18 Junho 2020
Muitas das estátuas que hoje existem já obliteraram outras estátuas para existir no seu lugar (e em muitos casos a obliteração do passado colmatou a eliminação e o massacre de povos e etnias) ou derrotaram outros projetos de simbolização com os quais disputavam a hegemonia de valores da sociedade do seu tempo, escreve Silvio Pedrosa, professor da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, em artigo publicado por Uninômade, 17-06-2020.
Somos sociedades intoxicada pelas memórias e identidades a ponto de acreditarmos que estátuas não podem ser destruídas porque são construções da memória ou da história, representações de identidades supostamente fora do alcance do presente. É um pouco o que se passa com a ortografia: criticamos como arbitrariedade que se altere a ortografia tal como a conhecemos porque a consideramos “natural”, quando, de fato, ela é apenas naturalização social e histórica de uma outra arbitrariedade a qual já nos acostumamos.
Vivemos a um só tempo o fetiche e a ilusão da monumentalização do passado, a possibilidade de que sejamos capazes ou de que seja necessário acumular representações do passado simplesmente porque são vetores de uma outra temporalidade. Derrubar estátuas é um ato memorialístico tão significativo quanto erguê-las: a memória não é uma obra fechada, mas o trabalho incessante de reconhecimento e estranhamento dos homens e das sociedades buscando apontar seus próprios caminhos no presente (era o que os romanos faziam naquilo que chamavam de damnatio memoriae, quando destruíam e vandalizavam estátuas de imperadores que haviam caído para sinalizar a mudança no poder).
“Tudo o que existe merece perecer miseravelmente” foi o emblema que Goethe colocou na boca de Mefisto. A nós cabe a tarefa (a que chamamos sobrevivência e também vida) de resistir a esse processo de perecimento enquanto decidimos, a cada momento, o que merece ou não nos acompanhar como símbolos da experiência humana. O quê está em discussão é se homenagens a homens do passado cuja notoriedade foi construída sobre a escravização e a morte de africanos, indígenas, asiáticos e outros povos devem ser toleradas no espaço público. Não se trata de apagamento do passado, mas da requalificação do que o passado nos legou e da relação que as sociedades contemporâneas estabelecem com eles, ou seja, de decidir se continuaremos convivendo com homenagens a valores escravocratas, fascistas e autoritários como se esses fossem parte dos valores toleráveis no debate público do nosso tempo.
Muitas das estátuas que hoje existem já obliteraram outras estátuas para existir no seu lugar (e em muitos casos a obliteração do passado colmatou a eliminação e o massacre de povos e etnias) ou derrotaram outros projetos de simbolização com os quais disputavam a hegemonia de valores da sociedade do seu tempo. Quando o tempo da sua projeção memorialística expira, elas podem e devem ceder lugar a outras formas capazes de articular melhor passado, presente e futuro. Uma foto ou um vídeo de uma estátua sendo derrubada é um documento daquilo que fomos, somos e desejamos para o futuro. Ela é um indício tão importante quanto aquela estátua mesma foi um documento do tempo na qual foi criada e não tem a pretensão de estar gravada no mármore dos tempos, pois é uma forma de expressão que aquiesce melhor da permanente transitoriedade do tempo. “As areias solitárias e inacabáveis” do tempo, como diz o poema de Shelley, estão sempre nos esperando.
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As areias solitárias e inacabáveis do tempo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU