que o auxílio emergencial paga, por mês, o equivalente a uma vez e meia o que o Bolsa Família gasta em um ano inteiro. Como as famílias ainda estarão sentindo os impactos da pandemia, sair do auxílio emergencial e voltar para o Bolsa Família é praticamente inviável. Mas a segunda opção, que seria continuar pagando o auxílio emergencial, também parece muito difícil, porque o auxílio tem um impacto de 540 bilhões por ano; estamos falando de praticamente 7% do PIB, ou seja, é muito alto. Vamos ter que diminuir o valor do auxílio emergencial ou do programa que irá substituí-lo à medida que a atividade econômica for sendo retomada. Então, voltar para o Bolsa Família não me parece ser uma opção, mas continuar com o pagamento do auxílio emergencial também não é uma opção. Se não conseguirmos, do ponto de vista político, criar um consenso para mudar a proteção social não contributiva, a perspectiva é ter um benefício temporário que nos permita ter tempo para fazer essa reflexão.
IHU On-Line – Como tem que se dar essa discussão sobre a transferência de renda daqui para frente e que valor seria adequado, considerando a situação das famílias brasileiras que necessitam de uma renda complementar?
Luis Henrique Paiva – O que precisa ser pensado é o que a sociedade brasileira considera adequado. Qualquer programa de transferência de renda vai ter que ser financiado por meio do endividamento. Estamos numa situação extremamente crítica do ponto de vista econômico e não adianta querer equacionar questões fiscais agora, pelo lado da tributação, porque as empresas estão extremamente penalizadas. O próprio auxílio emergencial e todo o orçamento de guerra estão sendo financiados via endividamento, mas há limites para isso. Por um lado, é aceitável que isso seja feito, porque estamos numa situação muito crítica, e se há algum momento, sob várias perspectivas, em que um país pode se endividar, é agora, porque os juros estão baixos e há uma situação de guerra. Ou seja, existem perspectivas que justificariam essa abordagem de manter o mínimo do padrão de vida das famílias via endividamento, mas também existem limites: a dívida tem que ser paga e não se pode sobrecarregar as próximas gerações como se não houvesse amanhã.
Nesse sentido, toda a discussão sobre o valor tem que ser feita a partir do que queremos, dada a capacidade do Estado de se endividar e também do que as famílias vão precisar. Nós sugerimos um valor de 100 reais per capita. Não foi feito um cálculo para sugeri-lo, mas é um valor mais generoso do que o maior benefício pago pelo Bolsa Família, que é de 89 reais per capita. Então, esse já começaria a ser um benefício de maior valor e alcançaria – a proposta é que alcance famílias de até meio salário mínimo per capita – algo em torno de 50% da população brasileira. É um pouco mais generoso e muito mais amplo do que o Bolsa Família, que alcança 20% da população. Vamos ter que avaliar essa proposta tanto em termos das necessidades das famílias, quanto da recuperação econômica e da capacidade de endividamento. A partir dessa sugestão, conseguimos projetar quanto custaria o programa. É um valor muito mais modesto do que o auxílio emergencial e um pouco maior do que o Bolsa Família, ou seja, ficaria em algum lugar no meio do caminho e parece razoável, ao menos temporariamente, para podermos pensar o que queremos para a sociedade brasileira.
IHU On-Line – O senhor mencionou a reforma tributária como um caminho para financiar programas de transferência de renda. As propostas em tramitação no Congresso sinalizam nessa direção?
Luis Henrique Paiva – As duas propostas tramitando no Congresso – uma na Câmara e outra no Senado – estão razoavelmente alinhadas e foram montadas fundamentalmente para a criação de um Imposto sobre Valor Agregado, que simplifica brutalmente o sistema tributário brasileiro e dá os incentivos corretos para a formalização do crescimento econômico. Da maneira como estão propostos hoje, esses impostos não seriam neutros do ponto de vista fiscal tributário, ou seja, não arrecadariam nenhum centavo a mais, mas pelo menos uma das propostas assume que é possível eliminar as deduções de impostos de certos produtos, justamente aqueles que são comprados pelos mais pobres. Assim, esses produtos seriam tributados normalmente e se devolveria uma parcela do imposto aos mais pobres. Nesse caso, o novo IVA poderia ser considerado uma fonte de recursos para transferência de renda, porque acabaria com certas deduções e reduções de impostos que supostamente deveriam alcançar os mais pobres, mas que são mal focalizados. Nesse sentido, é possível fazer a devolução do imposto para a sociedade.
Outra possibilidade seria elevar a alíquota marginal do imposto de renda e fechar algumas brechas que permitem a algumas pessoas pagarem menos impostos. Muitas pessoas trabalham como terceirizadas e pagam imposto sobre lucro presumido para evitar o pagamento de impostos. Elas não estão cometendo ilegalidade, mas o fato é que existem brechas na legislação para que profissionais que deveriam pagar mais imposto de renda paguem menos.
Ao mesmo tempo, também não devemos ficar achando que existe algum tesouro escondido na tributação e que por essa via será possível financiar tudo que é preciso no país. Podemos fazer tudo que quisermos, como tributar bancos, por exemplo, mas, no final das contas, é muito difícil conseguir espaço para um gasto de 3% ou 3,5% do PIB porque, para aumentar a tributação nesse nível, a tributação brasileira ficaria muito alta. Não podemos cair no discurso fácil de achar que existe alguma brecha na legislação tributária, que se fechada permitirá que se financie qualquer coisa. Não é verdade. O espaço que temos para aumentar a carga tributária não é amplo, as brechas não são tão grandes e temos que ter uma discussão adulta sobre isso.
IHU On-Line – Que outros mecanismos poderiam ser utilizados, além da tributação, para financiar programas de transferência de renda? Alguns sugerem emissão de moeda. Essa é uma possibilidade?
Luis Henrique Paiva – Esse tipo de mecanismo, como emissão de moeda, só funcionaria num curtíssimo prazo, no meio de uma situação como a que estamos passando. Francamente nem sei avaliar quão boa é essa solução. Mas se estamos olhando para o horizonte da proteção social, essa claramente não é uma maneira de financiá-la. Esses programas precisam ser financiados dentro de um arranjo que seja responsável do ponto de vista fiscal. No longo prazo, programas de transferência de renda não podem ser financiados eternamente por meio de endividamento nem por meio de emissão de moeda. Qualquer coisa que se faça do ponto de vista do endividamento, deve ser de curto prazo, prevendo que ao final do período tem que ter concluída a discussão sobre um novo modelo de distribuição.
IHU On-Line – Alguns intelectuais sugerem que a discussão sobre transferência de renda neste momento deveria avançar para a elaboração de um programa de renda universal sem condicionantes, porque é preciso considerar tanto os efeitos da crise econômica, quanto as transformações no mundo do trabalho. Como avalia essa proposta para o Brasil? É possível e desejável avançar nessa direção?
Luis Henrique Paiva – Não vejo problema nenhum em discutir condicionalidades, em que medidas elas são úteis ou não. Não sou um defensor incondicional de condicionalidades, e defendo que seja feita uma discussão madura a esse respeito. Existem elementos da renda básica incondicional que são interessantes, mas os defensores da renda básica precisam olhar para os próprios problemas que essa proposta tem. O que quero dizer é que muito fácil sentar e apontar para os problemas das transferências de renda condicionadas, mas tudo que é implementado tem problemas. A proposta de uma renda básica universal está numa situação confortável porque não existe renda básica implementada em lugar nenhum. Nenhum país implantou um sistema de renda básica incondicional e universal.
É fácil apontar para um programa e ver problemas, mas na hora em que se tenta implementar um programa novo, os problemas aparecem. Enquanto isso, ficamos elogiando um conceito, porque a renda básica universal, hoje, é um conceito. Quero ter uma discussão equilibrada a esse respeito e não estou fazendo uma crítica à renda básica incondicional. Inclusive, há elementos muito importantes na renda básica e os pesquisadores que mais admiro na área de política social estão caminhando na direção de uma renda básica mais generosa, ou seja, na direção de uma transferência de renda mais próxima da renda básica. Toda a discussão que temos feito a respeito de um benefício universal infantil vai nesse sentido: uma transferência universal para as crianças. Tecnicamente existem muitos argumentos favoráveis a esse programa, mas a renda básica não foi implementada nem mesmo em países muito ricos, com grande capacidade de fazer programas de transferência.
Hoje, se quisermos pagar algo em torno de 200 reais para cada brasileiro, que não é nenhuma transferência excepcional, dependeria de gastar algo em torno de 7% do PIB por ano. Não adianta fazer conta mágica, é praticamente impossível; é basicamente como criar um novo regime geral de previdência social, que é caríssimo. Algo em torno de 2 ou 3% do PIB é factível, mas algo em torno de 7% não me parece factível. Então, vejo qualidades em alguns componentes da discussão sobre renda básica, mas não gosto da forma como alguns dos seus defensores se referem aos programas existentes, porque existe uma certa agressividade desnecessária. Alguns dos argumentos utilizados para defender a renda básica têm ações muito claras, mas há componentes dessa discussão que podem ser aproveitados para o futuro próximo.
IHU On-Line – Além de programas de transferência de renda, que outras políticas públicas precisam ser instituídas para que as pessoas tenham acesso aos bens comuns, como educação, saúde, moradia e trabalho dignos, por exemplo?
Luis Henrique Paiva – Posso estar simplificando muito a situação, mas gostaria de ter no país um ambiente político e econômico estável, que permitisse um crescimento não a taxas altas, mas contínuo da economia brasileira, que é o que está faltando. Crescer num ritmo contínuo faz muita diferença e tem um impacto muito grande no país a longo prazo. Além da tributação, estabilidade institucional, política, econômica e jurídica dariam espaço para esse crescimento moderado.
Costumamos ouvir as pessoas falarem sobre a necessidade de qualificação profissional para a população jovem, mas me parece mais importante discutir a educação e os indicadores educacionais, os progressos ou retrocessos; essa é uma discussão importante para a qual não estamos dando a devida importância. É a educação básica que dá para a pessoa as competências gerais para desenvolver competências específicas para o mercado de trabalho. Não adianta querer desenvolver competências específicas em pessoas que não desenvolveram as competências básicas. Se ensinarmos as pessoas a fazerem contas, lerem e escreverem bem, a terem conhecimentos básicos, começamos a ter uma base razoável para começar a desenvolver competências. Então, muito grosso modo, se tivéssemos uma rede de proteção decente, crescimento econômico e muito esforço na área de educação, a estrutura básica para o Brasil crescer e se desenvolver estaria dada. Eu sugeriria que tivéssemos um programa que gerasse um impacto na educação como um todo e não perdêssemos muito tempo com iniciativas de pequeno impacto e de pequena escala de qualificação profissional.