Pesquisadora analisa como o imaginário bélico é sempre presente na gestão Bolsonaro, mas não enfrenta o novo coronavírus como inimigo comum a ser eliminado
A ideia de guerra parece estar sempre no imaginário do presidente Jair Bolsonaro, basta ver como refere as ações e posições de seu governo com retóricas bélicas. “O discurso militarista não nasce com Bolsonaro. Ele é exacerbado por ele, mas tem raízes mais antigas e profundas”, observa a pesquisadora Ana Penido. Ainda assim, reconhece que o uso que Bolsonaro faz desse discurso é o mais comum, no sentido de sempre elencar um inimigo comum a ser eliminado. “O que muda com Bolsonaro é que a expressão toma outro significado num contexto em que metade do governo é formada por militares”, acrescenta, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
No entanto, observa como é curioso o emprego parcial dessa retórica. Ou seja, como joga com ela quando é de seu interesse. Para Ana, no combate à covid-19, por exemplo, a retórica aparece “em coisas simples, como na denominação de hospitais de ‘campanha’, referências aos hospitais como trincheiras, às enfermeiras como ‘guerreiras combatentes’ e outras”. Mas enfermeiras e demais profissionais da saúde não são tratadas nem com uma pequena parte de como são agraciados os militares. “Na verdade, para ser exata, as ‘guerreiras’ não têm nem piso salarial nacional e nem regulamentação de carga horária trabalhada”, acrescenta.
Além disso, enquanto propaga a presença de inimigo oculto na imprensa e entre lideranças políticas, o presidente não olha o novo coronavírus como uma verdadeira razão para combate. “A guerra está apenas nas palavras quando se trata do vírus. Antes fosse esse o nosso problema. A realidade é pior”, lamenta. E acrescenta: “o governo enfrenta a pandemia como uma variável política, uma janela de oportunidades para passar projetos controversos, enfrentar aqueles que considera inimigos nos governos estaduais e no Legislativo, para militarizar ainda mais o governo, para manter sua base mobilizada em ‘defesa da economia’, para aprofundar a subordinação aos EUA, comprando cloroquina (inacreditável!), para refazer alianças com partes da burguesia insatisfeita, enfim...”
Ana Amélia Penido Oliveira (Foto: Arquivo pessoal)
Ana Amélia Penido Oliveira é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, possui mestrado em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense - UFF e doutorado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp. Atualmente é pesquisadora do Instituto Tricontinental e da Unesp. Entre as suas publicações, destacamos As mudanças na guerra e na formação dos guerreiros (In: Poder Aeroespacial e Estudos Interdisciplinares de Segurança e Defesa, 2014, Rio de Janeiro) e Uma educação militar para a defesa do Brasil (In: V Encontro Pedagógico do Ensino Superior Militar, 2013, Resende. Anais do V EPESM, 2013).
IHU On-Line – O governo Bolsonaro possui uma retórica militar? No que consiste e como compreender essa retórica?
Ana Penido – Não apenas uma retórica, como uma prática, uma composição, uma base social, em suma, é um governo militarizado. Especificamente quanto à questão da retórica, é relevante pontuar que o discurso militarista não nasce com Bolsonaro. Ele é exacerbado por ele, mas tem raízes mais antigas e profundas. Se, por um lado, enquanto nação, praticamente não tivemos guerras convencionais, por outro, nos acostumamos com a presença militar em assuntos internos e distintos dos temas de defesa.
Esse cenário se acentua com a ditadura militar e a transição inacabada. Já antes do governo Bolsonaro combatíamos a pobreza, a dengue, e agora a covid-19. É uma hipérbole bastante perigosa. O que muda com Bolsonaro é que a expressão toma outro significado num contexto em que metade do governo é formada por militares, o presidente a todo momento reforça que ele é o comandante em chefe das FFAA [Forças Armadas do Brasil] e, principalmente quando, em um ano e meio, ele ameaçou por sete vezes colocar as FFAA nas ruas contra a oposição.
IHU On-Line – Essa retórica não parece coesa entre militares da ativa e os reformados. Por quê?
Ana Penido – A retórica me parece comum, pois vem de uma formação também comum pautada na identificação do eu e do outro, potencial inimigo. A prática que me parece distinta, pois os militares da reserva, em seus clubes, não sofrem dos mesmos constrangimentos disciplinares que os militares da ativa sofrem. As diferenças de retórica entre a reserva e a ativa ficam mais nítidas quando o tema é o uso das FFAA contra outros poderes, mas ainda assim, com a politização dos quartéis, está tudo bastante confuso.
Nesse caso, nos últimos 30 dias, foram pelo menos 14 documentos de militares, com destaque para os dois emitidos pelo Ministério da Defesa, reafirmando desde o óbvio (a obediência à Constituição), abstrações (como a possibilidade de medidas excepcionais serem adotadas) e até absurdos (ameaça de guerra civil). Cabe esclarecer, não é problema a retórica militar ser usada para pensar problemas de defesa. A questão é a transição de uma retórica (que expressa um pensamento) de guerras para ambientes de paz, como questões de saúde, meio ambiente, economia, segurança pública…
IHU On-Line – De que forma a retórica militar se revela nas estratégias do governo brasileiro contra o novo coronavírus?
Ana Penido – Em coisas simples, como na denominação de hospitais de ‘campanha’, referências aos hospitais como trincheiras, às enfermeiras como ‘guerreiras combatentes’ e outras. Cabe pontuar que essa é uma retórica seletiva, ou seja, é usada conforme os interesses do governo. Por exemplo, embora as enfermeiras e técnicas sejam as mais expostas à contaminação pelo novo coronavírus no ambiente de trabalho, elas não terão regime de trabalho e previdência próprios como é o caso dos ‘guerreiros’ das FFAA brasileiras. Na verdade, para ser exata, as ‘guerreiras’ não têm nem piso salarial nacional e nem regulamentação de carga horária trabalhada.
A retórica também se expressa em dimensões mais complexas, como na decisão de não informar os dados sobre mortos e contaminados, com medo de expor as fragilidades do governo à ‘imprensa inimiga’. O meio militar é regido pela cultura do segredo, do silêncio. Os dados de saúde pública precisam ter a lógica inversa, da maior publicidade e transparência possível.
Chamamos de retórica, pois a guerra é um confronto violento entre forças politicamente organizadas. A rigor, não é possível uma guerra povo x pandemia, e nem governo x pandemia. A única possibilidade seria governo x povo organizado. Dado o fato de que não existe povo militarmente organizado contrário ao presidente armado, seria um confronto assimétrico, ou mais claramente falando, caso a força seja usada, redundará em massacre civil.
IHU On-Line – Quais os riscos de se enfrentar uma pandemia como quem vai à guerra?
Ana Penido – Não acho que o governo enfrenta a pandemia como quem vai à guerra, pois se o fizesse, não estaria tendo dificuldades para garantir insumos básicos, ou para orientar a conversão de empresas brasileiras para a produção destes, para entender a importância de impor barreiras sanitárias, para unir o país em prol do enfrentamento de um problema comum. A guerra está apenas nas palavras quando se trata do vírus. Antes fosse esse o nosso problema. A realidade é pior.
O governo enfrenta a pandemia como uma variável política, uma janela de oportunidades para passar projetos controversos, enfrentar aqueles que considera inimigos nos governos estaduais e no Legislativo, para militarizar ainda mais o governo, para manter sua base mobilizada em ‘defesa da economia’, para aprofundar a subordinação aos EUA, comprando cloroquina (inacreditável!), para refazer alianças com partes da burguesia insatisfeita, enfim...
IHU On-Line – Essa ideia de ‘guerra contra o coronavírus’ emerge em outros contextos além do brasileiro? No que esses discursos se aproximam e no que se distanciam do brasileiro?
Ana Penido – Sim, emergiu no mundo inteiro em virtude, principalmente, do número de mortos. A principal questão que nos diferencia do restante do mundo é que, aqui, é um governo militarizado empregando uma linguagem militar, o que traz o medo de que a retórica alarmista passe à prática.
IHU On-Line – A ideia de guerra é muito associada a um estado de exceção. Significa que ‘na guerra’ vale tudo?
Ana Penido – Não vale tudo na guerra. Há, por exemplo, um enorme campo de estudos e de práticas no direito internacional, o direito humanitário. Não é a minha área de estudo, mas se trata de uma discussão muito relevante, pois aborda como tratar prisioneiros, como tratar os civis, como tratar soldados feridos, e outras questões.
IHU On-Line – Na narrativa da guerra, há um inimigo a ser combatido. Quem é o inimigo que emerge dos discursos do governo? E no caso em específico da pandemia?
Ana Penido – No caso específico da pandemia, utilizando-se da ideia de inimigo, Bolsonaro colocou como antagônicas duas coisas que não o são em absoluto, a economia e a vida. Não há como salvar a economia sem salvar as vidas. Quando coloca a questão nesses termos, o governo parece eleger como inimigo o próprio povo, praticando a necropolítica.
Diante de situações de guerra, lideranças políticas chamam pela unidade e coesão nacional, conclamam o povo a um esforço em prol de um “bem maior”, e adotam um discurso belicista direcionado ao oponente. A atuação de Bolsonaro diante da crise é absolutamente outra. O presidente insiste na polarização política, adota um discurso belicista voltado para as instituições e até mesmo contra antigos parceiros de trincheira, e emite declarações confusas para a população, às vezes contrárias a outros membros do próprio governo, sobre as medidas a tomar.
Momentos de guerras e as pandemias exigem capacidade governamental para mobilizar a sociedade e as estruturas estatais (como as forças armadas) para responder conjuntamente um desafio de tal monta. Exigem comando, estratégia, planejamento e capacidade de execução, o que obviamente falta ao Brasil neste momento.
IHU On-Line – Como compreende a relação entre política e guerra? Quais os riscos de reduzir tudo na política à guerra?
Ana Penido – Continuo achando válida a afirmativa de Clausewitz [Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz foi um militar do Reino da Prússia que ocupou o posto de general e é considerado um grande estrategista militar e teórico da guerra], de que a guerra é a continuação da política por outros meios. Portanto, acho que os fins, independente da forma como o conflito se dá, são sempre políticos. Mas o contrário não é verdadeiro, a política não é a continuação da guerra, pois caso contrário, adversários, pessoas com ideias distintas, deveriam ser destruídos, e não absorvidos numa dinâmica de discussões, instituições, pesos e contrapesos, maiorias e minorias, como ocorre no regime democrático.
IHU On-Line – Como analisa as manifestações pró e contra o governo?
Ana Penido – Não vejo problemas em manifestações pró e contra o governo em geral. Acho que cabem considerações sobre o momento e sobre as táticas. Primeiro sobre o momento, considero que não deveriam ser permitidas manifestações de massa desde o início da pandemia. Entretanto, elas vêm ocorrendo todas as semanas pró governo, contrariando os decretos de isolamento social e ainda contando com o exemplo negativo da presença do presidente. Abriu-se, portanto, um precedente para as manifestações contra o governo também nesse momento. Mas pessoalmente, acho que, durante a pandemia, as manifestações deveriam ser com exibições nas paredes, palmas ou panelaços nas janelas, faixas etc.
Portanto chegamos às táticas. É assustador como o governo é seletivo no processo de caracterização das manifestações, sendo que o Estado é só um, e os regramentos para manifestações (inclusive as doutrinas para o emprego das forças de segurança) deveriam ser os mesmos, fossem elas contra ou pró governo. Um acampamento em Brasília, cujos organizadores confessam portar armas e fazer treinamento militar, fazem caminhadas com tochas e pedem o fechamento de um dos três poderes é considerado liberdade de pensamento; buzinaços e fechamento de ruas na porta de hospitais (contravenções de trânsito) são liberdade de expressão. Enquanto isso, vemos cenas de perseguição aberta aos manifestantes contrários ao governo especialmente no Rio de Janeiro e São Paulo.
IHU On-Line – Qual a sua leitura sobre manifestantes que pedem intervenção militar?
Ana Penido – Minha leitura é da Constituição. Isso é ilegal, deveriam estar presos.
IHU On-Line – A democracia no Brasil está em risco? Por quê?
Ana Penido – Sem dúvidas. A democracia formal (eleições de dois em dois anos) não cumpriu as promessas feitas ao próprio povo na democratização de uma vida boa, com saúde, educação, segurança e participação política. Nessa situação se instalou um parasita, o presidente.
Não existe democracia sem soberania, e nossa subordinação aos EUA elimina a possibilidade de construção de um país soberano. Outro ponto relevante são os prejuízos que a militância política do partido militar traz para a Instituição Forças Armadas, imprescindível para uma nação soberana. Por fim, hoje a maior ameaça à democracia são as milícias bolsonaristas, algumas com conotações fascistas, atuando abertamente na ameaça aos nossos já frágeis poderes.
IHU On-Line – Analistas têm apontado que, embora a adesão ao governo Bolsonaro não seja unânime entre militares da ativa (Forças Armadas), entre as polícias militares dos estados tem crescido o apoio ao presidente. Como a apreende esse cenário?
Ana Penido – Acho que hoje, uma das principais questões em aberto é exatamente essa, assim, respondo sua pergunta com muitas outras. Institucionalmente, já há um problema quanto à subordinação. As FFAA têm as polícias como forças auxiliares nos seus planejamentos, pois são elas que possuem capilaridade nacional. Além disso, as polícias respondem aos governadores, portanto, já obedecem a dois senhores.
É público e notório que as forças auxiliares são intensamente infiltradas pelo crime organizado, ou mesmo constituem seus próprios grupos criminosos como as milícias. Com o aumento das atividades de Garantia da Lei e da Ordem - GLO, também existem vários trabalhos no Brasil e no México apontando como as FFAA também vão sendo infiltradas por esses grupos criminosos, que por exemplo, atuam desviando armas dos quartéis para abastecer as corporações.
Até que nível essa infiltração chegou? Além disso, existem poucas informações sobre como efetivamente está o andar de baixo. A reforma da previdência abalou a crença no bolsonarismo? Como reagiram à saída de Moro? Como estão reagindo à chegada do Centrão? No chão de bairro onde ocorre a lida cotidiana com a população, as fiadoras do governo são as polícias, em alguns estados razoavelmente profissionais e autônomas. Aceitam uma liderança do Exército Brasileiro porque concordam com ele. Mas e se discordarem?