26 Junho 2020
Anne-Marie Pelletier é biblista com especialização no livro Cântico dos Cânticos. Foi nomeada pelo Papa para trabalhar de observadora no Sínodo dos Bispos de 2001. É a primeira mulher a ganhar o Prêmio Ratzinger de Teologia, em 2014, e a autora das meditações usadas na Via Crucis durante a Sexta-feira Santa de 2017, no Coliseu de Roma.
Em abril deste ano, o Papa Francisco nomeou a parisiense Pelletier, de 74 anos, para atuar na nova Comissão de Estudo sobre o Diaconato Feminino.
Na entrevista, Pelletier diz que Igreja precisa revistar, com criatividade, os ministérios da Igreja, além da ordenação presbiteral e diaconal.
A entrevista é de Céline Hoyeau, publicada por La Croix, 25-06-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O que a reação ao comunicado de Anne Soupa, que informava a sua candidatura ao arcebispado de Lyon, lhe revela?
A declaração da candidatura de Anne Soupa levanta algumas objeções. Em primeiro lugar, ignora-se o fato de que, segundo a tradição católica, a pessoa é chamada a um cargo de responsabilidade; ninguém se candidata a ele. Em segundo lugar, não é certo que a melhor forma de renovar a instituição Igreja seja disputando espaço ou as funções existentes. A mulher deve ocupar os lugares institucionais, certamente, mas não necessariamente conquistando as formas existentes de poder.
E mais: esse extremismo do anúncio de Soupa serve como desculpa para que ele não seja levado a sério. O fato da grande atenção dada pela imprensa ao demonstrar que há um impasse. É como se a provocação fosse o único modo de agir.
É tão ultrajante que as mulheres aspirem ao sacerdócio? O que pode ser feito para que elas possam desempenhar um papel maior nas tomadas de decisões? O sacerdócio e a governança são inseparáveis?
Se um dia a mulher aceder ao sacerdócio ministerial – hipótese atualmente excluída –, então que seja diferente, sendo vivido e praticado de forma um pouco diversa, com mais vida. Caso contrário, será só uma questão de poder e competição.
Há muitos espaços onde as mulheres precisam ser mais ativas, hoje, no exercício da autoridade e para inspirar novas formas de governança. Espaços como a paróquia, conselhos episcopais, os conselhos papais. Por que não?
Da mesma forma, por que não as incluir no Colégio Cardinalício?
A verdade que precisa ouvir é que o sacerdócio ministerial não pode ser a única autoridade a decidir sobre a vida e a governança da Igreja. Se as mulheres já estivessem lecionando eclesiologia nos seminários, a Igreja talvez teria de ter um outro rosto.
A ordenação feminina ao diaconato permitiria que elas encontrem um lugar melhor na Igreja?
Sem dúvida, teria um forte valor simbólico. Mas a questão é mais complexa do que parece. Tudo depende do perfil deste diaconato, os seus atributos, o modo de se instituir. Uma versão inferior àquela do diaconato masculino apenas confirmaria a desigualdade entre homens e mulheres. E esse não é um risco ilusório, já que uns temem que as mulheres estejam se aproximando demais do Sacramento da Ordem.
Além disso, enfocar demais neste ponto corre o risco de obscurecer a verdadeira extensão do problema. É a questão dos ministérios na Igreja o que necessita ser reaberto, já que são eles que afetam ambos os sexos e os estados diferentes de vida.
Mulheres me escrevem para contar suas expectativas quanto a uma real conversão no que diz respeito à mentalidade, que é um pré-requisito para a estima e a igualdade. Elas questionam a legitimidade feminina em anunciar a Palavra de Deus, pedem que este crédito seja atribuído à experiência que elas têm, que a voz delas seja incluída na palavra do Magisterium.
Onde estamos exatamente na questão do diaconato?
Na verdade, esse tema foi posto em pauta de um modo consistente – por mulheres, assim como pelos bispos – desde o Vaticano II e desde o restabelecimento do diaconato permanente. O trabalho histórico aumentou.
Em 1997, pediu-se à Comissão Teológica Internacional que formulasse uma opinião sobre o assunto. A tendência era favorável ao diaconato feminino, mas o grupo evitou chegar a essa conclusão.
Em 2016, a União Internacional das Superioras Gerais recorreu ao Papa Francisco, que criou uma comissão para examinar a história da tradição. Essa comissão concordou sobre a existência de diáconas, mas discordou sobre como elas eram instituídas, se era por ordenação ou não.
Hoje, o papa lança novamente uma comissão, da qual sou membro. O trabalho dessa comissão, me parece, terá que começar com a questão da fidelidade à tradição.
É uma realidade estática, como uma realidade normativa, a qual só podemos repetir? Ou será que estão nos pedindo um trabalho criativo, de aggiornamento (atualização), como o Pe. Congar ensinou? Da mesma forma, certamente teremos de defender a Igreja atual, partindo das necessidades das comunidades e considerando as realidades vividas.
Não nos esqueçamos que esta comissão é uma extensão do Sínodo dos Bispos para a região pan-amazônica, o qual salientou a realidade das comunidades privadas de padres, tendo sobrevividas somente graças a mulheres inteiramente devotas à fé e ao exercício da caridade. Esperamos que estas comunidades recebam um empoderamento institucional e sacramental, e que outras pessoas sejam chamadas ao ministério confirmado pela ordenação.
Isto iria clericalizá-las?
Em si, não é se clericalizar para receber a missão do bispo para ao serviço do corpo eclesial. Tudo depende da forma como a missão se realiza. É verdade que toda missão na Igreja é suscetível de ser tocada por esse vício que chamamos clericalismo.
Aqui, o antídoto é o serviço, como Cristo ensina, em contraste com o modo humano de exercer poder. O serviço não é naturalmente espontâneo em nós, muito embora eu acredite que as mulheres estejam bem-dispostas, e mesmo tenham o dom, para um altruísmo verdadeiramente evangélico.
O que acha que é preciso para tornar viva essa tradição?
Não devemos nos limitar ao que sabemos do passado. O diaconato feminino se dedicava essencialmente ao serviço da mulher, especialmente na celebração do batismo por imersão.
Hoje, vivemos uma situação bem diferente, uma situação que varia de país para país. Esta diversidade deve ser considerada, assim como as novas condições da vida eclesial em um país como o nosso, a França. O diaconato deve permitir que as mulheres batizem e celebrem casamentos, assim como deve permitir a pregação.
Do mesmo modo, as ações que conferem graça podem ser aprimoradas. Por exemplo, quando uma mulher – ou homem que não seja padre – ouve uma confissão, mesmo sem ser capaz de dar absolvição. A graça sacramental não se limita aos nossos sete sacramentos.
O contexto atual da Igreja (as crises de abuso, em especial) conduz a tais mudanças?
Esse contexto deve servir de estímulo para uma reflexão em profundidade e para as mudanças institucionais de precisam ocorrer. Mas este trabalho deve também ser feito com a clara consciência de que vivemos em um mundo onde a questão antropológica diz respeito a todos.
A relação entre homem e mulher está sendo questionada em todos os ambientes, e de uma forma que devemos acolher. Ela deve obviamente também preocupar a Igreja. O que temos hoje é uma oportunidade de a Igreja se engajar num trabalho real de conversão evangélica. É a oportunidade de encontrar um verdadeiro equilíbrio interior, tendo a coragem de imaginar a Igreja de um jeito diferente.
A causa da mulher é, simplesmente, também a causa da Igreja. Que nenhuma dessas causas seja uma causa perdida.
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“Precisamos revisitar a questão dos ministérios na Igreja”. Entrevista com Anne-Marie Pelletier, da nova comissão papal para diáconas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU